Serie A Seleção italiana

A Azzurra em camisas negras: como o fascismo influencia o futebol italiano há um século

Na Itália, o futebol nunca foi fascista nem o fascismo foi o futebol, mas a atividade contém traços de um movimento que não foi enterrado. Esporte e política andaram juntos de forma simbólica, com o governo autoritário explorando o desporto como propaganda político-ideológica de forma inédita e intervindo na organização do jogo, influenciando a opinião popular sobre os estrangeiros que garantiram títulos mundiais, e na ascensão dos contramovimentos durante os anos finais do regime e após a morte de Benito Mussolini.

A Gazzetta dello Sport, principal publicação do segmento, foi criada em 1896 para noticiar as paixões nacionais. O fim da década de 1910 indicava novos caminhos em relação ao esporte italiano, que colocava ciclismo, atletismo e corrida de cavalos acima das demais. A Primeira Guerra Mundial esboçava seu término, as tropas retornavam à casa, o campeonato de futebol começava a inchar e o periódico abria espaço cada vez mais para o desporto que se consolidava entre os populares – a propaganda citada acima não foi por acaso, portanto.

A bandeira tricolor da Itália e o azul da Casa de Savoia: efeitos da unificação (Image Photo Agency)

A unificação da “Nova Itália”

Para entender o fascismo é preciso voltar alguns séculos no tempo. O início do processo do Risorgimento é esparso pelos anos. Maquiavel escreveu em O Príncipe (1512) que os estados italianos precisavam se unir; outros filósofos contemporâneos dele também diziam que a Itália tinha de se estreitar para não cair nas mãos de Áustria, Espanha ou França, nações mais poderosas. Certamente, porém, a expulsão das tropas francesas no início do século XVIII e o fortalecimento do Ducado de Savoia, com capital em Turim, auxiliou no processo de unificação porque garantiu base geopolítica para o desenvolvimento.

A segunda metade do século XIX é marcada pela influência da Revolução Francesa e pela indisposição ao Congresso de Viena e à Santa Aliança (coligação formada pelas monarquias dos impérios russo, austríaco e o Reino da Prússia). O Congresso, de 1815, organizou a Itália em pequenos reinos e ducados. Alguns destes ficaram sob controle estrangeiro: o Reino das Duas Sicílias, ao sul, era comandado pela Casa de Bourbon, francesa; o Reino Lombardia-Veneza e os ducados de Modena, Toscana, Lucca e Parma ficaram sob controle dos Habsburgos, austríacos; o Reino da Sardenha permaneceu com a italiana Casa de Savoia; e a região central, com Roma e a costa leste, de Ancona a Bolonha, era posse da Igreja Católica; eram os Estados Pontifícios.

Os movimentos de liberdade, igualdade e fraternidade universal do homem eram semelhantes aos defendidos pelas revoluções e se faziam presentes nos grupos de italianos iluministas – círculos que muitas vezes eram clandestinos. Neste contexto nasceram as ideias nacionalistas na península, em meio a um ambiente altamente dominado pelo clero. As três tendências para a formação do novo estado-nação eram a dos neoguelfistas, que defendiam o agrupamento dos reinos a partir de uma monarquia constitucional liderada pelo papa; republicanos; e monarquistas que desejavam uma Itália organizada por Savoia.

A Carbonária, republicana, era um desses movimentos que agia como sociedade secreta pelos reinos das Duas Sicílias e da Sardenha. Ele era parte das revoltas constitucionalistas que aconteciam ao mesmo tempo em Portugal e na Espanha. O grupo era contra a dominação dos comandantes napoleônicos na Itália ao mesmo tempo que admirava as opiniões liberais do general, e mantinha a vontade da unificação e independência da nação acima de qualquer outra maneira de ver. Os carbonari eram, sobretudo, anticlericais.

Em 1934, delegação italiana encontra Mussolini antes da Copa do Mundo (Getty)

Ao assumir o posto de rei sardo-piemontês, o liberal Carlos Alberto manteve os grupos revolucionários no norte com voz ativa e declarou guerra contra a Áustria. A Primeira Guerra da Independência terminou com uma derrota vexatória da Itália e o monarca abdicou do trono. Seu filho Vittorio Emanuele II, então, o sucedeu no trono, em 1849, e indicou Camilo Benso à posição de primeiro-ministro. Conhecido como Conde de Cavour, Benso era um rico estadista que se pôs em evidência ao defender leis que retiraram poderes da Igreja e diminuíram as festas religiosas.

O primeiro-ministro piemontês se juntou a Napoleão III contra o Império Austríaco. O parisiense, participante da Carbonária durante a juventude, apoiava a unificação italiana por ter ideias nacionalistas como as do tio Bonaparte. A diferença da Segunda Guerra da Independência em relação à anterior é que, com a ajuda militar e a expertise estratégica dos franceses, a Áustria sofreu baixas consideráveis (como nas Batalhas de Montebello, Magenta e Solferino, em 1859), perdeu o domínio de Módena e Lombardia, e viu Parma e Toscana se rebelarem contra o seu poder.

Concomitantemente às guerras nos limites ao norte, o revolucionário Giuseppe Garibaldi e seus Camisas Vermelhas organizaram grupos igualmente violentos em prol da liberação do Reino das Duas Sicílias, acabando com a farra dos Bourbon. Os territórios tomados ficaram sob a jurisdição do monarca Vittorio Emanuele II, que atacou as regiões papais, se juntou à Prússia, causou um novo massacre na Áustria e retomou o ducado de Veneza. O Reino da Itália, proclamado em 1861, demorou uma década para se apossar de Roma, com o papa Pio IX se declarando prisioneiro, trancafiado na nova capital.

As potências europeias buscavam fortalecer suas respectivas economias e zonas de influência por meio da expansão colonial na virada do século XX. Alemanha, Bélgica, França, Inglaterra e a própria Itália empregavam o darwinismo social para dominar outros povos – desde nações vizinhas ao continente africano. A ideia em voga era a de superioridade racial ou, ao menos, a alegação de uma missão civilizatória dos brancos.

Quatro anos depois, em 1938, a escalada militar é nítida: delegação retorna do Mundial e, uniformizada, vai ao encontro do ditador, cuja mensagem aos jogadores foi “vencer ou morrer” (AFP/Getty)

Giovanni Giolitti renunciou ao cargo de primeiro-ministro em março de 1914 e seu sucessor, Antonio Salandra, não concordava com a neutralidade do país ante a luta contra os austro-húngaros. Após os conflitos da independência, a Itália mantinha um relacionamento bom com o império e a Alemanha (Tríplice Aliança), mas ao mesmo tempo se aproximava diplomaticamente de França e Inglaterra. Permanecer ao lado da Áustria, portanto, significava “perder” os territórios que almejava: Dalmácia, Ístria e Trieste.

Mussolini e o seu Partido Socialista estavam divididos naquele ano. Depois de se oporem a Giolitti e à invasão na Líbia (entre 1911 e 12 para recuperar os territórios de Tripolitânia e Marrocos dos turcos-otomanos), o político também discordava do envio de tropas para a Primeira Guerra Mundial. Os protestos de larga escala na Emília-Romanha e nas Marcas, conhecidos como Semana Vermelha, colaboraram para a mudança de entendimento: Mussolini começava a acreditar que o país tinha condições de derrubar as monarquias que reprimiam os socialistas e que a guerra seria o processo final da unificação.

Rapidamente Mussolini perdeu prestígio dentro do partido. Atuando como jornalista, era secretário do Avanti!, órgão de imprensa oficial socialista, mas aderiu ao intervencionismo, onde encontrou e fez amizade com futuristas, liberais conservadores e nacionalistas radicais. Com a diferença de posicionamento e sob acusações de corrupção por colegas de esquerda, se demitiu do jornal e, depois, foi expulso do PSI. Ainda em 1914, ele afirmou que o socialismo rígido errou em reconhecer a luta bélica como formador de identidade e lealdade à nação acima da distinção de classes. Nesse contexto de sindicalismo revolucionário, o político tornou-se convencido que somente o nacionalismo conseguiria originar um movimento eficaz de se alinhar ao liberalismo burguês para moldar a “nova Itália”.

Entre 1918 e 1920, as greves eram comuns nas cidades do Norte, principalmente Turim e Milão, com ocupações nas indústrias locais. Episódios similares se estenderam organicamente para Gênova, Florença e Livorno. O Biennio Rosso (o Biênio Vermelho, em tradução literal) mostrou que não eram apenas os metalúrgicos que protestavam: agricultores se engajaram nas manifestações nas regiões do Vale do Pó (entre o Piemonte e o Vêneto) e em terras não cultiváveis ao Sul, ao passo em que as minorias eslava e alemã bradavam por autonomia nas fronteiras continentais.

A Itália se lançou como potência da Europa nos anos anteriores à Primeira Guerra. Era um progresso sem precedentes na península. Por outro lado, o Belpaese permanecia como uma área majoritariamente agrícola e com enorme diferença econômica entre o Norte industrializado e o Sul. Estar do lado vencedor do conflito significava pouco: a crise socioeconômica estava presente no biênio posterior aos anos de batalha. Os alimentos eram escassos, a inflação era absurdamente alta, o desemprego aumentava e a instabilidade política permanecia viva. Paralelamente, as instituições liberais perdiam crédito.

Em 1925, os fascistas interviram de forma decisiva no futebol (La Domenica del Corriere)

Marcha sobre Roma e o primeiro ‘roubo’ no futebol

“O fascismo ascendeu com a filiação dos jovens rurais nas regiões afetadas pela agricultura estremecida”, escreveu Kevin Passmore em Fascism: A Very Short Introduction. Essa burguesia era o resultado dos veteranos de guerra que estavam convencidos de que seus compromissos eram basicamente lutar contra o socialismo e a Igreja. Os grupos de mesma ideologia (Milícia Voluntária para a Segurança Nacional, também chamados de squadristi) reagiram ao biênio com uma campanha violenta de intimidação e morte aos “inimigos” mencionados acima.

