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Gianni Brera, o rei dos neologismos

Um dos personagens mais importantes da história do futebol italiano nunca precisou entrar em campo ou estar ligado a um clube para alcançar este mérito. Você pode não saber, mas muitos dos termos que são utilizados regularmente em conversas, transmissões ou textos sobre o esporte da Velha Bota foram criados por Gianni Brera, o mais importante jornalista esportivo do país. Em um 19 de dezembro, em 1992, o lombardo falecia, mas deixava o seu enorme legado: o rei dos neologismos é, para a Itália, o que Nelson Rodrigues ou João Saldanha são para o Brasil.

Breve biografia

Giovanni Luigi Brera nasceu em San Zenone al Po, uma cidadezinha da Lombardia localizada às margens do rio Pó e a 60 quilômetros da grande Milão. Ainda menino, se mudou para a metrópole e começou a se envolver com suas duas paixões: o futebol e a escrita. A partir dos 15 anos, Brera foi lateral do time de seu liceu em campeonatos municipais e chegou também a defender a seleção milanesa em torneios regionais – além de ter passado pela escolinha do Milan, embora fosse um fanático torcedor do Genoa. No ano seguinte, também começou a ter sucesso na mídia impressa.

O precoce Gianni, de 16 anos, escrevia artigos para a seção esportiva de uma publicação semanal e chamava a atenção por sua forma inovadora de escrever. Gianni amava a palavra, mas queria seguir carreira como jogador – algo que seria difícil, pois já tinha idade avançada para ser selecionado em categorias de base. Assim, acabou convencido por seu pai e sua irmã a terminar os estudos em Pavia, cidade próxima a San Zenone.

>>> Leia também: Gianni Brera, o primeiro jornalista a abordar aspectos táticos no futebol italiano

Antes mesmo de se formar em Ciências Políticas pela Universidade de Pavia, em 1943, Brera já trabalhava no Guerin Sportivo, uma das principais publicações esportivas da Itália e a mais longeva do mundo (foi fundada em 1912). Gianni foi contratado em 1937, aos 18 anos, e logo se destacou como um dos grandes nomes do jornal, que só na década de 1970 viraria revista.

Brera é mais conhecido por seus textos escritos, mas ele também se dedicou à televisão (LaPresse)

Embora já fosse um jornalista conhecido, Brera precisou servir ao exército italiano durante a II Guerra Mundial como paraquedista, mas se refugiou na Suíça (neutra no conflito) em 1944 para fugir do monitoramento da Gestapo, a polícia política alemã. Grangiuàn se opunha ao nazifascismo e, com sua inteligência e conhecimento de estratégias do inimigo, ajudou os partisans a sabotarem diversas missões dos soldados de Adolf Hitler e Benito Mussolini nos Alpes.

Com o fim da guerra, Gianni Brera pode voltar a fazer o que melhor sabia: jornalismo. Em 1945, ele ganhou a oportunidade de trabalhar na Gazzetta dello Sport, o mais importante diário esportivo do Belpaese, e quatro anos depois, se tornaria um dos diretores da “rósea”. Ele tinha somente 30 anos e, até hoje, ninguém ocupou um cargo tão alto com esta idade na imprensa italiana.

Dali em diante, Brera circulou com prestígio nos maiores veículos de mídia impressa (Il Giorno, Il Giornale, La Repubblica, L’Équipe e novamente pelo Guerin e pela Gazzetta) e também foi comentarista de televisão, nos programas Il processo del lunedì e L’Accademia di Brera – o segundo, apresentado por ele, fazia um trocadilho com a homônima famosa escola de Belas Artes de Milão. O jornalista chegou a se candidatar duas vezes a cargos políticos, pelos partidos Socialista e Radical, mas não se elegeu.

Brera morreria em 1992, aos 73 anos, em um acidente de automóvel – um carro que vinha no sentido oposto perdeu o controle e se chocou com o carro do jornalista, matando os três ocupantes do veículo. Casado com Rina Gramegna, eles viveram juntos por quase 50 anos e tiveram quatro filhos. Três deles seguiram carreira artística: Carlo virou pintor, Paolo é escritor e Franco atua como músico.

Após sua morte, a família doou seu enorme acervo de livros a bibliotecas públicas e seus pertences (máquinas de escrever, roupas e cachimbos) a museus e a leilões beneficentes. Todo mês, familiares deixam em seu túmulo em San Zenone um cigarro toscano, o seu favorito. Além disso, como forma de homenagem, a arena cívica de Milão recebeu seu nome em 2002.

