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O meia Paolo Sollier foi intelectual e militante nos anos de chumbo italianos

Fim dos anos 1960. No Brasil, tempos de terror: a Ditadura Militar endurecia o regime, com a criação do AI-5, e opositores do regime eram perseguidos, silenciados, torturados e mortos. Na Itália, engana-se quem acha que a situação era muito melhor. Apesar de o país viver um estado democrático de direito, na Bota a situação não era calma: eram os chamados Anos de Chumbo.

Destroçada pela II Guerra Mundial anos antes, a Itália começava a se unir como um país e em torno de uma língua, relegando os dialetos locais a segundo plano. O milagre econômico proporcionado pelo Plano Marshall recuperou setores da economia como indústria e construção durante os anos 1950 e 1960. No final desta última década, porém, tudo havia cessado. A desigualdade aumentou e o país entrou em uma era de recessão, austeridade e desemprego, além de diversos problemas ambientais, trabalhistas, energéticos e políticos.

Esta crise abriu espaço para a contestação do sistema e a Itália, como vários outros países do mundo, teve um ano de 1968 bastante movimentado do ponto de vista político. O crescimento de partidos de esquerda e direita foi notório, e uma coalizão dos partidos Socialista e Democrata Cristão acabou chegando ao poder na Velha Bota. No entanto, isso não aplacou os ânimos: com os anos, o que restou foi muita violência, radicalismo e terrorismo. Facções paramilitares de direita e de esquerda – e mesmo grupos ligados ao governo – banhavam a Itália de sangue. Acredita-se que mais de 2 mil mortes tenham tido motivação política naquela época. Desde atentados que vitimaram milhares de pessoas até o final dos anos 1980 à morte do poeta e cineasta Pier Paolo Pasolini, um dos gênios italianos do século XX.

Bem, deu para ficar claro que se posicionar era difícil. Era assumir um lado – e suas consequências – em uma época de extremos. Fazer isso no futebol poderia ser ainda mais duro. Afinal, futebolistas são pessoas públicas e, de certa forma, ligadas ao entretenimento. Dessa forma, pouca gente ousava tomar lado, mesmo em um país altamente politizado.

Sollier nunca hesitou em tomar lado durante os anos de chumbo da sociedade italiana (Wikipédia)

Jogadores raramente davam declarações sobre os acontecimentos da época, embora algumas torcidas tivessem suas ideologias muito bem definidas – até hoje existem times/torcidas identificados com cada um dos espectros da política, mas naquela época as brigas entre os ultras tinham ainda mais base em rivalidade entre esquerdistas e direitistas. Assim como hoje, era raro que futebolistas decidissem dizer quais suas causas. O meia Paolo Sollier era um dos que não fugiam da raia. Tinha personalidade e assumia um lado: era comunista.

Como muitos jogadores, Sollier teve origem humilde. Vinha de família proletária, do operariado – para usar termos marxistas. Criado nas redondezas de Turim, era filho de um trabalhador de uma empresa do ramo elétrico e trabalhava em uma ONG que ajudava a combater a fome. Após concluir a escola, ingressou na faculdade de Ciências Políticas – e conseguiu um emprego na Fiat, o desejado por qualquer piemontês. Apesar de ter um futuro encaminhado, Sollier tinha o sonho de ser jogador de futebol, e acabou abandonando a faculdade e o emprego para dedicar-se exclusivamente ao esporte. Ou melhor, quase: afinal, continuou seu ativismo político dentro e fora dos gramados.

Meia voluntarioso, mas pouco técnico, ele mesmo se definia “um bom jogador para a Serie B e fraco para a elite”. Em sua melhor fase da carreira, Sollier atuou no Perugia por dois anos – curiosamente um time que tem o vermelho como cor e uma torcida mais orientada à esquerda, o que contava a seu favor. Com o time umbro, conquistou a segundona e foi reserva na primeira campanha dos biancorossi na Serie A em sua história, atuando em 21 partidas sem marcar gols. No entanto, ajudou a equipe treinada por Ilario Castagner a atingir um honroso oitavo lugar no campeonato. Tudo bem, eram “anos de chumbo” também na Serie A. Fechado para estrangeiros desde o final dos anos 1960, o campeonato teve grande queda técnica, e a Itália, antes avassaladora em termos continentais, acabou relegada, perdeu vagas europeias – algo que só foi mudar na década seguinte, quando o Italiano se tornou o maior torneio nacional de toda a Europa.

Só que Sollier ficou mesmo conhecido mesmo pelo ativismo político. Sempre entrava em campo com o punho levantado e a mão fechada, símbolo típico da esquerda mundo afora. Por isso, conseguiu simpatia da torcida perugina e de outras do país que tinha o mesmo viés político, ao mesmo passo em que era detestado pelos torcedores de direita. O ex-jogador, no entanto, declarava que isso não era um ato endereçado aos frequentadores dos estádios italianos, mas uma mensagem para si próprio e aos parentes e amigos próximos.