O movimento ganhou novos recrutas no ápice da agitação dos trabalhadores e camponeses a partir de 1921. Ainda que Mussolini permanecesse relutante em cortar todos os vínculos com alguns princípios do socialismo, a aristocracia estava feliz com o plano de destruir as organizações católicas e comunistas. Essa elite entendeu que a ideologia era melhor que a esquerda porque, entre outras ideias, os fascistas não condenavam a propriedade privada. Os conservadores ficaram ainda mais tranquilizados quando o Partido Nacional Fascista (PNF) foi organizado no mesmo ano, abraçando a economia liberal e a monarquia.

A Marcha Sobre Roma foi o divisor de águas político porque os fascistas conseguiram apenas 35 de 535 cadeiras no parlamento. Mesmo assim, Mussolini e cerca de 25 mil camisas negras exigiam a indicação do chefe do partido à posição de primeiro-ministro – caso contrário, ameaçavam, haveria violência. O golpe ganhou força através da combinação entre a pressão popular na ruas e o apoio composto da elite política, dos empresários e dos agricultores, o que fez com que o rei Vittorio Emanuele III, cedesse e, em outubro de 1922, nomeasse o líder das milícias ao cargo executivo. Em contrapartida, Marvin Perry, em Civilização Ocidental: Uma História Concisa, afirma que o fascismo triunfou porque os liberais não tinham mais forças para se opor, e não pela própria força da nova visão ideológica.

No pré-Guerra, como falamos, Mussolini chegou a trabalhar como jornalista para jornais de esquerda. Uma das publicações em que atuou, La Lotta di Classe, associou Leandro Arpinati ao seu quadro: um anarcoindividualista que também escrevia nas páginas periodicamente. Ele, bem como o primeiro-ministro, começou a pensar diferente durante o intervencionismo. O ferroviário filho de comerciante socialista se tornou um dos líderes dos squadristi em Bolonha e foi personagem crucial na primeira história controversa do futebol italiano.

O campeonato de 1924-25 foi dividido em dois grupos (Norte e Sul) nos quais os campeões de região decidiram a taça na finalíssima. A decisão do Norte foi, tal qual ano anterior, entre Bologna e Genoa. Os favoritos eram os genoveses, detentores do título, mas o adversário tinha um ataque muito forte, formado por Angelo Schiavio, Bernardo Perin e Giuseppe della Valle, e queria a vingança pela última final, que fora tumultuada com invasão de campo na Emília-Romanha e teve o Genoa declarado como vencedor.

O Bologna ingressa em campo para a primeira partida da maratona de finais com o Genoa, em 1925 (Storie di Calcio)

Foram cinco jogos – distribuídos entre junho e agosto – para chegar ao resultado derradeiro. Como os pênaltis não eram um critério para desempate na época, o agregado após o segundo jogo, no Marassi, levou o confronto para o campo neutro de Milão. O ex-jogador Giovanni Mauro foi escolhido para apitar o confronto; ele era um dos mais respeitados e autoritários árbitros da época. Arpinati estava entre os 20 mil torcedores presentes na Lombardia. O Genoa ganhava por 2 a 0 quando, no segundo tempo, o goleiro abriu os braços para defender um chute à queima-roupa. O árbitro assinalou escanteio para o Bologna.

Observados pelo squadrista, um grupo de camisas negras invadiu o campo e cercou Mauro por cerca de 15 minutos. O árbitro mudou a decisão e assinalou gol para os bolonheses, que empataram a partida a oito minutos do fim. O Grifone não aceitou o resultado, tampouco a disputa de tempo extra. As regras eram claras: em caso de invasão de campo, o Genoa tinha de ser apontado como vitorioso – mais uma vez. De acordo com o historiador John Foot, a pressão do líder fez com que Mauro recuasse no relatório da partida. A torcida, assim, foi absolvida.

No quarto jogo, em Turim, novo empate. As torcidas entraram em conflito na suntuosa estação Porta Nuova e os relatos sobre o episódio são imprecisos: alguns alegam que os tiros disparados a partir do trem que carregava os emilianos feriram de dois a quatro torcedores; outros, 20. A indignação popular levou os incidentes no Piemonte ao Parlamento. A Federação queria manter o mando na cidade, alterando somente a condição do estádio para portões fechados, mas as autoridades locais proibiram a realização – o jogo foi marcado para Milão, no início da manhã.

O jornal Il Resto del Carlino aponta “o grande interesse de Arpinati” como crucial para a retomada do Bologna nas finais, uma vez que ele estava à frente dos descontos de 50% no valor dos ingressos – outra publicação, La Voce Sportiva, escreveu no ano anterior que o time perdeu o campeonato porque não tinha torcedores suficientes para apoiá-lo. Assim, o modal que saiu da Emília-Romanha parou em Módena, Reggio, Parma e Piacenza para buscar apoiadores. Os bolonheses acabaram vencendo por 2 a 0.

Durante muitos anos, houve um conflito de versões sobre o clima do jogo cinco daquelas finais – que ficaram conhecidas como disputa pelo “scudetto das pistolas”. A versão de que a quinta partida foi realizada sob pressão de fascistas e da cavalaria da polícia à beira do gramado só foi desmentida em 2020, quando o pesquisador bolonhês Mirko Trasforini encontrou, na Cinemateca de Milão, uma raríssima filmagem do duelo, na qual é possível verificar que tudo correu normalmente no gramado de más condições do campo da fábrica automobilística Officine Meccaniche. O vídeo completo, acima, traz raras imagens dos times, de Vittorio Pozzo, técnico bicampeão mundial com a Itália, dos treinadores Hermann Felsner e William Garbutt, e até do árbitro ítalo-brasileiro Achille Gama.

Até um passado não muito distante, os torcedores dos grifoni chamavam o Bologna de “ladrão”. Ainda que parte dos fãs emilianos afirmem que havia um buraco na rede daquele jogo 3 e que a invasão se deu pelas duas torcidas, os seguidores fascistas decidiram a versão que seria noticiada. Em 1926, Arpinati assumiu a prefeitura da cidade e se tornou presidente da Federazione Italiana Giuoco del Calcio (FIGC) sob indicação do Duce, na manifestação completa do caráter antidemocrático do regime.

Mussolini assiste o dérbi romano no estádio do Partido Nacional Fascista (RCS)

Contrarrevolução e oriundi

A ideia de nação única e unida do fascismo lutava contra a supervalorização do estrangeirismo. Tanto é que alguns italianos, há não muito tempo, acreditavam que o navegador português Fernão de Magalhães se chamava Ferdinando Magellano. A italianização do vocabulário se deu nos mais variados ambientes: palavras como cornetto (croissant), albergo (hotel), malfattore (gangster), pranzoalsole (picnic) e Vosintone (Washington) passaram a existir.

A lei foi seguida no esporte, com a alteração de goal/autogoal por rete/autorete e de trainer por allenatore. Os vários Football Club se tornaram Associazione Calcio. No fim da década de 1920, a Inter aglutinou com a Milanese para formar a Ambrosiana – contam até que o partido abominava o nome “Internazionale” pela referência à Internacional Comunista – e o Genoa se transformou em Genova. Ainda existem outros exemplos na primeira divisão daquele período: a Unione Sportiva Biellese trocou para Associazione Sportiva Biellese; o nome completo da Fortitudo, uma das equipes incorporadas na Roma, era Società Fascista Fortitudo Pro Roma; o Tivoli virou CXIV Legione Tivoli, em homenagem à milícia do governo; o Sporting Club Foggia se transformou em Unione Sportiva Foggia; o Modena Football Club virou Modena Calcio. E por aí vai: até em 1939, por obrigação, o Milan Associazione Sportiva virou Associazione Calcio Milano.

O campeonato crescia em popularidade e o governo queria usá-lo como propaganda. A mensagem era inédita e diversa. Mussolini foi o primeiro líder político a usar o esporte como ferramenta de distribuição de uma ideologia, sendo depois imitado por Adolf Hitler, Emílio Médici e outros generais brasileiros, Augusto Pinochet e Recep Tayyip Erdogan, citando um exemplo mais recente. Josef Stálin tentou algo parecido na União Soviética, porém, só queria colocar os esportistas à prova em competições somente após a certeza de vitória. Por um lado, os símbolos nacionalistas italianos eram usados aos montes: do fascio littorio na camisa da seleção ao presidente do Olimpia pedindo bandeiras das cidades italianas para adornar a inauguração do estádio Cantrida, no Fiume, para mostrar força de irmandade nacional.

Também temos vários exemplos de palcos construídos justamente para impressionar. Os modelos mais expressivos são o palco romano da final do Mundial de 1934, o Nazionale Fascista; o Porta Elisa, em Lucca; o Artemio Franchi, em Florença – originalmente batizado de Giuseppe Berta em homenagem ao mártir nacionalista morto na violência que varreu a península no entreguerras –; o Atleti Azzurri d’Italia, da Atalanta, que teve como primeiro nome Mario Brumana, para laurear um militar fascista morto antes de o regime começar; o Filadélfia, a casa perdida do Torino; o Olímpico de Turim, originalmente nomeado de Municipale Benito Mussolini; e o Littoriale. Este último de Bolonha, hoje Renato Dall’Ara, com os mesmos moldes da obra original, foi personagem de um episódio importante na história.

Mussolini viajou à Emília-Romanha para a inauguração do estádio, em 1926. Diziam os fascistas que a construção era uma forma de comemorar a Marcha. O nome Littoriale, inclusive, é uma alusão ao fascio littorio. Arpinati foi o responsável por ordenar o levantamento do campo e, portanto, quis levar o primeiro-ministro de volta à estação após o pronunciamento. O líder quase foi assassinado na limusine aberta. Historiadores escrevem que o tiro foi dado por fascistas dissidentes ou pelo serviço secreto, contudo, no tumulto, o garoto Anteo Zamboni, 15 anos, foi identificado pela multidão como o agressor e espancado até a morte.

Estátuas do líder se erguiam no país: uma delas, no Littoriale, era feita de bronze, tinha a autoria do escultor Giuseppe Graziosi e completava a imponente Torre de Maratona. A obra tinha Mussolini nas vestes de hábil cavaleiro. Após a queda do fascismo, em 1943, a fúria da população levou à decapitação do monumento. A brônzea cabeça do ditador, então arrancada, foi exposta em praça pública, para ser alvo de cusparadas e apupos – um camisa negra salvou e enterrou o crânio do Duce para preservá-lo, mas isso é outra história. O corcel, então solitário, só foi fundido para dar origem a outras estátuas quatro anos depois.

