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O goleiro Felice Pulici domou as turbulências do vestiário da Lazio e se tornou ícone do clube

O vestiário é um ambiente sagrado para o jogador de futebol. É no íntimo das instalações reservadas para trocas de roupas antes e depois de treinamentos e partidas que os atletas têm um espaço mais privado para estreitarem laços e colocarem a “resenha” em dia. Na Lazio dos anos 1970, contudo, o clima nos bastidores não era dos melhores: o elenco era tão rachado que foi necessário dividi-lo em dois grupos. Mesmo assim, a equipe conseguiu superar as adversidades e faturar o primeiro scudetto da sua história. Parte disso se deveu a Felice Pulici, ícone celeste e dono absoluto da camisa 1 naquela campanha.

Curiosamente, Pulici queria ser goleiro desde garoto. A sua infância, na pequena cidade de Sovico, na Lombardia, foi muito humilde – como a de muitas crianças na empobrecida Itália do pós-guerra. Para comprar um terreno e construir o lar da família, seu pai trabalhava como operário numa usina siderúrgica em Sesto San Giovanni, na região metropolitana de Milão, onde tinha de morar. Sua mãe também estava distante, já que passou três anos internada num hospital tratando de uma tuberculose. Naquele período, em que transitava de favor pelas residências de tias, receber uma bola como presente era um alento para o jovem Felice.

A primeira pelota, porém, não durou muito tempo. Na estreia do brinquedo, com os amigos, Pulici não pode fazer nada quando a redonda escapou para uma rua movimentada e estourou depois que um ônibus a esmagou. Numa entrevista ao jornal Il Giorno, de Monza e Brianza, Felice contou que juntou farrapos e palha e encheu a câmara da bola para tentar reutilizá-la, dessa vez arremessando-a a uma parede e tentando pegá-la após o ricochete. Foram seus primeiros treinos como goleiro – aliados a saltos nos corredores das casas em que morava e sobre os colchões em que dormia.

Na infância e na adolescência, Pulici admirava Giorgio Ghezzi, goleiro da Inter, e Gilmar, arqueiro do Corinthians e campeão mundial na Copa de 1958. “Eu tinha até um blusão verde no qual eu costurava pedaços de fronhas velhas, escrevendo ‘Brasil’. Era meu ídolo”, contou. Por algum tempo, porém, a carreira como goleiro ficou em segundo plano.

Em Monza, Pulici terminou os estudos – no mesmo colégio que Adriano Galliani, ex-cartola do Milan – e se graduou em topografia. O diploma lhe permitiu começar a trabalhar como projetista na empresa de engenharia urbana do cunhado. Ao mesmo tempo, Felice jogava numa equipe amadora de Albiate. Com quase 22 anos, foi notado pelo Lecco, time que acabara de ser rebaixado da Serie A para a segunda divisão e trocou, definitivamente, o urbanismo pelos gramados. Pulici, de 1,80m, só defendeu os blucelesti em três partidas na temporada 1967-68 e passou ao Novara, então na Serie C.

Pulici chegou à Lazio após circular por times do norte da Itália (Ansa)

Pulici ganhou a posição de titular do Novara apenas em sua segunda temporada no Piemonte. A equipe treinada por Carlo Parola sofreu apenas 22 gols, teve uma das melhores defesas da terceirona e, com quatro pontos de vantagem, foi campeã do seu grupo – subiu à Serie B às custas do Lecco, que veio logo atrás. Felice manteve a titularidade pelos azzurri também na categoria superior e, em outubro de 1971, encontrou a Lazio pela primeira vez: no Olímpico, 5 a 2 para os romanos.

No returno, porém, Felice segurou o triunfo do Novara por 1 a 0 no Piemonte, adicionando outra grande atuação ao currículo. Isso falou mais alto e saltou aos olhos de Roberto Lovati, auxiliar de Tommaso Maestrelli, treinador laziale: Bob, que foi um dos maiores goleiros da história da Lazio, endossou a contratação de Pulici para a Serie A 1972-73. E, assim, o lombardo foi titular absoluto nos cinco anos em que viveu em Roma, sem ficar de fora de uma partida sequer.

