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Roma, tempo e Totti: não é hora do ponto final

Altrove, c’è l’altrove. Io non mi occupo dell’altrove. Dunque, che questo romanzo abbia inizio. In fondo, è solo un trucco. Sì, è solo un trucco.

La Grande Bellezza

Francesco Totti começou a temporada como reserva de luxo de Edin Dzeko. Fez um gol impedido, lesionou-se por meses e voltou no crepúsculo do trabalho de Rudi Garcia. Com Luciano Spalletti, que há onze anos o transformou em falso nove, as tretas se tornaram públicas: Totti soltou problemas à imprensa, chegou a ser afastado e passou a colher esmolas de minutos finais. Até poucas semanas, o capitano se via empurrado à condição de relíquia viva, postura ressaltada pelo presidente James Pallotta, o qual já admitiu a preferência por concedê-lo um cargo de dirigente, ao invés de sua renovação enquanto jogador. Ele quer continuar em campo, deixando claro como ainda acredita na contribuição com o time.

Isso, aliás, tem sido cada vez mais difícil de refutar. Nos últimos quatro jogos, Totti provou que ainda pode acrescentar à Roma – muito embora a exigência de provas seja por si só grandíssima inversão de valores. Contra o Bologna, precisou de quatro minutos para dar um gol a Mohamed Salah. Diante da Atalanta, empatou a partida e ainda criou outra chance clara para Dzeko, que cumpriu sua tarefa existencial caindo no chão ao invés de finalizar. Em um chilique no mínimo infeliz, Spalletti desmoralizou o capitano, expondo ainda mais o ambiente pouco amistoso entre os dois: “Totti não salvou nada; foi a equipe”.

Quando o folhetim parecia pouco receptivo a novos capítulos, o camisa dez entrou em campo nos cinco minutos finais contra o Torino, empatou a disputa em seu primeiro toque na bola e ainda virou o jogo ao cobrar pênalti, responsabilizando-se por mais lágrimas em marmanjos do que a atuação de Sylvester Stallone em Creed. Ante o Napoli, Francè entrou aos 80 e quebrou a defesa como ninguém na equipe havia feito ao lançar Salah a 30 metros – o que não deu em nada. Poucos minutos depois, porém, foi ele quem iniciou a jogada do gol romanista por meio de outro lançamento, um verdadeiro tapa para Pjanic.

O contrato de Francesco Totti precisa ser renovado. No universo futebolístico, trata-se de uma questão de vida ou morte. Ninguém espera que ele jogue 90 minutos; ninguém espera que participe de todas as partidas. Negar sua eficácia, por outro lado, beira o ridículo. Não é preciso apelar para questões morais: Totti ainda tem lugar em campo, e não há nada mais absurdo do que forçar a prová-lo semanalmente, tendo dez minutos à disposição. Questões morais, afinal, deveriam bastar. O capitano é a Roma, e sua história de vida no clube se mostra mais que suficiente para entregar-lhe uma proposta com o campo de término de contrato em branco.

Dito isso, podemos detalhar alguns aspectos.

Idade ou vitalidade?
Para um jogador de futebol, Totti é indiscutivelmente velho. São 39 anos. Se renovar, terminará a temporada seguinte com 40. Isso, claro, traz problemas: velocidade, tempo de recuperação, agilidade e vários outros fatores, ainda que, por sorte, a calvície não tenha dado sinal. Assim sendo, não adianta colocá-lo pra correr; não adianta enfiá-lo entre os zagueiros para levar pancada. Se futebol fosse uma mera questão de velocidade e força, no entanto, para ser campeão bastaria montar uma dupla de ataque com Guerrón e Kléber Bambam.

Por outro lado, sua leitura de jogo, sempre assustadora em relação aos demais, não atrofiou e dificilmente atrofiará. Para não dizer que isso não se ensina, limitemo-nos a afirmar que é quase impossível. Da mesma forma, a qualidade do toque na bola, seja para lançar ou finalizar, não demonstra nenhum sinal de queda. Diante dos lampejos de atuação concedidos a Totti, o argumento de que “não pode jogar porque tem 40 anos”, como o ouroboros, passa a comer o próprio rabo. Se ele ainda prova – não são indícios, são provas – de que tem a acrescentar ao elenco, por que romper com o maior ídolo da história do time? Meus argumentos se tornarão ainda mais concretos por meio de comparações.