A estátua de Mussolini no interior do estádio de Bolonha (Comune di Modena)

Até a queda do regime, porém, Mussolini resistiu bastante. O ditador sofreu outros dois atentados em 1926. Os acontecimentos serviram de pretexto para que o Estado se inclinasse ainda mais ao totalitarismo. Enquanto a família de Zamboni foi exilada, novas leis foram introduzidas: a pena de morte era novamente legal (fora extinta em 1888), todos os partidos opositores ao PNF foram banidos e a polícia secreta, os camisas negras, foi implementada.

O futebol, cada vez mais popular, estava sofrendo. A FIGC precisava lidar com os conflitos entre árbitros e jogadores/dirigentes – a segunda turma pressionava e agredia a primeira. Ao derrotar o Genoa, em 1925, o Bologna enfrentou a Alba Roma na grande final e o adversário pouco ofereceu resistência (que tampouco foi páreo para a Juventus no ano seguinte). A Liga Norte, onde estavam os times mais fortes, ganhou poder junto ao Comitê Olímpico. O presidente do CONI era Lando Ferretti, veterano de guerra e membro do PNF, portanto, o órgão era controlado diretamente pelo regime. Bem como Arpinati no fim da década, o dirigente recebeu a nomeação pessoal do topo da hierarquia.

A Carta de Viareggio, assinada em agosto de 1926, reformou o futebol. Para começar, o documento instituiu o profissionalismo do esporte na península. Outras determinações legais foram a abolição da associação dos árbitros, a criação das séries A e B e o banimento da maioria dos estrangeiros – uma proibição alinhada com os princípios nacionalistas da ideologia que afetava, principalmente, austríacos e húngaros que atuavam na antiga Prima Divisone, agora batizada Divisione Nazionale.

Caminhando três anos para o futuro, Arpinati formatou as competições à Inglaterra, no formato de todos contra todos – curiosamente, na Itália o modelo ficou conhecido como “girone all’italiana” (“chaveamento à italiana”), o que mostra que o conceito de pós-verdade é bem mais antigo do que parece. O fato é que a Serie A, tal qual a conhecemos, foi criada durante a ditadura fascista. Outro fato é que o torneio nacional ajudaria o regime a difundir suas ideias.

Para além das interferências de nomenclatura, a influência atingiu os clubes menores. Decerto era interessante do ponto de vista político-ideológico a existência de um campeonato que abrangesse as várias regiões da Itália. Os fascistas se sentiam atraídos pela antiga capital Florença, Nápoles e Roma, cidades de importância histórica e econômica, entretanto, os centros não contavam com representatividade esportiva e dificilmente seriam páreo para as potências do limite norte, como Genoa, Milan, Ambrosiana-Inter, Torino e Juve.

“E se existissem menos times nessas regiões?”, pensaram. Assim, a Carta, em outra de suas consequências, fez com que clubes fossem fundidos ou extintos. O Internaples, fusão entre Naples e Internazionale di Napoli, virou Napoli; Libertas e Firenze se fundiram para criar a Fiorentina; a Pro Vercelli absorveu a Cappuccini; o Verona incorporou a Fundazione Marcantonio Bentegodi e a Scaligera; a Salernitanaudax, que já era uma fusão, renasceu como Salernitana; o Bari “recebeu” o Liberty Bari e o Ideale Bari; e Alba Audace, Roman e Fortitudo viraram a Roma. A Lazio não foi incluída no pacote da capital, mas por uma razão diferente.

Sim, Mussolini era associado laziale. O político adorava esgrima e natação – e não necessariamente era bom em qualquer das atividades –, entendia muito pouco sobre futebol, mas adorava dar pitacos no esporte popular. Apesar de ser sócio do clube para o qual os filhos Bruno e Vittorio torciam (antes, quando moravam em Milão, eram interistas), não se importava tanto assim com a Juve empilhando troféus. Também gostava de toda a veneração ideológica recebida no estádio de Bolonha. Manter relações saudáveis com o clube próximo à família real era importante, bem como fazer o jogo por outras vertentes, admirando o então presidente da Lazio, Remo Zenobi, ou paparicando equipes vencedoras, como o Bologna daqueles tempos. Lembramos: o esporte era um veículo de propaganda política no regime.

A Inter, como Ambrosiana, usou até outro uniforme durante um tempo: Meazza, sentado ao centro, não parece feliz (Wikipedia)

O citado Zenobi, aliás, foi o responsável por levar o brasileiro Amílcar Barbuy, ex-Corinthians e Palmeiras, à Itália. O filho dele, Amílcar, costumava passar a tarde brincando com a prole e os empregados no quintal do ditador. A Lazio, por outro lado, manteve seu nome porque o general fascista Giorgio Vaccaro era vice-presidente do clube – outra razão era possuir mais de uma equipe na cidade para rivalizar com Turim e Milão. No campeonato de 1926-27 ainda foram vistos a nova Fiumana, fusão entre Olympia e Gloria do Fiume, e La Dominante, o resultado da mescla entre Andrea Doria e Sampierdarenese de Gênova.

O fascismo é contraditório. “A mudança proposta pela ideologia”, conta o professor de teorias políticas de Oxford, Roger Griffin, “de mirar o futuro olhando o passado é um bom exemplo disso”. De acordo com os intelectuais totalitários, as ideias fascistas são revolucionárias porque a construção da utopia precisa que as estruturas (partidos, igrejas, sindicatos e até as famílias) estejam niveladas. Já que as pessoas são diferentes e diversas, a única forma de colocá-las em seu lugar é com o terror. O uso da força altera a percepção dos interesses individuais e coletivos, pois o indivíduo perde os direitos que estão fora da comunidade.

Os radicais não estavam contentes durante a metade da década de 1920 e pediram uma revolução. Enquanto acontecia a campanha eleitoral de 1924, a violência contra os socialistas era mantida. O assassinato do porta-voz vermelho Giacomo Matteotti depois do discurso no parlamento contra o governo resultou em protestos da esquerda, dos liberais e os extremistas voltaram a clamar por uma ação para tirar a velha guarda do poder.

O Duce tinha a palavra final nas decisões de sua ditadura, todavia, obviamente não conseguia abraçar a totalidade dos assuntos. A pasta de que ele realmente tomou conta foi a das relações internacionais, pois uma nova radicalização do regime foi inaugurada nos anos 1930. Uma das razões era explicada pela conquista de novos territórios para solver o grande problema: a economia – com uma expansão darwinista, os italianos teriam mais espaço.

Havia um caráter inclusivo (e igualmente exclusivo) nessa abrangência. A “grande Itália” almejada pelos fascistas contou com a exploração da imagem dos imigrantes. A captação dos oriundi durante aquela década era exaltada na medida em que eles ajudavam a nação em resultados positivos. A vitória auxiliada pelos estrangeiros filhos da pátria era uma excelente propaganda para o regime.

A Argentina foi um dos principais destinos da diáspora italiana de décadas anteriores. Buenos Aires crescia à medida que a urbanização acometia a capital rapidamente e com a imigração do outro lado do Atlântico. O bairro de La Boca tinha uma igreja de origem peninsular, um jornal em italiano e até um teatro para ópera por volta de 1870 e, na década de 1910, quatro em cinco pessoas nascidas no país eram descendentes do Mediterrâneo e do centro-leste europeu. Raimundo Orsi era um destes: crioulo para os argentinos e filho da pátria para os italianos.

Seleção italiana que estreou na Copa de 1934 tinha três oriundi no time titular: os argentinos Monti e Orsi e o brasileiro Filó (STAFF/AFP/Getty)

Gladiadores estrangeiros

A quebra da bolsa de Nova Iorque em 1929 ressoou na Europa. Os Estados Unidos, de mercado próspero e especulativo, mantinham relações comerciais com uma lista de países europeus que ainda se recuperavam da Primeira Guerra. A União Soviética, blindada pela isolada economia socialista, pouco foi afetada pela Grande Depressão – ao mesmo tempo em que as mortes por inanição, tifo e cólera se alastraram durante aquela década em territórios bolcheviques e na Ucrânia nacionalista, pela escassez de carne e grãos, no período conhecido como Grande Fome. A Itália, entretanto, não mediu esforços para realizar a Copa do Mundo de 1934, visto que o primeiro Mundial, no Uruguai, foi bem comentado além-oceano. O governo escolheu o general Vaccaro para mediar a situação com a Fifa e se comprometeu a pagar por todos os gastos da organização.

A competição era de extrema importância estratégica para o regime. Era a chance de os italianos mostrarem a capacidade de disciplina interna e vender a ideia de bem-estar social para o mundo inteiro – e começou fazendo isso após alinhar a escolha do país-sede à comemoração dos 10 anos da Marcha.

A política olhava o futebol com bons olhos porque o poder do esporte era uma forma de auxiliar e corroborar a propaganda fascista – tanto é que Mussolini e a imprensa, já censurada, festejaram a vitória do ciclista Gino Bartali no Tour de France, do cavalo Nearco no Grand Prix de Paris, e da velocista Claudia Testoni, no Europeu de Atletismo, todos em 1938. Os jogos e as conquistas italianas na Copa em casa integraram aquele novo corpo de um regime vendido ao povo com bons olhos através das publicações porta-vozes que surgiram depois de 1924, como La Boxe Illustrata, Gran Sport, Il Sud Sportivo e Il Tifone.

Nos anos 1920 e 1930, os italianos eram obrigados a fazer o saluto romano: nem todos se animavam com o gesto (Wikipedia)

O veterano da Primeira Guerra Vittorio Pozzo era um ex-corredor e ex-jogador que estudou na Suíça e na Inglaterra. Quatro vezes comissário técnico, assumiu a seleção pela quarta vez em 1929. A escolha representou o amadurecimento das ideologias em vigência no governo e um dos pontos altos de um time determinado a vencer a qualquer custo. Seu treinamento era militaresco e paternalista porque ele próprio acreditava no comando de equipe e na motivação individual dos atletas, que jamais deveriam se acomodar.

Pozzo presumia que o melhor método de jogo para a Itália era um híbrido entre o famoso WM, com um meio-campista a mais, e a tática de atacante central móvel do Wunderteam austríaco dos anos 1930. Embora o meia argentino Luis Monti fora reinventado (com a bola, construía; quando atacado, marcava o atacante adversário), a Squadra Azzurra de 1934 ficou conhecida fora do país justamente por outros predicados.