Seguro e confiável, Felice foi o segundo membro de sua família a fazer sucesso na elite italiana. Quando o goleiro chegou à capital italiana, Paolo Pulici, primo distante – com quem guardava grande semelhança física – já era atacante do Torino. O sobrenome famoso, porém, não lhe garantia nada e foi com seus próprios esforços que o arqueiro se firmou como pilar da Lazio no primeiro ano de casa – e logo ganhou o apelido de Felix, em analogia ao famoso gato dos desenhos animados.

Em 1972-73, a equipe começou decepcionando na Coppa Italia, mas foi uma das surpresas do campeonato e lutou pelo título até a última rodada, quando acabou derrotada pelo Napoli. Com isso, ficou na terceira colocação, com 43 pontos – o Milan fez 44, e a Juve, campeã, 45. Ainda assim, a defesa laziale foi a menos vazada da Serie A, com 16 gols sofridos em 30 jogos. Boa parte do mérito foi de Pulici, que até hoje é o goleiro que menos sofreu gols numa temporada pela Lazio.

Em 1973-74, veio a consagração. A torcida já estava animada pela surpreendente campanha da temporada anterior, que rendeu uma vaga na Copa Uefa, e começou a crer realmente que um inédito scudetto estava a caminho em dezembro de 1973. Na ocasião, a Lazio deu o troco sobre o Napoli, então líder, e tomou a ponta. Felix teve enorme brilho individual naquele dia e, com intervenções decisivas, segurou a vitória por 1 a 0. Foi a sua melhor atuação na trajetória para o primeiro título italiano dos celestes, que mais uma vez terminaram a Serie A com a defesa menos vazada. Horas após o jogo contra o Foggia, que garantiu a taça, Felice ainda comemorou o nascimento do segundo dos seus três filhos.

Nem tudo foi perfeito para Pulici em 1974, contudo. Foi o ano da maior desilusão da carreira do lombardo, que não conseguiu convencer Ferruccio Valcareggi de que merecia uma vaga no grupo italiano para a Copa do Mundo, disputada na Alemanha. O comandante levou Dino Zoff e Enrico Albertosi, presentes na edição de 1970, e optou por Luciano Castellini, do Torino, como terceiro goleiro. Felix, inclusive, nunca defendeu a seleção principal: em 1975, aos 30 anos, fez apenas três amistosos pela equipe olímpica.

Voando baixo, Pulici foi protagonista na campanha da conquista do primeiro scudetto da Lazio em toda a história (Guerin Sportivo)

Outro acontecimento negativo para Pulici no atribulado 1974, foi não ter podido disputar a Copa dos Campeões. Tudo por causa das ocorrências registradas num jogo ante o Ipswich, que rendeu à Lazio uma punição de um ano fora das competições europeias. Na Copa Uefa, a Lazio perdera para os ingleses, treinados por Bobby Robson, por 4 a 0 na Inglaterra. No jogo de volta, a arbitragem de Leo van der Kroft transformou o jogo numa batalha campal: o holandês não deu um pênalti para os celestes por uma “defesa” do zagueiro norte-irlandês Allan Hunter e, depois, ainda inventou uma penalidade em Clive Woods. Isso provocou a ira dos torcedores, que invadiram o gramado do Olímpico e atiraram toda sorte de objetos ao campo.

A inépcia do juiz – que, dizem, estava embriagado – revelou ao mundo, sobretudo, a agressividade inerente àquele elenco biancoceleste: ninguém ali levava desaforo para casa. Depois da penalidade marcada, os atletas da Lazio foram para cima de Van der Kroft. Pulici foi o primeiro a peitá-lo e, depois, todos tiraram uma casquinha do apitador, com fortes safanões. Os italianos partiram para a violência também contra os adversários: Colin Harper, Brian Hamilton e David Best deixaram o gramado com feridas e hematomas. Van der Kroft, com medo, não expulsou ninguém.