(Um parêntese pessoal: se Totti afundasse o time; se chegasse ao estádio embriagado, com os botões da camisa soltos, olhos vermelhos e colares brilhantes de festa de formatura; se Totti chutasse do meio-campo apenas por diversão e chamasse o presidente do clube de “ow, véi” — ainda assim, a Roma deveria renovar seu contrato. Ele não é um jogador; é uma entidade; significante e significado convergindo numa equipe desprovida de grandes conquistas. Esse, porém, é um ponto de vista naturalmente refutável – e completamente hipotético, pois não chega perto de ser o caso do atacante. Voltemos ao jogo.)

Para comparar, portanto, é válido resgatar alguns nomes da história recente da Roma. Desde que o clube se americanizou, vários atacantes vestiram a camisa giallorossa. Em um resumo breve, Borini foi um amor de verão, o grosso e raçudo que empurrava a bola enquanto tropeçava. Osvaldo, o affair com um psicopata. Lamela comeu a bola em sua última temporada e se foi, gerando dinheiro suficiente para não deixar saudades. Por sua vez, Ljajic, cujo apelido monofinta traduz fielmente seu repertório ofensivo, consegue habitar na linha tênue entre “talentoso, só falta um bom gerenciamento” e “não é que ele me enganou?”. Mas nós nem começamos com os asquerosos. Exceto Osvaldo. Você é lamentável, Osvaldo.

Por ordem cronológica, lembremos de Bojan, um flop grotesco, completamente incapaz de duelar em uma partida Serie A. Contratado sob uma cláusula “se der certo, o Barcelona recompra a preço de retalho”, simbolizou o prelúdio no fracasso ofensivo romanista: custo grande, rendimento bosta. Em seguida, Mattia Destro, o hype de craque no potencial de um Emanuele Calaiò, pertence ao grupo mais desgraçado entre praticantes de balípodo. Pois qualquer um que já o tenha visto em campo, antes de mais nada, teve sérias dificuldades para encontrá-lo, dado o sumiço nebuloso a que o atacante se submete. Além disso – repare e você pensará “caramba, é verdade” – a íngua ofensiva, não obstante escondida entre as sombras adversárias, pede todas as bolas do ataque, reclamando sempre – sempre – ao não recebê-las. Enfim, estamos falando de um centroavante que já foi expulso por tirar a camisa quando tinha um cartão amarelo e vencia por 3 a 1. Sem dar sinais de amadurecimento, nessa temporada, dessa vez contra a Roma, Destro estava pendurado, comemorou um gol removendo a camisa e conseguiu outra suspensão mentecapta. O gol foi de pênalti.

Mas calma, o buraco dos fracassos é bem mais fundo. Como ignorar Iturbe, um desses futebolistas incapazes de correr e pensar ao mesmo tempo? Se Destro é o representante oficial da banheira na pelada, Iturbe é o serial killer de qualquer jogada trabalhada, o autômato que corre por duas horas sem levantar a cabeça, deixa de entregar um passe simples e se justifica com “foi mal, não vi”, como se a culpa fosse do planeta – e talvez seja, por permitir uma conjuntura astronômica que avalie Juan Manuel Iturbe em trinta milhões de euros. Mais do que serem jogadores ruins, ou simplesmente não vingarem por uma razão ou outra, o que se passa é que a Roma, ainda sem resposta quanto à renovação do maior ídolo de sua história, contrata atletas capazes de gerar uma concreta depressão.