“No décimo ano da era fascista, os jovens são preparados para a batalha e para a luta, e mais para o jogo em si; a coragem, a determinação, o orgulho de gladiador, sentimentos escolhidos pela nossa raça, não podem ser postos de lado.”
Editorial do La Stadia, 1932.

A masculinidade pela qual prezava o regime era um dos pilares do jogo viril. Os convocados eram gladiadores incumbidos da missão de defender a honra da Itália como nação. Giuseppe Meazza era classudo, no entanto, ficou combativo justamente para se encaixar ao modelo de Pozzo. Os oriundi Orsi e Filó também, assim como Giovanni Ferrari e Angelo Schiavio. Nas quartas de final, a partida contra a Espanha ficou marcada pela violência: três ou quatro espanhóis (os registros são inconclusivos) saíram por lesão e o excelente goleiro Ricardo Zamora levou tanta pancada que não pode atuar no desempate, disputado no dia seguinte. Na semifinal, Monti foi o responsável por tirar o astro austríaco Matthias Sindelar de campo.

O corpo fala: ao nunca deixar o braço em riste, Meazza claramente esnobava qualquer associação com o fascismo (Getty)

Para Pozzo, o melhor time que ele treinou foi o da Copa de 1938. A Itália fez um Mundial menos “sujo”, mas o atleticismo similar e o dinamismo defensivo mantinham a equipe no patamar mais alto entre as seleções: os azzurri faturaram o bicampeonato do mundo e o ouro olímpico, em 1936. O triunfo na Copa da França também teve outros contornos. O primeiro foi a influência direta do regime em toda a campanha.

A intervenção de Vaccaro após a vitória na prorrogação contra a Noruega, no primeiro jogo, encerrou a carreira internacional do zagueiro fascista Eraldo Monzeglio, então aos 31 anos. Para o general, Alfredo Foni tinha de ser o titular – ele entrou no jogo seguinte. Não bastou a amizade do ídolo do Bologna, então na Roma, com a família Mussolini. O ditador, aliás, seria protagonista do “grande prêmio” que aguardava os jogadores ao retornarem à Itália, segundo o jornal L’Illustrazione Italiana. A maior honraria, de acordo com a publicação, seria o encontro com o Duce.

O próprio ditador havia aumentado a tensão antes do torneio ao discursar de forma incisiva sobre a política antifascista francesa, hostilizando a Frente Popular da França dias antes do pontapé inicial e declarando apoio ao general Francisco Franco na Guerra Civil Espanhola. Também mandou um telegrama informando aos jogadores que era “vencer ou morrer”. Conta o La Nazione: “a revolução fascista reacendeu o vigor da raça no esporte. Ela criou o espírito esportivo entre as massas, no qual o espírito bélico é tido como um descendente direto”.

Por ordem de Mussolini, a Itália usou preto num Mundial pela única vez em sua história (Fifa)

O regime, outrossim, ordenou a utilização do uniforme preto ao enfrentar os donos da casa nas quartas de final. Como a França era a mandante e vestia azul, a Itália deveria ir a campo de branco, mas Mussolini obrigou o uso das camisas negras como forma de propaganda. O fato, único na história da Nazionale em Copas, foi prontamente respondido com vaias por parte da torcida francófona e pelas centenas de exilados italianos que habitavam em Paris e haviam comparecido ao Olímpico de Colombes, nas cercanias da capital.

O outro contorno foi o êxito justamente em terras francesas, lar do escritor Maurice Barrès. No romance Le Jardin de Bérénice, ele, considerado um dos inventores da ideologia que se espalhou pela Itália, vê a nação como produto da história e tradição dos camponeses na terra natal. A narrativa de 1890 conta que um imigrante jamais seria um herói. Três anos mais tarde, italianos que trabalhavam nas salinas de Aigues-Mortes – ocupação paupérrima e sazonal feita por imigrantes porque a França sofria com a falta de mão de  obra – foram perseguidos e assassinados pelos franceses, após rumores de que haviam feito o mesmo para com os locais.

Algo que gerou discussões desde o título em 1938 foi a posição política do treinador. Afinal, Pozzo era ou não fascista? No nacionalismo imperativo do entreguerras, o técnico e o time tinham determinados comportamentos que favoreciam o discurso de envolvimento com o regime. O treinador declarou que os jogadores convocados para o Mundial de 1934 eram favoráveis ao PNF – e foi obrigado a isso –, mas o craque Meazza, endinheirado, não se esforçava para levantar o braço.

O clima entre Meazza e Étienne Mattler, capitão francês, era amistoso: mais uma amostra de que o craque não reproduzia a beligerância fascista (Getty)

Em Colombes, Pozzo forçou seus comandados a repetirem o saluto romano depois de terem sido vaiados por uma torcida francesa irritada. O técnico piemontês também obrigou os jogadores a visitarem Oslavia e Gorizia, campos de batalha friulanos durante a Primeira Guerra, numa viagem para enfrentar a Hungria. Nesse mesmo caminho para o amistoso em Budapeste, os atletas tiveram de parar no Sacrário de Redipuglia, cemitério militar na fronteira com a Eslovênia. Se a Squadra Azzurra carregava o Fascio Littorio no peito, símbolo romano de lei e ordem apropriado pelo regime, o hino fascista Giovinezza foi tocado na entrada do time nesta partida.

Outros indícios mostram o contrário: ele, em algumas ocasiões, cantava La leggenda del Piave, música patriota que ficou conhecida pela resistência no período do autoritarismo, e teria organizado um movimento antifascista, levando comida aos civis em Biella, pequena comuna no Piemonte, e auxiliando prisioneiros de guerra aliados a fugir. Segundo o filho dele, Pozzo era um monarquista-liberal ou churchilliano – mas “certamente não fascista”.

Por fim, o regime foi o grande vencedor daquela segunda metade da década de 1930, pois conseguiu positivar toda a sua propaganda através do futebol. O jornal Il Littoriale enalteceu a organização do evento de 1934 e creditou a responsabilidade pelo título ao líder. Os turistas que viajaram à Itália para a Copa elogiaram a limpeza e a segurança das cidades-sede e, inclusive, espalharam ao retornar à casa que o Duce havia recuperado o país. O futebol tirou o atraso de seus vizinhos de continente para, em oito anos, conquistar todos os títulos possíveis, positivando o projeto estrutural, a competitividade do campeonato nacional e a formação de jogadores. No imaginário popular ficou a impressão que a Itália do Duce havia deixado o caos para trás; o Belpaese era um exemplo de modernidade. O grande povo estava unido.

“Nessa loja se vendem apenas produtos italianos”: aparentemente inofensivas, manifestações comezinhas revelavam ideário de supremacia racial (L’Undici)

A negação do outro

Uma série de leis racistas foram aprovadas pelo governo italiano entre 1937 e 1938 – entre elas a proibição do madamato, a união entre soldados italianos e as mulheres africanas. Ao enfrentar o Brasil na semifinal na França, a imprensa chegou a dizer que a vitória azzurra era um “triunfo da inteligência contra a força bruta dos negros”. A Gazzetta dello Sport escreveu que a “para além da vitória atlética, resplandece a vitória da raça”.

Excelentes jogadores estavam presentes nos títulos mundiais e olímpico. Para citar apenas alguns, Alfredo Foni, Angelo Schiavio, Giuseppe Meazza, Silvio Piola, Gino Colaussi, Luis Monti, Raimundo Orsi e Enrique Guaita. Os três últimos são naturais da Argentina; dois deles merecem atenção especial. Na Copa de 1934, Guaita foi o autor do único gol na semifinal contra a Áustria e Orsi empatou a decisão contra a Checoslováquia – decidida por Schiavio.

Nos anos 1920, o futebol italiano movimentava muito mais dinheiro que o rioplatense. O atacante argentino Julio Libonatti foi um dos que abriram as portas do movimento migratório ao ser o primeiro oriundo albiceleste a trocar um clube da Argentina por um italiano. O presidente do Torino e dono da indústria Cinzano, Enrico Maroni, gostou do futebol apresentado pelo jogador e o persuadiu a deixar o Newell’s Old Boys, em 1925.

A migração dos descendentes nascidos na Argentina, no Uruguai – e, por vezes, também os brasileiros e os norte-americanos – era boa para o regime, também como forma de propaganda, e para os jogadores, que tinham a oportunidade de receber um salário polpudo como nunca antes. Renato Cesarini, então na Juventus, ganhava 4 mil liras mensais em 1929, honorário quatro vezes maior que a média de um advogado ou médico. Orsi era ainda mais abonado: salário de 8 mil liras por semana, bônus de 100 mil liras pelo acordo de transferência e um Fiat 509.

Guaita foi um dos oriundi que colaboraram com os títulos mundiais da Itália (Wikipedia)

Sob as ideias de Griffin sobre a ideologia, o fascismo alargou a noção de pertencimento ao receber de braços abertos os oriundi, os quais Pozzo até associou a soldados. Esses sul-americanos que nasceram na Itália ou eram descendentes diretos comprovaram o cunho nacionalista, mas só até o regime não querer mais. Os três rimpatriati de 1934, por exemplo, não receberam as medalhas da Copa.

O caráter expansionista explica a Itália invadindo a Abissínia (atual Etiópia) em 1935. A Segunda Guerra Ítalo-Etíope era uma questão de orgulho nacional ferido, contudo, as forças etíopes deram uma surra nos italianos apesar da tecnologia bélica e das armas do exército fascista dizimarem mais de meio milhão de civis e combatentes inimigos para a anexação do território. Em 1936, o regime do Duce vivia seu ápice popular. A propaganda racista já existia e a brutalidade militar permanecia irretocada.

Guaita e Orsi foram convocados para se juntar ao exército logo no começo da guerra. O primeiro tentou escapar para a França em 1936 juntamente com Andrea Stagnaro e Alejandro Scopelli, também descendentes e companheiros na Roma. O oriundo que marcou na final contra os checos não escapou na mesma ocasião, mas o desfecho foi igual.