Solier na segundona, com a camisa do Perugia (Wikipedia)

“Quando entrei no futebol, fui criticado por conciliar o meu salário com o fato de ser militante de esquerda, embora o que eu ganhasse fosse o equivalente ao que um empregado comum recebia em qualquer lugar. O gesto com o punho alçado não era propaganda comunista, servia para eu me lembrar sempre das minhas origens e para mostrar aos meus amigos que continuava o mesmo. Era assim que eu os cumprimentava nos campinhos da juventude. Ao mesmo tempo, sabia que eu era uma exceção no futebol e para mim era normal levar a minha ideologia ao trabalho que amava”, explicou. De qualquer forma, o gesto era significativo, e para muitos era um sinal de resistência e de luta democrática para o país se livrar da barbárie dos anos de chumbo.

Em Perugia, Sollier encontrou no lateral esquerdo Giancarlo Raffaeli, filiado ao Partido Comunista, um parceiro de luta – curiosamente, ambos se transferiram para o Rimini em 1976 e lá permaneceram por três anos. Os dois costumavam se reunir com torcedores ligados ao operariado e não raro eram vistos lendo jornais entre os treinamentos ou participando de reuniões sindicais. Sollier, no entanto, foi mais longe e, em 1976, escreveu um livro, chamado “Calci e sputi e colpi di testa” (em tradução livre, “Chutes e cusparadas e cabeçadas”), no qual conta sua militância na associação Vanguarda Operária e descreve o futebol de um ponto de vista alternativo e crítico. A publicação lhe valeu uma advertência da Federação Italiana de Futebol – FIGC.

De fato, Sollier tem uma visão bem diferente do que o normal sobre o esporte. Um ponto de vista que não é compartilhado pela própria esquerda: segundo ele, hoje o futebol vê um crescimento da penetração de ideias de direita porque aqueles que compartilham do mesmo ideal político que ele passaram a ver o esporte como uma distração fútil, esquecendo o potencial social e de solidariedade inerente à prática.

Em uma entrevista dada em 2013, o ex-jogador também afirma que derrotas devem ser relativizadas e não se deve ter a obsessão pelo sucesso: perder é normal, não é humilhante, e deve ser usado para aprender. Sollier acha que cada vez mais o futebol está perdendo a humanidade, e também pensa que os jovens devem ser ensinados a serem mais livres dentro de campo, desde a base, para não perderem o gosto pelo futebol, o que é fundamental, de acordo com ele. O ex-jogador também pensa que a tecnologia não deve ser utilizada, porque ataca o problema pelo lado errado: segundo ele, assim como existem os erros dos jogadores, os erros da arbitragem também são legítimos. É humano e, para ele, o esporte precisa ter esta dimensão.

Sollier e Raffaeli se informam através de um jornal da classe operária (Wikipedia)

Uma visão romântica, bastante apaixonada, e de quem não vê o futebol essencialmente como competição, mas como divertimento. Este foi provavelmente um dos motivos que fizeram com que Sollier não decolasse nem como jogador nem como treinador – após aposentar-se, ele teve carreira em times amadores, e o máximo que conseguiu foi treinar a Pro Vercelli, então na sexta divisão.

É fato que Sollier não teve, nem de longe, uma carreira fulgurante como a de Pietro Anastasi, considerado por muitos como “o artilheiro dos operários” – mais pela origem humilde e da migração da Sicília para Turim do que por posicionamento político. O ex-meia italiano também não chegou nem perto de Sócrates, um dos gênios do futebol e mais conhecidos intelectuais de esquerda do mundo da bola – tanto dentro quanto fora dos gramados. No entanto, em anos marcados pela violência no Belpaese, Sollier merece ser lembrado por ter passado a sua mensagem de forma pacífica e argumentativa – quando escrevia – e de forma silenciosa – quando alçava o punho –, bem diferente dos extremistas que assustavam o país e o mundo.

Hoje, além de escrever para alguns jornais, Paolo Sollier é técnico do Osvaldo Soriano FC, combinado italiano de escritores que disputa partidas beneficentes.

Paolo Sollier
Nascimento: 13 de janeiro de 1948, em Chiomonte, Itália
Posição: meio-campista
Clubes em que atuou: Cinzano (1967-69), Cossattese (1969-73 e 1984-85), Pro Vercelli (1973-74 e 1979-81), Perugia (1974-76), Rimini (1976-79) e Biellese (1981-84)
Títulos: Serie B (1975), Serie D (1972) e Interregionale (1983)

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