Grangiuàn e seu inseparável fumo (Mondadori/Getty)

O estilo e as ideias de Grangiuàn

Inovador e moderno, Brera conhecia muito sobre a língua italiana e sabia como ninguém mesclar sua veia literária para criar narrativas romantizadas (até eruditas) sobre o futebol, um tema extremamente popular. Neste sentido, seus maiores méritos foram o de introduzir palavras ou expressões comuns da língua italiana ou de seus dialetos e adaptá-las ao mundo do futebol, além de ter sido um onomaturgo – um verdadeiro criador de neologismos e jogos de palavras, talento digno de um profundo conhecedor do vernáculo. Apesar disso, tinha gente que não gostava – como o multiartista Pier Paolo Pasolini, também amante do futebol, que escreveu em 1970 que a linguagem de Brera era “de segunda divisão”.

De posse de suas indefectíveis máquinas de escrever Olivetti, Brera produziu muitos termos famosos, alguns deles presentes em nosso glossário e até mesmo dicionarizado na língua italiana ou mesmo em outras. Os exemplos mais clássicos são a palavra “libero”, adotada mundialmente para se referir aos zagueiros que tinham liberdade de movimentação, ou mesmo a expressão “Derby d’Italia”, que designa o clássico entre Inter e Juventus. Os apelidos “Cavaliere” para Silvio Berlusconi, “Beneamata”, para a Inter, e “Vecchio Balordo”, para o Genoa, também são obras do lombardo – veja a lista completa de terminologias e apelidos no final do texto.

Com sua personalidade resoluta, Brera acreditava piamente no catenaccio como forma de expressão ideal para o futebol italiano. Nos anos 1950 e 1960, quando Nereo Rocco, Helenio Herrera e Gipo Viani colocavam o esquema em ação, o jornalista elaborava análises sobre o assunto em seus textos – era uma espécie de teórico do ferrolho. Metódico, ele sempre preferia os esquemas defensivos e filosofia baseada em poupança de energia e transições em contra-ataque (ou “contropiede”, em sua linguagem), elementos que ele considerava ideais ao biotipo físico italiano – coisas que ele adaptava de seus estudos políticos, econômicos e de táticas de combates.

Intelectual boêmio, Brera usou a criatividade para cunhar diversos termos ainda correntes no futebol italiano (Mondadori/Getty)

Seu apreço incondicional pelo catenaccio fazia com que ele criticasse muito jogadores talentosos, mas que ajudavam pouco no trabalho de marcação. Por isso, Brera muitas vezes questionou a utilidade de craques como Gianni Rivera, Giancarlo Antognoni e Evaristo Beccalossi para seus clubes – e até para a seleção.

Sua ideia coletiva e defensivista de futebol encontrou ferrenhos adversários entre admiradores destes jogadores, torcedores e personagens do meio do futebol, mas também na própria imprensa – um deles foi o jornalista Gino Palumbo, um autêntico representante da “escola napolitana”, que pregava um estilo de jogo mais ofensivo. Fato é que, ainda hoje, há muitos críticos e também seguidores de Brera (os “brerini”) nos meios de comunicação e também entre torcedores e treinadores. Ele fez escola e suas ideias ainda pautam debates.

Gianni também deu algumas bolas fora na carreira. Bancou que a Itália não ganharia a Copa do Mundo de 1982 e prometeu publicamente que andaria a pé de sua casa até um santuário religioso na Lombardia. Um mês depois que a seleção de Enzo Bearzot faturou o tricampeonato, ele chamou a imprensa para fotografá-lo no trajeto, vestido a caráter, com roupa de peregrino em penitência. Brera também foi um ferrenho crítico do Milan de Arrigo Sacchi, que venceu tudo o que podia.

Outra grande importância do jornalista para o mundo do futebol foi a recuperação do documento que atestava a fundação do Genoa (o clube mais velho da Itália) em 1893. A ata que instituiu a agremiação lígure andava sumida, mudando de donos, até que Brera a obteve e a guardou em seus arquivos. Após o falecimento do mais ilustre torcedor rossoblù, seus filhos devolveram o documento ao clube, que o expõe em seu museu.