O governo acusou o grupo de covardia, contrabando e roubo. As conspirações especulam que o ex-presidente da Roma Renato Sacerdoti, judeu que se demitiu cinco meses antes do escândalo nacional, tenha auxiliado os jogadores de alguma forma, enquanto o técnico Pozzo escreveu em sua biografia somente que Guaita foi “forçado a fugir”.

Weisz, à direita, é um dos símbolos da brutal perseguição aos judeus pelo nazifascismo (Bologna FC)

Perseguição

“O trabalho vigoroso e decisivo de defesa da raça empreendido pelo regime terá naturalmente suas conseqüências benéficas também no campo esportivo, embora, em termos de atletas militantes, não haja tantos judeus. Em relação ao mundo do futebol, que é o que nos interessa mais de perto, há uma área onde é transplantado, acreditamos, uma representação justa de estrangeiros israelitas: e é a dos treinadores. […] Bem, que eles – todos vieram depois de 1919 – tenham que fazer as malas em seis meses, nós realmente não nos arrependemos […] deixando os lugares para muitos ex-jogadores da raça italiana. A recuperação da raça está, portanto, destinada a ter mais do que consequências saudáveis ​​no futebol”.
Coluna na Calcio Illustrato com o título “Recuperação”

A política colonial fascista, como já mencionado, era ao mesmo tempo expansionista e racista. O censo realizado em 1938 pelo Ministério do Interior revelou que havia um judeu para cada mil italianos na península, de acordo com os arquivos que permanecem no Arquivo do Estado de Roma. Enquanto Mussolini quis impor essa razão para os ramos de medicina, advocacia e educação universitária, os judeus foram excluídos por completo das funções estatais.

A Carta de Viareggio, por sua vez, bania a maioria dos estrangeiros do campeonato. As exceções foram os oriundi, os albaneses que puderam atuar nos clubes após 1939, ano em que o país foi anexado pelo Reino da Itália – os iugoslavos também foram liberados pelo mesmo motivo durante a Segunda Guerra Mundial. Entretanto, as leis e campanhas antissemitas daquela década, “derivadas do conceito científico de raça e de obsessão quase homoerótica pela perfeição do corpo”, segundo escreveu Franklin Foer em Como o Futebol Explica o Mundo, fizeram com que os danubianos saíssem completamente da cena pública no país.

Os judeus austro-húngaros eram promitentes estudiosos do esporte naquele período. O fortalecimento do corpo e o investimento nos desportos eram produtos de uma doutrina política para lutar contra o antissemitismo. Até os Jogos Olímpicos de Berlim em 1936, 18 das 52 medalhas da Áustria foram conquistadas por judeus. O futebol e o sionismo do Hakoah, em Viena, e do seu ex-jogador Béla Guttmann, que se transformou no técnico campeoníssimo por São Paulo e Benfica, com passagem também pelo futebol italiano; Nicolas Ladany, treinador húngaro do Botafogo; e o magiar Gusztáv Sebes, comandante da Hungria entre 1949 e 1957, também provém da mesma fonte judaica.

A Juventus de Carcano, técnico tão vitorioso quanto perseguido pela bárbara ideologia (Wikipedia)

Na Itália, especificamente, podemos listar alguns danubianos que sofreram com os agentes antissemitas. Jeno Konrad perdeu o emprego na Triestina e rumou para a França, Imre Hermann foi mandado embora do Treviso e o Torino demitiu Gyula Feldmann. Italianíssimo, Giorgio Ascarelli, fundador do Napoli, teve seu nome retirado do estádio que sediou jogos no Mundial italiano justamente por ser judeu. Carlo Carcano,  tetracampeão treinando a Juventus, foi demitido do clube por “razões pessoais” enquanto, paralelamente, comentavam que ele era homossexual – atestando o desprezo do regime às minorias durante a campanha mais persecutória da ditadura.

O austríaco Hermann Felsner foi a exceção – não era judeu, porém. Ao contrário de seus compatriotas danubianos que aplicaram novos métodos de jogo na Itália, ele permaneceu na península mesmo após a Carta e foi tetracampeão pelo Bologna. Retornou ao país após a Segunda Guerra para treinar o Livorno até 1950. Todos os citados acima sobreviveram aos anos de barbárie.

O menos afortunado foi Árpád Weisz. Ex-jogador que virou técnico após a proibição de estrangeiros ratificada pela Carta, o húngaro venceu o scudetto com a Inter em 1930 – foi ele quem promoveu a estreia de Meazza, então aos 16 anos – e teve o auge da carreira ao levar o Bologna ao bicampeonato em 1936 e 1937.

Weisz deixou o país com a família no biênio seguinte, enquanto os bolonheses lideravam o campeonato – Felsner acabou sendo o substituto. O treinador foi buscar refúgio em solo francês, no início, e depois na Holanda. Juntamente com a esposa e os filhos, cidadãos italianos, ele foi capturado pelos nazistas em agosto de 1942 e enviado à Auschwitz para não mais retornar. Elena, Roberto e Clara foram imediatamente assassinados em uma câmara de gás; Árpád foi mantido vivo para realizar trabalhos forçados e somente em 1944 teve o mesmo destino de seus entes queridos.

Weisz, à direita, teve de parar de jogar futebol por causa das leis raciais fascistas (Arquivo/Inter)

Erno Erbstein havia acabado de chegar para ser o treinador do Torino quando o Manifesto da Raça, publicado em 1938, fez com que ele fugisse para a Hungria. A história dele daria facilmente um filme, usando as palavras da CNN. Ex-jogador de Fiume e Piacenza, o magiar era um dos mais promissores técnicos da península ao atingir sucesso com Bari e Lucchese antes de ser contratado pelo Toro. A perseguição fez com que ele fugisse para Budapeste: na capital, montou um negócio com o irmão.

Entre outubro e dezembro de 1944, Erbstein foi enviado a um campo de concentração enquanto a esposa, Jolan, e as filhas, Marta e Susanna, permaneceram em um convento que fabricava roupas para os soldados. A história conta que o treinador encontrou com um antigo colega das forças armadas de Habsburgo no campo e foi esta amizade que garantiu a sobrevivência dele durante a prisão nazista. Ajudados pelo líder católico do Vaticano, Angelo Rotta, Erbstein e família fugiram até conseguirem proteção de diplomatas suecos. O técnico retornou à Itália após o fim da guerra e reiniciou o trabalho no Torino. Ele estava entre as vítimas da tragédia de Superga.

Há ainda o insólito caso do Casale. O clube foi fundado em 1909, pelo professor Raffaele Jaffe, e conseguiu o primeiro título, interrompendo a hegemonia da Pro Vercelli, cinco anos depois. Um dos grandes responsáveis pelo troféu era o excelente meio-campista local Luigi Barbesino. O jogador encerrou a carreira em 1920 e iniciou-se em outras atividades. De acordo com o livro The Italian Military Governorship in South Tyrol and the Rise of Fascism, o ex-meia foi um dos líderes do partido fascista nas regiões de Trento e Bolzano.

Barbesino ainda voltou ao esporte como treinador, liderando o próprio Casale e a Roma. Quando a Alemanha invadiu a Polônia, o ex-esportista se alistou na Força Aérea e conseguiu a função de observador das missões. Ele morreu em abril de 1941, em algum lugar da costa siciliana – os aviões que saíram para o voo jamais retornaram à base. Jaffe, por sua vez, era judeu. A milícia fascista o capturou nos primeiros meses de 1944 e o enviaram para o campo de concentração de Fossoli, apenas uma parada antes do destino final em Auschwitz.

Garbutt não era judeu, homossexual, comunista e nem era considerado “subversivo” pelo regime: ainda assim foi perseguido pelo fascismo (Genoa CFC)

William Garbutt permaneceu na Itália por mais anos que Erbstein, mas foi exilado assim que o regime declarou guerra contra a Grã-Bretanha. O inglês foi o primeiro treinador gringo do campeonato ao ser apontado para a função pelo Genoa em 1912 e introduziu os primeiros treinos modernos nos campos do Belpaese. A Itália entrou oficialmente na Segunda Guerra em junho de 1940, devido à intransigência e à hostilidade da diplomacia inglesa. Com o avanço dos exércitos germânicos, a batalha era a última possibilidade de o país peninsular conquistar a hegemonia do Mediterrâneo e de parte da África e do Oriente Médio às custas dos britânicos e da França para atingir o objetivo final: a formação de um novo Império Romano.

O treinador foi orientado a deixar o país, contudo, desejava permanecer porque os genoveses estavam na decisão da Coppa Italia. Após a final perdida, ele se escondeu juntamente com a esposa, Anna, no interior da Ligúria. Os dois foram presos no mesmo mês e o governo garantiu a permanência do casal no país devido à “grande simpatia ao fascismo”. Os Garbutt, então, viveram exilados numa vila nas montanhas perto de Salerno até o assassinato de Mussolini. O treinador retornou ao Genoa em 1946.

Garbutt não era judeu nem negro: sofria preconceito por ser inglês; algo quase impensável atualmente. Segundo o Duce, os ingleses constituíram “o povo dos cinco jantares”. A campanha antibritânica surtiu tanto efeito que a antipatia perseverou: apesar de alguns atletas da ilha floparem na Itália durante a década de 1960, outras razões que aumentaram a hostilidade contra os ingleses foram as críticas dos jogadores que geralmente não iam bem no país e terminavam por encontrar refúgio no álcool, além dos eventos que culminaram na tragédia de Heysel.

As medidas persecutórias da década de 1940, obviamente, impediram os judeus de levarem uma vida normal na Itália. Alguns continuaram atuando no esporte mediante a falsificação de documentos, contudo, após 1943, a sua sobrevivência dependia de um esconderijo. É importante frisar que mesmo eventos que pareciam avanços acabaram agindo como catalisadores involuntários do genocídio hebreu. A vitória dos Aliados no sul da Itália foi decisiva para a perdição dos judeus que ainda viviam mais ao norte em território italiano – seja na própria península ou nas ilhas da Dalmácia. Aproximadamente 9 mil foram retirados da periferia romana e de bairros adjacentes (Garbatella e Prati) para serem enviados diretamente ao campo de Birkenau. Com medo de perder a guerra, os fascistas aceleravam o que chamavam de “solução final”.