A partida acabou com vitória celeste, por 4 a 2, mas o clima tenso persistiu. Os laziali tentaram invadir o vestiário dos ingleses e o da arbitragem, enquanto, fora do estádio, torcedores promoveram um quebra-quebra e depredaram até uma ambulância, pois acreditavam que o árbitro holandês estava escondido no veículo. O tumulto e a hostilidade não eram um caso isolado. Faziam parte do contexto da sociedade italiana que, naquele momento, atravessava momentos turbulentos, com recessão, desemprego, violência e polarização política. Eram os anos de chumbo.

A cisão social se refletia nos vestiários da Lazio – no plural, mesmo. Havia duas facções no elenco celeste e elas se detestavam. Uma delas era liderada por Giorgio Chinaglia, com quem Pulici criou fortes laços pessoais, e contava ainda com Giancarlo Oddi, Giuseppe Wilson, Sergio Petrelli, Luigi Polentes e Renzo Garlaschelli. O grupo rival tinha Luigi Martini e Luciano Re Cecconi, além do apoio silencioso de Mario Frustalupi. Por sua vez, Franco Nanni e Vincenzo D’Amico não se posicionavam e flutuavam entre os clãs.

As instalações do clube eram divididas em territórios e os integrantes de cada tribo não podiam frequentar as áreas dos “inimigos íntimos” sem autorização prévia. Considerando que muitos jogadores andavam armados e não pestanejavam na hora de atirar, era aconselhável seguir essa recomendação à risca.

Certa vez, Martini estava secando seus esparsos cabelos após um banho quando houve uma queda de tensão elétrica e seu secador pifou. O lateral não pensou duas vezes e foi até o vestiário dos rivais e, sem pedir licença, pegou um aparelho novo. Mal tornara a seu posto e a repetir a secagem da careca quando Pulici apareceu, arrancando o eletrodoméstico da tomada pelo fio e gritando muito. A tensão aumentou, os dois partiram para o contato físico e garrafas começaram a voar de um lado a outro, numa luta que envolveu os dois clãs. Maestrelli precisou aparecer para intervir e acalmar os ânimos. Para selar a paz, ordenou que os brigões trocassem um aperto de mãos na frente de todo o elenco.

Num duelo entre Napoli e Lazio, Pulici observa Re Cecconi afastar uma bola alçada na área (Aicfoto)

Era Maestrelli quem garantia que a balbúrdia e o ódio nos bastidores não interferisse no que acontecia em campo. Felix, a propósito, era ligado de forma visceral ao treinador, sobretudo por tê-lo feito dar um passo adiante na carreira. O técnico ainda comandou a Lazio numa boa temporada em 1974-75, mas depois foi diagnosticado com um implacável câncer no fígado, o que abalou o plantel de forma intensa – a ponto de fazer a equipe brigar contra o rebaixamento. Pulici foi um dos que mais sentiu a ausência do maestro, que precisara se afastar dos campos.

No fim de novembro de 1976, Felice fez aquela que é considerada a sua melhor partida pela Lazio. Justo num dérbi contra a Roma. Bruno Giordano abriu o placar para os celestes e, depois, Pulici roubou a cena. Defendeu tudo e chegou a ser chamado de magnífico por Nils Liedholm, técnico rival. Os jornais corroboravam: “monstruoso” e “perfeito” eram alguns dos adjetivos atribuídos ao goleiro nas manchetes.

A grande intervenção daquela tarde aconteceu ante Stefano Pellegrini, que já comemorava ao ver a bola ir na direção do ângulo. Felix, porém, apareceu em seu campo de visão, voando, e a desviou para escanteio. “Não lembro de nada, só de estar no chão e me perguntar como havia defendido. Uma força ‘lá de cima’ parece ter me dado uma mão”, declarou o ex-goleiro. Quando foi informado, em entrevista, que Maestrelli não conseguiu assistir ao clássico nas tribunas e teve de ir para o hospital – onde escutou a partida pelo rádio –, Pulici chorou copiosamente. Seu mestre morreria quatro dias depois.