Depressão, afinal, é o que emana todo o caminhar de Edin Dzeko. Se o romance Os Sofrimentos do Jovem Werther causou uma onda de suicídios na Europa é porque nenhuma daquelas vidas perdidas teve a oportunidade de assistir ao bósnio em campo. Eles teriam reconsiderado; teriam pensado que há Mal maior, e que esse Mal atende por Dzeko, uma maria-mole de quase dois metros. Há algo seriamente errado com o pirulão, que sequer esconde o semblante de abatimento. Ele parece ter saído de um disco do James Blunt, tamanha a falta de hormônios. Quanto a Iago Falqué, vale fazer de sua presença no texto a metáfora das contribuições em campo: o nome está aqui, mas não há qualquer diferença. Sequer estamos levando Ibarbo e Doumbia em consideração, supostamente trazidos por Sabatini para fortalecer a jogatina de Fifa online da cúpula engravatada.

A contextualização pode ser extensa, mas simboliza o beco ridículo em que a Roma vem entrando por conta própria. Muito dinheiro foi gasto com atacantes genéricos, e o maior ídolo da história do clube ainda não teve seu contrato renovado. E se Francesco Totti pode não correr muito, isso passa longe de ser novidade. Há anos, para não dizer uma década, o atacante romanista pretere a velocidade em favor da inteligência no que tange à movimentação.

Não é um problema, ou, ao menos, não é um problema novo, surgido entre os 38 e 39 anos. Se o camisa dez já foi um dia veloz – e nem foi tão veloz assim – essa época passou faz tempo, e mesmo na ponta-esquerda de Zeman o capitano comprovou que a inteligência na circulação pode ser infinitamente mais útil à ocupação de espaço do que o uso destrambelhado da velocidade. Não que isso já não seja um corolário evidente do futebol. Por fim, sua qualidade técnica não precisa ser esmiuçada; até a bandana do Gervinho sabe que Totti é um dos poucos jogadores capazes de colocar a bola onde bem entender.

Além disso, ícone entre os italianos comedores, ele continua bonito pra cacete.

Tu vuò fà l’americano
Aqueles que argumentam contra a permanência de Totti recorrem ao raciocínio de que o capitano tem atrasado a Roma, que dele se vê refém há décadas. Alguns afirmam, não sem alguma lógica, que a Roma é maior que Totti. Mas será mesmo?

Em toda a história do futebol, pouquíssimos jogadores foram tão importantes por tanto tempo para um clube quanto Francesco Totti para a Roma. Entre os 23 anos em que atua profissionalmente, mais da metade deles se ocupou de carregar o time nas costas. Nem Giggs nem Maldini aturaram tantos companheiros de nível assustadoramente baixo quanto Totti, que disputou sua primeira Liga dos Campeões aos 25 anos. Sem ele, a Roma seria um clube ainda mais triste, grudado ao âmbito do simpático. Isto é, torcida bacana, uniforme bonito e ponto. Se ele foi duzentas vezes vice-campeão italiano, levantando o troféu apenas uma vez, não é porque, de sua parte, faltou algo: estamos falando da Roma, cazzo, um time mediano de orçamento mediano em uma cidade de pressões explosivas. Quando no alto escalão da Europa, os giallorossi vivem a exceção, não a regra – Francesco Totti é responsável direto pelos momentos de quebra.

James Pallotta costuma expor suas preocupações com brand, marketing e outros termos retirados de reuniões publicitárias nas quais certamente se ouviram as palavras “job” e “brainstorming”. Pallotta visa à expansão da marca; una Roma mondiale. Qual passo seria mais contraproducente do que expulsar o maior ídolo da equipe; seu jogador mais reconhecido – aquele que mais vende camisas, populariza a equipe e traz novidades até no videogame? A essa altura, resta imaginar que tudo não passa de um plano pragmático do presidente: ele espera o momento mais oportuno para anunciar uma renovação de Totti de maneira a parecer que cedeu aos desejos do povo, desviando a atenção de falhas no elenco ou eventuais ausências de reforços.

Não é fácil averiguar se Pallotta, que ainda reside em Boston, realmente gosta de futebol. É possível que ele nunca tenha sentido a catarse dos passes mágicos e finalizações milimétricas de Totti – e isso pouco importa, dado que gostar do esporte não é seu trabalho, e sim gerenciar o clube. A questão, todavia, é que ele nem precisa recorrer ao coração: com o salário baixo do atacante, sua existência em campo é lucrativa para a Roma. Em suma, sequer devemos romantizar o problema todo.