Uma rara foto da Ponziana, clube italiano que chegou a disputar o Campeonato Iugoslavo (Sky)

Armada iugoslava em Trieste

O historiador Ivo Herzer escreveu no Washington Post que a península não entregou judeus aos alemães em momento algum, apesar de Mussolini não se opor às vontades dos nazistas. Quem teria auxiliado no processo foram o general Mario Roatta e outros oficiais, que sabotaram a decisão do Duce e, posteriormente, mudaram a cabeça do líder. Em 1941, a família de Herzer saiu de Zagreb para a Dalmácia, ocupada por italianos, na perspectiva de cruzar o Mar Adriático para chegar na península. Ali, o grupo foi atacado pela guerrilha sérvia.

Friul-Veneza Júlia é a região mais oriental da Itália contemporânea. As fronteiras com a Eslovênia e a pequena distância para a Croácia – que, durante a guerra, foi um estado-fantoche da Alemanha nazista – sugere a conexão histórica entre os povos. A formação demográfica da população do território é historicamente diversa, mas com predominância de italianos sobretudo nos grandes distritos e na costa; os eslavos geralmente residiam nas comunidades rurais. As minorias mais representativas contavam com germânicos, eslovenos, croatas e sérvios, principalmente na cidade de Trieste.

O irredentismo pretendia reivindicar territórios que, supostamente pertenciam à Itália por estarem ligados à terra-mãe pelos costumes ou pela língua. Essencialmente essas regiões buscadas pela doutrina eram o Friuli e Trentino, de administração austro-húngara mesmo após a Terceira Guerra da Independência, em 1866. A Ístria foi anexada à Itália e o Reino da Iugoslávia tomou a Dalmácia na bonança entre os grandes conflitos do século XX. As duas regiões testemunharam mais de 50 anos de nacionalismo severo e com grupos étnicos desejando a unificação de suas áreas às respectivas pátrias.

A Triestina de Nereo Rocco, em 1947: clube sofreu bastante com os efeitos da guerra em Trieste (Sky)

Desde a década de 1920 que os fascistas queriam italianizar a população eslava, com brutalidade contra os grupos eslovenos e croatas na Ístria – como a homogenização do povo era uma prática comum no período, a minoria italiana na Dalmácia também sofreu com a violência dos nacionalistas iugoslavos. E por que isso tudo é importante?

A Triestina conseguiu chegar à Serie A em 1929. Quatro anos depois, o governo construiu um estádio na região, chamado Littorio. Algumas cenas do jogo de abertura contra o Napoli podem ser assistidas no YouTube. O clube era produto da fusão entre Ponziana e Trieste, realizada antes da aprovação da Carta. Apesar das campanhas medianas na competição nacional, a região foi responsável pelo desenvolvimento de jogadores importantes entre as décadas de 1920 e 1930, como Colaussi e Pietro Pasinati.

>>> Leia mais: Triestina, a estrangeira da Serie A

Trieste foi invadida pelo exército nazista em 1943 e a cidade, com uma das maiores comunidades judaicas em território italiano, foi a única a ter um campo de concentração. A brutalidade assolou o distrito a partir da mudança estratégica de Josip Broz Tito, que deixou de atacar somente as unidades alemãs e croatas na Iugoslávia dividida. O veterano da Guerra Civil Espanhola enviou as tropas em direção à Itália, onde foi realizada uma ocupação de 40 dias para buscar, além dos soldados inimigos, opositores do comunismo. Outra vez os números não são precisos, mas ao menos 3 mil residentes – e um sem-número de alemães e eslavos – foram mortos e jogados nas foibes, como eram conhecidas as colinas aos pés dos Alpes.

O mistão do Spezia que venceu o “apócrifo” Campeonato da Alta Itália, em 1944 (Sky)

A liberação nazista pelo marechal – auxiliado pela Grã-Bretanha e pelos Estados Unidos – influenciou no futebol do distrito. A Ponziana, que retornou à vida dois anos após a fusão com o Triestina e se aglutinou com outro clube (Edera), foi recrutado para jogar a liga iugoslava. Como a região estava miserável depois da administração dos Aliados, a equipe se viu obrigada a aceitar o acordo para conseguir dinheiro – e o país vizinho estava disposto a investir pesado no projeto.

Bancado por Belgrado e com a torcida trabalhadora e comunista, pró-Tito, ao seu lado, o time passou a se chamar Amatori. Enquanto o jornal nacionalista Il Piccolo mal falava sobre o clube que optou por jogar em outro país (e quando falava, chamava os atletas de “traidores”), a imprensa eslava comentava sobre a sorte da agremiação. Só que a aventura durou três temporadas porque a liga, com Dinamo Zagreb, Partizan e Estrela Vermelha, era forte demais para a equipe provinciana.

No primeiro ano, escapou do rebaixamento por motivos políticos; no ano seguinte, terminou a competição dois pontos acima do macedônio Vardar, enviado para a divisão inferior; em 1948, o dinheiro cessou e o clube foi o lanterna. O período coincidiu com a ruptura de Tito com Josef Stálin. Entre as explicações estão a deslealdade iugoslava para com os bolcheviques (de acordo com os soviéticos) ou o orgulho nacionalista e a recusa do marechal em transformar o país em um satélite da União Soviética (para os eslavos); e a rejeição de Stálin da ideia titoísta de criar um bloco com Albânia, Bulgária e Grécia sem o controle moscovita.

Na Itália, o futebol também persistiu ativo durante a Segunda Guerra. Era uma tentativa do regime em passar tranquilidade à população; de mostrar que tudo estava sob controle. Entretanto, a organização do Campeonato da Alta Itália (que soa como as competições sem licença do Pro Evolution Soccer), deveras regionalizada, foi o modelo da desordem do regime que não conseguiu unificar o país através do esporte.

Armando Frigo: jogador e herói de guerra (Il Messaggero)

Inclusive, algo que possibilitou a realização do torneio foi a Linha Gótica nazista, que demarcou a “segurança” da península a fim de retardar o avanço dos Aliados: da Emília-Romanha até o norte o controle era dos nazis. O Spezia sagrou-se campeão na temporada de 1943-44, batendo o Torino, do técnico Pozzo, que se formava para a dominante equipe pré-Superga. A Federação reconheceu o título honorário ao Spezia, com alguns jogadores lígures e predominância de bombeiros locais, somente nos anos 2000.

O meio-campista oriundo Armando Frigo, nascido nos Estados Unidos, deixou justamente o Spezia quando a competição nacional foi paralisada no ano anterior. Com a guerra batendo à porta, o jogador se alistou no serviço militar para honrar o país que o acolheu – a decisão está diretamente relacionada a uma viagem de trem que ele fez enquanto jogava pela Fiorentina, na qual encontrou um jovem soldado de perna amputada que fora licenciado do exército.

O subtenente Frigo foi chamado para administrar a Dalmácia e combater iugoslavos dissidentes. No entanto, depois da destituição de Mussolini e o armistício anunciado, a divisão comandada pelo ex-jogador passou a ajudar os partisans e a combater os nazistas. Depois de algumas semanas, a tropa se viu solitária nas montanhas, em área hoje pertencente à Montenegro. O grupo cedeu aos alemães quando não havia mais armamentos e comida, e os militares da alta patente (quatro oficiais, contando com Frigo) trocaram suas vidas pelas dos outros soldados italianos.

Erbstein e os garotos da Lucchese: perseguidos pelo fascismo e membros da resistência ao regime (Il Tirreno)

A resistência

Nem todos os italianos eram a favor do regime fascista e, evidentemente, também havia opositores ao Duce no futebol. Bruno Neri evidenciou seu posicionamento em relação ao governo em 1931, na inauguração do estádio Giovanni Berta, atual Artemio Franchi, em Florença. No momento em que os colegas faziam o saluto romano para saudar as autoridades, ele manteve a posição de descansar dos militares, com os braços baixos, entrelaçados e apoiados às costas. Uma afronta cheia de sarcasmo ao belicismo fascista.

O lateral transformado em meio-campista ficou mais conhecido pelo extracampo do que pelo trabalho entre as quatro linhas. Filho da burguesia, Neri trilhou um caminho diferente dos aristocratas liberais, que viram no fascismo uma maneira de afastar o perigo vermelho. Ele se alistou na Resistência Partisan, guerrilha que tinha como missão confundir e sabotar as artilharias nazifascistas, por intermédio do primo, Vittorio.

Durante a Segunda Guerra, o primo foi preso, torturado e deportado para o campo de concentração em Mauthausen, na Áustria. Neri ficou ainda mais ativo junto ao grupo que começava a rumar para o norte no momento de rendição italiana, contudo, ele permanecia também focado nas atividades esportivas: disputou o campeonato seguinte, de 1943-44 pelo Faenza, clube de sua homônima cidade natal. O meio-campista morreu em julho de 1944 em uma troca de tiros com a patrulha alemã em Marradi, comuna próxima à cordilheira dos Apeninos.

O maior diário esportivo recorda Bruno Neri e sua luta antifascista (Gazzetta dello Sport)

Neri era um dos rebeldes que foi treinado por Erbstein na Lucchese antifascista de 1936 e 1937 – e, nessa passagem, chegou a ser convocado para a Nazionale. Do Bari, o treinador capturou o meio-atacante Bruno Scher, declaradamente comunista. Nascido na Ístria, com origens eslavas, recusou a mudar o nome para Scheri. O meia Gino Callegari, emprestado pela Sampierdarenese, não foi cumprimentado por Mussolini em uma partida em Roma. Ao se aproximar dele, o Duce disse: “ah!, o anarquista” e passou pelo atleta.

O lateral Libero Marchini, igualmente anarquista, protagonizou uma cena célebre depois da vitória ante os austríacos na final dos Jogos Olímpicos de Berlim, em 1936: ele fingiu uma coceira no joelho para não fazer o saluto romano. Aldo Olivieri, goleiro campeão do mundo na França, não tinha posição tão firme como seus companheiros, mas também foi contrário à ditadura.

O goleiro da Pro Patria, Antonio Turcani, morreu aos 23 anos por um tiro anônimo enquanto viajava pela fronteira com a brigada Passerini. As guerrilhas antirregime se concentraram no norte da península sobretudo pelo auxílio das tropas de Hitler na região. Essa é uma das razões da fuga do rei Vittorio Emanuele III para o sul, em 1943. Exilado de Roma, ele articulou a rendição com o marechal Pietro Badoglio e os Aliados.