Em 1977, o ciclo da geração campeã italiana se encerrava e a hierarquia na Lazio mudava. O brasileiro Luís Vinício já era o treinador da equipe e, na preparação para a temporada 1977-78, avisou a Felice que Claudio Garella, recém-contratado, seria o titular celeste. Pulici decidiu permanecer e batalhar por espaço, mas, em outubro, deu o braço a torcer e pediu para ser negociado. Acertou com o Monza, time de sua província natal, e disputou uma boa Serie B. Os brianzoli por pouco não conseguiram um inédito acesso para a elite: promovidos, Catanzaro e Avellino somaram apenas dois pontos a mais.

Pulici acabou retornando à Serie A, porém. O veterano foi contratado pelo Ascoli do presidente Costantino Rozzi e teve a oportunidade de marcar época pelos piceni. Em três anos no clube marquesão, Felix contribuiu para duas permanências tranquilas na elite e, sobretudo, colaborou com a melhor temporada da história do Picchio, que foi quarto colocado no campeonato de 1979-80 – faltaram apenas dois pontinhos para que o Ascoli se classificasse para a Copa Uefa. Com a camisa bianconera, ainda venceu o Torneo di Capodanno, que tinha a participação das 16 agremiações da primeira divisão e era organizado pela FIGC, a federação italiana.

Depois de quatro anos longe de Roma, Pulici retornou à Lazio para se aposentar. Em 1981-82, com o time na segundona por causa da punição por envolvimento no escândalo Totonero, o veterano não jogou tantas vezes, mas encerrou sua carreira com dignidade e mais de 200 partidas oficiais pelo time que adotou. Imediatamente após a aposentadoria, Felix foi nomeado como diretor geral da agremiação pelo amigo Chinaglia, que acabara de adquiri-la.

Semelhança física e sobrenome idêntico não eram um acaso: Felice e Paolo Pulici eram parentes distantes (L’Unità)

Felice Pulici foi responsável ainda pelas categorias de base da Lazio em duas oportunidades, entre 1994 e 1998 e de 2003 a 2004, e participou das gestões de Sergio Cragnotti e Claudio Lotito. O ex-goleiro, que aproveitou a aposentadoria para voltar aos estudos e se tornar bacharel em direito, chegou a ocupar o cargo de secretário-geral laziale e também foi um dos advogados dos celestes no processo do Calciopoli.

Depois do drama jurídico, Lotito foi suspenso pela FIGC e Felix foi nomeado como representante do clube – mas sem qualquer poder decisório, já que deveria cumprir ordens de seu superior. Pulici não aceitava ser testa de ferro. Se demitiu e deixou a agremiação com fortes críticas ao atual presidente. “Lotito fala de valores e sentimentos, mas tem uma pedra no lugar do coração e só pensa em seus interesses, não nos da Lazio”, desabafou em entrevista ao jornalista Stefano Greco.

Poucos meses depois de deixar a capital, o ex-goleiro assumiu um cargo na diretoria do Ascoli e pode se dedicar a outras causas. Não tentou mais voltar à política após ter perdido uma eleição municipal em 2005, por uma coalizão de centro-direita, mas se empenhou em uma atividade de muita relevância pública: Pulici foi secretário da Federação de Esportes para Surdos por uma década. “Estudei a língua dos sinais por três anos [entre 2002 e 2005] e pude conhecer um mundo fantástico, cheio de pessoas extraordinárias”, declarou a Il Giorno.

Ao longo de 2017 e 2018, porém, Pulici precisou se afastar de quase todas as suas atividades mais dispendiosas. Assim como Maestrelli, a quem queria como um pai, Felice foi diagnosticado com um câncer. O ex-goleiro lutou muito contra a doença, mas acabou não resistindo e morreu poucos dias antes de completar 73 anos. Seu último companheiro de quarto na enfermaria do hospital romano em que faleceu foi um torcedor da Lazio que o tinha como ídolo. Felix, certamente, se despediu entre pessoas que o amavam.

Felice Pulici
Nascimento: 22 de dezembro de 1945, em Sovico, Itália
Morte: 16 de dezembro de 2018, em Roma, Itália
Posição: goleiro
Clubes: Lecco (1967-68), Novara (1968-72), Lazio (1972-77 e 1981-82), Monza (1977-78) e Ascoli (1978-81)
Títulos: Serie C (1970), Serie A (1974) e Torneo di Capodanno (1981)

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