Gianni deixou legado inestimável para o futebol da Itália (Mondadori/Getty)

O inventor

Quem deu tantos apelidos na carreira, também recebeu alguns. Brera era chamado de Gran Lombardo pelos colegas e também foi até retratado em um livro. Grangiuàn (“grande Gianni”, em dialeto lombardo), foi um personagem baseado em Brera, presente no livro Azzurro Tenebra, de Giovanni Arpino – o romance contava a falimentar campanha da Itália no Mundial de 1974. Duas alcunhas que não dão conta de todo o universo criativo de Brera, que apresentamos abaixo.

Apelidos criados por Brera
Accaccone (agazão, em referência às iniciais HH) para Helenio Herrera,
Accacchino (agazinho, idem) para Heriberto Herrera,
Beneamata (a bem-amada) para a Inter
il Cavaliere (o lorde) para Silvio Berlusconi,
Penna Bianca (pena branca) para Armando Picchi,
il Rosso Volante (o vermelho voador) para Eugenio Monti,
Baron Tricchettracche (o barão barulhento) para Franco Causio,
Abatino (frangote) para Gianni Rivera (cunhado por Livio Berruti, difundido por ele),
Rombo di Tuono (barulho do trovão) para Gigi Riva,
Schopenhauer para Osvaldo Bagnoli,
Pulicione o Puliciclone para Paolo Pulici,
Bonimba para Roberto Boninsegna,
Piper para Gabriele Oriali,
Piscinin para Franco Baresi,
Simba para Ruud Gullit,
Re Puma e Prestipedatore para Diego Maradona,
Massinissa para Pietro Paolo Virdis,
Deltaplano para Walter Zenga,
Stradivialli para Gianluca Vialli (em referência ao violino Stradivarius, criado em Cremona, cidade de Vialli),
Mazzandro para Sandro Mazzola,
Basletta para Giovanni Lodetti,
Felix-de-Mondi ou Nuvola Rossa (nuvem vermelha) para Felice Gimondi,
Vecchio Balordo (velho tolo) para o Genoa,
Derby d’Italia para o duelo Inter-Juventus,
Conileone (coelho-leão) para José Altafini.

Termos cunhados pelo jornalista

Atipico: o jogador de características pouco usuais para a função que desempenha em campo.
Centrocampista: meio-campista, a rigor. Quando Brera criou o termo, os meias eram chamados de “mediano” ou “mezz’ala” pelos italianos.
Contropiede: contrapé, literalmente, e contra-ataque, no significado real. O termo tem origem na segunda fase das danças nas tragédias gregas.
Cursore: alas que conduzem a bola em alta velocidade e de forma objetiva, como uma seta (cursor).
Disimpegnare: afastar a bola da área de defesa, às vezes lançando ou apenas passando para um companheiro.
Euclideo: para Brera, o futebol obedece a normas da geometria euclidiana. Daí os italianos começaram a chamar os jogadores com capacidade de organizar o jogo de “geômetras” ou dizem que eles são capazes de “dar geometria” à equipe.
Eupalla: deusa protetora do futebol e do jogo bonito, criada por ele ao juntar um radical grego (eu; bom) e a palavra “palla” (bola, em italiano).
Goleador: o termo existe em português, mas gol em italiano é “rete”. A palavra surgiu a partir da língua espanhola e do toureiro (“toreador”).
Incornare: chifrar a bola; fazer um gol com uma cabeçada potente, aproveitando cruzamento.
Intramontabile: sinônimo de jogador que conserva seu condicionamento físico e vitalidade até o final de uma longa carreira.
Libero: o defensor que não faz marcação individual e sobe ao ataque; palavra dicionarizada também em alemão, espanhol, francês, inglês e português.
Melina: segurar a bola, cadenciar ou cozinhar o jogo. O termo tem origem em um jogo de mesmo nome, similar ao “bobinho” brasileiro, mas praticado com um chapéu.
Padania: esse não tem a ver com futebol, mas com geopolítica. A planície padana ocupa a região norte da Itália e Brera começou a se referir a ela como se fosse um país (a Padânia). Hoje existe até uma seleção regional, que disputa campeonatos não regulamentados pela Fifa, e até movimentos separatistas.
Pretattica: estratégia de um treinador, que consiste em blefar e esconder as cartas para o jogo seguinte.
Rifinitura: outra palavra de origem grega. A rifinitura é o ato de dar o último passe para a conclusão da jogada (meias ofensivos são geralmente chamado de “rifinitori” na Itália).

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