Marchini em Berlim: a “coceira” que entrou para a história junto à medalha de ouro (Getty)

Do outro lado, Dino Fiorini, defensor lateral do Bologna, optou por fazer parte da Guarda Republicana Nacional. A única documentação verídica consta que ele foi morto por partisans em 1944. Cecilio Pisano, rimpatriato uruguaio, esteve entre um grupo de fascistas que tomou conta de uma redação de jornal. Amigo de um coronel da SS, a unidade paramilitar alemã, diz-se nos registros que ele buscava desorientar as forças opositoras a Mussolini.

Entre os antifascistas de esquerda, a propósito, não há exemplo mais notável no futebol italiano que o Livorno. A associação é automática. Isso porque a cidade vem de uma história de multiculturalismo e subversão política. A urbe costeira foi construída para proteger Pisa. Enquanto governada pelo Reino de Florença, o porto erguido em seus domínios foi uma importante parada da rota de navegação entre a Itália e parceiros comerciais. Armênios, judeus, gregos e persas cooperaram na construção de uma sociedade cosmopolita, com senso de unidade e respeito para com estrangeiros.

Outro fator digno de nota foi a formação em casa do Partido Comunista, stalinista, em 1921. Existe até uma curiosidade sobre Cristiano Lucarelli: o ídolo recente foi criado em Shanghai, um projeto residencial de classe baixa construído pelo regime durante a década de 1930. É por isso que a torcida livornese – e os ultras da Brigada Autônoma (BAL) – costumam esticar bandeirões de Stálin, Cuba, Rússia e de símbolos antifascistas ainda hoje, enquanto entoam os versos de Bandiera Rossa ou Bella Ciao.

Político populista e empresário do setor naval, o napolitano Achille Lauro fez sua fortuna sob a bênção do fascismo (Arquivo/Napoli)

O presente derivado do passado

Alguns historiadores apontam que a operação grega em 1940 custou muito a Hitler. O ditador alemão intercedeu para consertar o “erro estratégico” de Mussolini nos Bálcãs: as tropas germânicas estavam preparadas para atacar a Rússia, mas tiveram de se dividir porque a Itália estava seguindo operações sem qualquer plano estratégico, de acordo com o diário do ministro de Relações Estrangeiras e genro do Duce, conde Galeazzo Ciano. Ao invés de atacar a tropa britânica em Malta, para dominar o Mediterrâneo ou tomar a base inglesa em Alexandria, os italianos levaram uma surra na França antes de conquistar o protetorado anglo-saxão na Somália, batalhar no Canal de Suez e no Egito, e invadir a Grécia.

O Duce, além de comandante supremo das Forças Armadas, tinha a responsabilidade pelos três poderes e tinha a última palavra em (quase) tudo. Parte da culpa pelas falhas grotescas na guerra estavam sob suas asas: o exército tinha armamento inadequado; os lentos bombardeiros (em relação aos britânicos) não eram de longo alcance; e a Marinha contava com poucos porta-aviões. Em termos industriais, a Itália tinha um potencial de guerra inferior a França e Japão.

O próprio exército teve parcela da culpa, visto que o planejamento pré-1940 foi ineficaz e esparso. O regime, obviamente, se permitia intervir nas decisões, e isso levou Ciano a deixar momentaneamente o cargo para liderar a invasão na França. No fim, a Itália sofreu derrotas no leste africano, no supracitado episódio na Etiópia, na Tunísia, e foi ineficaz nas agressões a Polônia, Finlândia, Noruega, Dinamarca, Bélgica, Luxemburgo e Holanda. Ademais, viu a Sicília ser tomada pelos norte-americanos.

O fascismo já não conseguia mais mobilizar a população: a comida era escassa, as fábricas estavam paradas porque não existia matéria-prima, a propaganda ideológica deixou de ser tentadora e os Aliados, nas figuras de Franklin Delano Roosevelt e Winston Churchill, perguntavam à nação, pelas ondas de rádio, “se queria morrer por Mussolini e Hitler ou viver pela Itália e pela civilização”. Os movimentos antirregime, nesse contexto, não tiveram força nem eram organizados o suficiente para derrubar o ditador. Assim sendo, os próprios membros do governo se juntaram para tirá-lo do poder.

O Grande Conselho Fascista, organizado por Ciano, Giuseppe Bottai (ministro da Educação), Dino Grandi (também de Assuntos Externos) e Emilio De Bono (ex-ministro das Colônias), se convenceu de que a destituição de Mussolini era o único caminho para a salvação do Estado. Grandi moveu uma resolução para que o rei Vittorio Emanuele III tomasse o comando das forças armadas e restaurasse as responsabilidades do Parlamento e da Coroa, intervindo com um voto de não-confiança no ditador – isso antes de o monarca fugir para o sul da Itália, sob a proteção dos Aliados. Após reunião em que foi comunicado da destituição, o Duce deixou o palácio real, acabou preso numa emboscada e foi isolado imediatamente na ilha de Ponza.

A queda do fascismo foi comemorada, mas não encerrou as influências da ideologia nefasta no país (RCS)

Mussolini acabou sendo resgatado por Hitler e tentou fugir para a Espanha desde a Suíça. Comandou uma república-fantoche dos nazistas no norte da Itália, enquanto o centro-sul estava sendo liberado pelos Aliados. O Eixo não resistiu à ofensiva, que contou com participação brasileira, o ex-líder foi capturado e executado em Milão, no fim de abril de 1945. Enquanto isso, o país reconhecia potenciais novos caminhos, com o rei Vittorio Emanuelle III passando o trono ao filho Umberto II em prol de um referendo para a continuação da monarquia. O novo rei, que liderou regimentos fascistas durante a Segunda Guerra, aceitou a deposição no mês seguinte. Em junho de 1946, tinha início a República Italiana.

A morte do ditador não desatou todos os nós da fundamentação do regime e seus desdobramentos no futebol nacional. Os primeiros milhões de Achille Lauro, por exemplo, foram conseguidos através da aventura colonialista do Duce. Ao conquistar o contrato naval da campanha na África, na década de 1930, o empresário estabeleceu força. Esteve à frente do Napoli entre 1936 e 1969, sendo seu presidente efetivo em dois períodos, de 1936 a 1940 e de 1952 a 1954. Ficou conhecido pelo pesado investimento no clube, mas que não lhe rendeu grandes glórias.

O legado do “comandante” Lauro percorre dois opostos. Ao Napoli, agridoce, já que formou times de bons jogadores e só comemorou um título – o da Coppa Italia, em 1962. À cidade, inesquecível. O político populista desfez a aliança com a Democracia Cristã, partido da situação, para levar a comuna a um monarquismo dissidente que ganhou prefeituras entre 1950 e 1960. Nápoles, assim, era governada como um feudo e quando Lauro foi retirado do cargo por uma investigação anticorrupção, a cidade da especulação imobiliária se viu repleta de habitações paupérrimas e ilegais, todas extremamente vulneráveis a terremotos. A comuna foi uma das atingidas pelo sismo de 6.9 graus de magnitude em 1980, que matou quase 2500 pessoas e deixou 250 mil desabrigados.

Outra figura importante que surgiu após 1945 foi o magnata e ex-presidente do Milan Silvio Berlusconi, cuja tendência política – o berlusconismo – é comparada por especialistas ao laurismo. O sucesso político do bilionário, que, contam, conseguiu dinheiro para investimento do primeiro projeto imobiliário ao fazer um acordo com a máfia, na década de 1960, estava diretamente ligado ao futebol. E ele tinha seguidores fiéis, os quais até podem ser chamados de torcedores.

Como o futebol unia os italianos – metade do eleitorado torcia para algum time –, os assessores de Berlusconi sugeriram que ele usasse o esporte para mover o povo. Ao conquistar o governo em 1994, o político prometeu fazer com que a nação fosse igual ao Milan, que dirigiu por 30 anos. O populismo em cerne público e a forma sedutora de manipular a imprensa livre trazem referências modernas ao ditador e aos elos entre esporte e política.

O populismo de Berlusconi bebe da mesma fonte que impulsionou o fascismo (imago)

Giorgio Almirante liderava o Movimento Social Italiano nos idos dos anos 1970. O cabeça do MSI, declaradamente neofascista, era um dos responsáveis pelas prisões de judeus durante a República de Salò – o estado-fantoche que Mussolini instituiu no norte da Itália, de 1943 a 1945. Giorgio Chinaglia, um dos craques da Lazio naquela década, disse que votaria no partido porque Almirante “não era um político e estava fora do jogo político vigente”. O atacante era um dos excelentes jogadores de um time perigoso dentro e fora de campo.

A Lazio daquela década não levava desaforo para casa: brigava no gramado (contra o Arsenal, em 1970), nos vestiários (Ipswich, 1973) e contra eles mesmos frequentemente. Um dos poucos atletas que não portava arma de fogo era o meio-campista Luciano Re Cecconi – ironicamente morto ao ser alvejado por conta das habituais “brincadeiras” feitas por parte do elenco, numa simulação de assalto a uma joalheria. Como eles costumavam se entediar habitualmente, as pistolas eram usadas como diversão. Nas ditas brincadeiras, os alvos eram diversos: de pássaros a lâmpadas, como num episódio em que o lateral-direito Sergio Petrelli não queria levantar da cama para apagar a luz. Ou mesmo torcedores da Roma que não os deixavam dormir.

Chinaglia era o centro da equipe comandada por Tommaso Maestrelli, que foi campeã nacional em 1973-74. Ele era um bad boy que quase viu a carreira indo pelo ralo quando flopou no futebol inglês, ainda nos primeiros anos como profissional. O atacante cabeludo batia nos zagueiros adversários, gritava com árbitros e brigava com técnicos, mas sempre respondia com gols.

Aqueles momentos eram dele e Chinaglia gostava de ser provocador. É por isso que alguns historiadores escreveram que talvez o italiano que deu seus primeiros passos no País de Gales não fosse realmente de extrema-direita. Pouco importava para os torcedores rivais daquele período, porém: ele foi chamado de fascista em jogos em Florença e Perugia.

