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O estádio Renato Dall’Ara e a cidade de Bolonha resumem os últimos cem anos na Itália

Aqui na Calciopédia já fizemos várias matérias sobre os estádios italianos, tratando de temas como sua modernização, a burocracia por trás disso e a situação das arenas, com uma leve decadência e queda na média de público. Hoje, falaremos de um estádio em especial, que tem uma história muito particular e diretamente ligada à evolução do futebol e da sociedade italiana: o Renato Dall’Ara.

Em uma espécie de Forrest Gump felliniano, desde 1925, o estádio sediado na capital da Emília-Romanha é um personagem simbólico, principal ou secundário, na narrativa do país. Após sua inauguração, já mudou de nome duas vezes e já viveu de tudo.

Antes disso, contemos brevemente a trajetória de Bolonha, que servirá para entendermos a singularidade da região. Como boa parte da Itália central, a “cidade das duas torres” tem origem etrusca e, posteriormente, foi ocupada pelos romanos, em 189 a.C. Depois da queda do Império Romano, passou para as mãos de Carlos Magno, que a entregou para o Papa Adriano I, o que causou a coexistência entre forças eclesiásticas e militares na cidade por alguns bons séculos.

Dessa mistura, algumas vezes perigosa, surgiu um certo equilíbrio, que deram o espaço requerido para alguns grandes acontecimentos da história. A Universidade de Bolonha, a primeira do mundo ocidental, foi criada em 1088 e deu luz a uma famosa escola de juristas, que por sua vez geraram o terreno necessário para o famoso período medieval italiano. As cidades começaram a ter mais autonomia e, em 1256, foi escrito o Liber Paradisus, ou Livro do Paraíso, que foi o primeiro registro histórico de uma lei que proibia a escravidão e a servidão feudal. Ou seja, Bolonha foi a primeira cidade na história a abolir o trabalho forçado.

A partir de 1507, fez parte dos Estados Papais, com uma breve pausa sob domínio de Napoleão Bonaparte, até ser integrada ao Reino da Itália, em 1861. Em 1924, aconteceram as fatídicas eleições parlamentares que mudaram o rumo do país; o partido de Benito Mussolini foi declarado o vencedor, após uma campanha eleitoral recheada de medo, mentiras e intimidações, além de um processo de votação fraudulento, com o sigilo do voto de vários cidadãos sendo violado. Dois anos antes, o fascista já havia organizado a Marcha sobre Roma e tomado o poder.

Em amistoso entre Itália e Turquia, em 1962, se vê a torre com o espaço deixado pela estátua que ficava abaixo do arco (RCS)

O único que teve coragem de denunciar os crimes foi Giacomo Matteotti, bacharel em Direito pela Universidade de Bolonha, que fez um discurso na câmara declarando todos os problemas no rito e a violência da milícia fascista. Ao final de seu discurso, declarou a seus companheiros de partido para prepararem o discurso de seu próprio funeral. Onze dias depois foi sequestrado e morto, e hoje, seu assassinato simboliza o início do período totalitário italiano.

No ano inicial do regime fascista, o vice-secretário geral do partido projetou um grande centro poliesportivo, para comemorar a vitória do fascismo e fazer uma obra digna do Império Romano. Sua construção começou em 1925, com uma cerimônia envolvendo o Rei Vittorio Emanuele III, e pouco mais de um ano depois foi terminada, em um evento no qual Mussolini entrou no estádio montado em um cavalo.

>>> Saiba mais: Como o fascismo influencia o futebol italiano há um século

No início, teve o nome de “Littoriale”, em alusão ao símbolo do regime, o fascio littorio. O complexo foi estruturado em um estádio, quatro quadras de tênis, duas piscinas, uma pista de atletismo e a linda Torre de Maratona, estrutura famosa colocada ao lado oposto da tribuna, que na época serviu para expor o símbolo do regime e uma grande estátua de bronze representando o ditador na solenidade de inauguração. Foi o primeiro estádio de futebol construído por iniciativa pública e como um estádio propriamente dito, nos moldes que conhecemos atualmente, inicialmente com capacidade para 50 mil pessoas.

Foi uma das principais sedes no Mundial de 1934, sediando uma das quartas de final e se colocando no cenário nacional como um dos melhores campos de futebol do país. Com a queda do regime, a estátua do ditador na Torre de Maratona teve sua base demolida e foi fundida, assim como todos os adereços que faziam alusão à doutrina autoritária, e o estádio passou a se chamar “Comunale”. Ou, simplesmente, Estádio Municipal.

Bolonha foi uma das cidades mais importantes da II Guerra Mundial. Por ser considerada central, era importante para manter as comunicações das tropas e também para sustentar a Linha Gótica, que passava por boa parte da Emília-Romanha. Em 1944, na mesma província, ocorreu a famosa Batalha de Monte Castello, quando Brasil e Estados Unidos derrotaram tropas alemãs e conquistaram o ponto estratégico, caminhando para a derrubada da Linha Gótica e a libertação de Bolonha poucas semanas depois.

A Torre de Maratona é o grande símbolo do estádio Dall’Ara (RCS)

Além disso, a cidade se tornou um dos principais centros da resistência italiana, com os famosos partigiani, que foram essenciais na luta pela liberdade e pela democracia. O movimento abrigava todos os ideais democráticos possíveis, como a democracia cristã e os republicanos, mas teve maior impacto na sociedade local os de tendência comunista, como as famosas Brigate Garibaldi. Do pós-guerra até hoje, a cidade ainda mantém o espírito antifascista e progressista, sendo bastante politizada e palco de manifestações a favor da proteção e da expansão de direitos sociais.

Voltando ao estádio, agora em tempos de paz, em 1983 o Stadio Comunale se tornou Stadio Renato Dall’Ara. A arena recebeu o nome do famoso presidente que dirigiu o Bologna de 1934 a 1964, quando faleceu apenas três dias antes de poder assistir o último scudetto da história do time. Junto do país, que acabara de sair dos anos de chumbo – que teve como um de seus símbolos o atentado na estação de Bolonha –, o estádio também rumava à modernidade e, se preparando para a sua segunda Copa do Mundo, teve uma grande reforma em 1990. Recebeu grandes melhorias para a segurança, telão e placar eletrônico, além de mais assentos.

Em 2009, o setor da torcida anfitriã foi intitulado Giacomo Bulgarelli, nomeada em homenagem ao mítico ex-capitão da equipe, falecido naquela época. Nove anos depois, o setor da torcida visitante foi denominado Arpad Weisz, treinador em dois títulos italianos dos rossoblu, um húngaro de origem judaica que morreu em uma câmara de gás de Auschwitz, no ano de 1944.

No início de 2019, foi apresentado um plano de completa reformulação do Renato Dall’Ara, muito maior do que uma simples restauração. O projeto, feito pelo mesmo arquiteto do Juventus Stadium, engloba o fim da pista de atletismo e a redução de capacidade para 27 mil espectadores, que ficarão abrigados em assentos totalmente cobertos. E, o mais importante, manutenção de toda a estrutura externa original, com a Torre da Maratona e os arcos que rodeiam a arena.

O estádio do Bologna traz consigo uma arquitetura dos tempos do Império Romano, uma fundação dos tempos autoritários, com uma monarquia disfuncional apoiando um ditador fascista, duas copas do mundo e hoje, apesar da famosa burocracia peninsular, quer se projetar para o futuro. Um grande resumo da história da Itália, que deseja se modernizar e se integrar à Europa, mas jamais esquece o seu rico, singular e intenso passado.

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