Se no curriculum vitae de James Pallotta deve haver inúmeros grandes feitos comerciais, a verdade é que, na Roma, sua aba de experiência profissional no LinkedIn inclui zero título; uma triste derrota para a Lazio na final da Coppa Italia; duas goleadas patéticas – 7 a 1 para o Bayern e 6 a 1 contra o Barcelona – na competição mais assistida pelos fãs da modalidade e a debandada do setor mais fiel do estádio. Até o momento, a maior conquista da Roma americana é a mudança de escudo, que substituiu o elegante “ASR” por um “ROMA” idêntico aos emblemas de camelódromo. Não vale a pena estender os insucessos ao tratamento direcionado a Totti. Nem mesmo um roteirista extremamente preguiçoso traçaria um caminho tão unidimensional quanto “americanos frios e milionários despejam o maior ídolo”. Ninguém precisa disso: a Roma já é melancólica o bastante.

Como lágrimas na chuva
Os últimos grãos de areia caem da ampulheta. Ainda que permaneça em Roma como jogador, não há maneira de estender a carreira de Francesco Totti por muito tempo. Dar-se conta disso machuca. Não à toa, o estardalhaço após o miracolo do camisa dez contra o Torino acentuou o choque de realidade do romanista: em breve não haverá mais Totti e um ciclo imenso se encerrará, derrubando consigo um pilar da identidade da agremiação, de seus torcedores e dos fãs de futebol em geral. Na internet, crianças e senhores passam a espernear enquanto pedem a renovação do capitano, por si só filtro de reconhecimento do esporte para gerações diversas.

Por décadas, Totti e Roma surgiram como ideias anexas, e separá-las não será indolor. Que ele atue aos 39 anos é uma dádiva aos romanistas; que o faça em alto nível é um feito assustador. Desconsiderar isso, portanto, emularia um cuspe no âmago da relação entre um clube de futebol e sua torcida, aquele mais puro e instintivo, isto é, o do ídolo, ainda por cima o ídolo local. Nunca mais, daqui até o fim dos dias, um jogador será tão importante para a Roma quanto Francesco Totti. Ninguém jamais o alcançará em relevância. A partir do momento em que ele abandonar o futebol, um período mágico terá morrido. Tudo será areia, e do reino de Totti restarão apenas ruínas. Os golaços, os lançamentos e até os cartões serão transcritos no universo da memória, onde o tempo não passa e a imortalidade é palpável.

“Meus gols devem unir, e não dividir”, foi o comunicado mais recente do camisa 10, que em 23 anos uniu mais do que ninguém. Demiurgo, proporcionará lampejos de imortalidade enquanto pisar nos gramados. Cortá-lo seria um pecado mortal.

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4 comentários

  • Caro Ribeirete, primeiramente devo cumprimentá-lo pelo primoroso e estupendo texto, que traduz absolutamente todas as questões que nos deixam com pulgas atrás da orelha.
    A capacidade da Roma em trazer jogadores ruins é assustadora. Fora os que você muito bem ridicularizou, Vainqueur, Digne, o goleiro polonês que protagonizou vexame contra a Fiorentina que milagrosamente há se foi, entre muitos outros.
    Szczesny, que faz grande temporada e é mais goleiro que Alisson, voltará ao Arsenal. São seguidos erros que resultam nos seguidos vexames.
    A resistência do Spalleti é ridícula. Totti tem mais qualidade que todos os outros jogadores de ataque juntos. Minha grande esperança não é que a Roma traga grandes nomes, mas que se livre desses parasitas não merecedores de vestirem essa camisa e que só envergonham a nós, romanistas.

  • Salvei esse texto nos meus favoritos. Totti briga fácil pelo título de melhor jogador italiano da história.
    Fico pensando "Se" ele tivesse jogado vários anos com companheiros de bom nível, ou "SE" tivesse ido para o Real Madrid, no auge físico dos 25 anos.
    Existe um notícia antiga sobre o Maradona comentar que teria sido perfeito um time com Zidane e Totti, alguns metros à frente.

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