Ainda que Chinaglia agisse dessa forma para fazer ferver o sangue dos adversários, Petrelli, Pino Wilson e Luigi Martini declararam intenção de voto no MSI em 1972. O último deles, lateral-esquerdo, inclusive se tornou parlamentar da direita após o fim da carreira. O atacante tomou outro caminho, moderou o discurso e perdeu duas eleições na década de 1990 pelos democratas, de centro, e pelo centro-esquerda Partido Popular – no fim da vida, porém, se envolveu em negociatas com o Clã dos Casalesi, mafiosos ligados à extrema-destra. Re Cecconi, também taxado de fascista, afirmava que pouco sabia sobre política. A ideologia que lhe atribuíam estava muito mais ligada por pertencer àquele time e pela paixão pelo paraquedismo, uma diversão da direita do Belpaese.

Chinaglia teve uma vida de polêmicas e seu envolvimento com a política também não passou longe disso (Wikipedia)

O agravante laziale é que Mussolini era torcedor do clube e uma parcela dos ultras nunca rejeitou a qualificação de extrema-direita [nota da redação: a crescente retomada do neofascismo na Itália é refletida em quase todas as torcidas, que tem minorias extremistas entre as organizadas]. O meia-atacante Paolo Sollier, então no Perugia, expressava da seguinte forma a sua opinião sobre a equipe romana: “talvez seja incorreto dizer sobre ‘torcedores da Lazio’. ‘Os fascistas da Lazio’ é melhor”.

Os jogadores dos anos 1970 tinham uma motivação diferente. A sociedade estava bastante politizada e os italianos integravam partidos de extremos opostos: eram os anos de chumbo. O país, polarizado, vinha do mais longo e violento protesto de estudantes e trabalhadores. O Maio de 1968 interessava aos atletas, pois até então eles não tinham direitos básicos de pagamentos.

Além disso, protestavam contra a firmeza das leis da federação de futebol, que dava plenos poderes aos clubes, que podiam impor transferências contra a vontade dos jogadores. Os futebolistas pediam, assim, para ser emtrabalhadores com direitos legais como os metalúrgicos da Fiat – os seguros contra lesões foram efetivados em 1972, pensão em 1973 e os atletas sem contrato começaram a ter mais liberdade a partir do ano seguinte.

Sollier era fruto desses ecossistemas. O meia-atacante não passou mais de quatro anos num mesmo time – exceto quando morou em Cossato para atuar num clube da Serie D. O atleta acabou mais conhecido pela carreira pós-futebol do que pelo jogo em si, ainda que tenha atuado no Perugia durante seus anos dourados.

Entre 1974 e 1976, vestindo a camisa do clube da Úmbria, Sollier se tornou membro da Avanguardia Operaia, um conhecido grupo de extrema-esquerda que nasceu a partir do Maio francês. A cidade também carregava política em sua história, com tradições antifascistas e governos do Partido Socialista desde a queda do regime – a direita ganhou a primeira eleição na comuna de Perugia somente em 2014.

Mesmo repetindo esse gestual e tendo a palavra “Dux” tatuada em seu braço, Di Canio reluta em se dizer fascista (imago/Buzzi)

Depois do chumbo

O escândalo Tangentopoli – a famosa operação Mãos Limpas – modificou a relação entre os cidadãos e a política na península acostumada com subornos no mundo dos negócios, corrente durante a hegemonia do Partido Democrata Cristão. O esquema de corrupção que envolveu a máfia, o Banco do Vaticano e a loja maçônica Propaganda Dois – de forma resumida, os mafiosos, os democrata-cristãos e os industriais do norte – durante a década de 1990 contribuiu para a despolitização de um país que, afetado e agitado com a investigação de licitações irregulares e abuso de poder, viu crescerem os índices da antipolítica ou da indiferença dentro do eleitorado.

Este foi um movimento diferente em relação ao que aconteceu do outro lado da fronteira nordeste. Os caminhos ao poder de Slobodan Milosevic e Franjo Tudman, na Iugoslávia e na Croácia, respectivamente, representavam o ultranacionalismo com limpeza étnica em extremos opostos, e os organizados dos principais clubes (Estrela Vermelha e Dinamo Zagreb) estavam engajados no pensamento político.

No mesmo período e além, o que se viu foi uma migração de conscientes políticos para as arquibancadas. De acordo com o último levantamento do Observatório Nacional em Manifestações Esportivas, 60% dos ultras se declaram apolíticos, enquanto a terceira maior concentração ideológica nas organizadas é a da extrema-direita, representada pelo Senado vigente, de maioria do populista Movimento 5 Estrelas, e com forte influência da Liga Norte, na figura do popular e ex-separatista Ministro do Interior Matteo Salvini.

De norte a sul, há movimentos nazifascistas em muitas torcidas do futebol italiano (AGI)

As manifestações políticas, assim, diminuíram – de tal forma que é possível traçar um paralelo com a conjuntura vivida no Brasil. Poucos são os jogadores que dão um passo à frente para se posicionar, e estes geralmente estão ligados às arquibancadas. Paolo Di Canio é o exemplo mais infame, malquisto pelas torcidas rivais da Lazio durante os anos 2000, depois de se declarar neofascista. Ele, presenteado com um busto do Duce por um fascista declarado que geria uma loja de cacarecos na cidade natal do ditador, escreveu na autobiografia que era simpatizante de Mussolini, mas recuou no posicionamento depois de encerrar a carreira. Os inúmeros saluti romani e a tatuagem em homenagem ao Duce (“Dux”, em latim) no braço direito, porém, lhe desmentem.

Bustos do Duce, aliás, são um objeto colecionável para Alberto Aquilani. Já Gianluigi Buffon vestiu o número 88 e Christian Abbiati afirmou à Gazzetta dello Sport que respeitava alguns ideais do fascismo. Recentemente, o capitão e bandeira do Chievo, Sergio Pellissier, deu entrevista semelhante à do ex-goleiro do Milan dizendo que o antigo ditador “fez muitas coisas bonitas” para a nação.

Na oposição podemos encontrar Lucarelli, já mencionado neste texto, e Riccardo Zampagna. O ex-atacante foi um peregrino das séries A e B, com uma boa passagem pela Atalanta. Foi pelo clube que, em 2007, ganhou o prêmio de melhor gol: uma puxeta contra a Fiorentina – ele marcou da mesma forma contra a Lazio e sobre a Roma. No entanto, o bomber nascido em Terni foi ídolo da Ternana, clube local, e é integrante de uma organizada rossoverde até hoje.

Zampagna admira a torcida da Ternana em seu jogo de despedida (Flickr/Andrea Fortunato)

Três anos depois, com a carreira já finalizada, Zampagna liderou os protestos contra as demissões na siderúrgica Acciaierie Ternane, que passava a ser controlada pela ThyssenKrupp. “As usinas de aço me deram o que comer. Meu pai morreu de tumor acumulado pelo amianto, e não foi o único. […] As responsabilidades da empresa e da política são muitas; as dinâmicas não são claras, mas, no final, os trabalhadores estão sempre pagando”, falou ao Huffington Post.

O capitão da Ternana à época, Lito Fazio, completou. “Estamos ao lado dessas pessoas que estão lutando por seus empregos, por suas famílias, por seu futuro. Se a empresa confirmar as demissões, será uma tragédia”, disse. Se encaixam no exemplo, igualmente, os jogadores estrangeiros da Inter da virada do século, como Javier Zanetti, que se encontravam no teatro Comuna Baires para eventos literários de contra-hegemonia – e anti-Berlusconi.

O futebol é somente e tampouco uma extensão da sociedade. Se há racismo fora do estádio, haverá racismo dentro. Funciona da mesma forma com xenofobia, discriminação contra LGBTs e nacionalismo. E é essa sociedade que, ainda que não faça um acerto de contas com a história, como tem sido comum com o nazismo, por exemplo, tende a separar as ações mussolinianas.

Para parte dos italianos, a censura, as torturas, as mortes e as guerras, pensando desta maneira, não podem ser julgados igualmente em vista do que o ditador fez de bom, como estradas, conjuntos habitacionais e bem-estar social – seguindo o pensamento de Pellissier, citado acima. Não que seja estranho, também, para um país que viu um presidente do Milan vencer as eleições de 1994 ao estreitar laços com a Alleanza Nazionale – e de certa forma legitimar os neo-fascistas – e vivenciou a propaganda à ideologia ser punida somente em 2017. Certa vez, o próprio Berlusconi afirmou que “as leis raciais foram a pior falha de Mussolini como líder, que em outras ocasiões fez bem”. É mais ou menos a relação que muitos brasileiros têm com Getúlio Vargas, que nem é visto como um ditador por uma parcela significativa da população.

Assim, com tanta relativização, certos comportamentos inaceitáveis permanecem inalterados: são parte de uma cultura enraizada pela promoção discriminatória desde o século passado. Mario Balotelli, Kevin Prince-Boateng e Kalidou Koulibaly sendo chamados de macacos; os ultras do Verona fazendo saudações nazistas, homossexuais sendo agredidos (em 2006, Alessandra Mussolini, neta do ditador e atualmente membro do Senado, afirmou que “é melhor ser fascista que viado”); e os nortistas xingando os sulistas de terroni são acontecimentos que perduram.

É algo contra o que uma Itália em crise e constante mutação social lutará nas próximas décadas. Sobretudo porque ditos repetidos na monarquia fascista seguem intrínsecos no alto escalão de quem governa o país. Se o ministro pop incentiva a ver o outro como diferente, como a população não o replicará? Cabe a gente como Moise Kean e sua geração de novos italianos dar a resposta.

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8 comentários

  • Simplesmente espetacular! Difícil imaginar uma reportagem mais completa sobre o assunto, mesmo na imprensa italiana. Essas matérias de fôlego são um diferencial dentro do já fantástico trabalho do site. Parabéns!

  • Parabéns pelo extraordinário texto! Artigo esclarecedor e de grande valor histórico, que conseguiu retratar como poucos a contextualização politicoesportiva italiana. Obrigado por compartilhar tanto conhecimento conosco! Um website com notável conteúdo!
    Tive o prazer de conhecer pessoalmente Aldo Olivieri, campeão do mundo em 1938, na época em que morei na Itália, por intermédio do meu grande amigo Rodrigo de Oliveira Guizzardi. A propósito, também por meio dele encontrei Sauro Tomà, atleta do Grande Torino que escapou do desastre de Superga por estar lesionado, fato que o impediu de viajar com os companheiros.

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