Serie A

Jogo à italiana: a história dos esquemas táticos no futebol da Bota – parte 1

Itália, terra do Renascimento, de obras de arte ao ar livre, de praias belíssimas, montanhas imponentes, vinhos saborosos, muita comida boa e… do futebol tático. Discutir esquemas táticos, forma de colocar uma equipe em campo e a melhor estratégia para um time é algo que qualquer amante do futebol na Bota aprende a fazer desde cedo, seja em rodas de conversa com amigos seja assistindo aos programas esportivos da TV.

Entender os movimentos do jogo é algo inerente à cultura futebolística italiana, até porque foram os técnicos do país que introduziram muitas novidades no esporte ao longo dos anos. Em um especial de quatro partes, iremos dissecar o que aconteceu em pouco mais de um século de futebol na Itália e em que os treinadores azzurri contribuíram para o desenvolvimento do jogo ao longo dos anos, quem eles influenciaram e por quem foram influenciados. O nosso passeio pela história começa agora.

>>> Parte 2: Catenaccio, zona mista e o jogo à italiana 
>>> Parte 3: A revolução de Sacchi e o tradicionalismo de Capello e Lippi
>>> Parte 4: Os dias atuais; o que andam fazendo os treinadores na Bota

O começo: o advento das escolas inglesa e húngara e o contraponto de Pozzo

Embora seja o esporte mais popular e que hoje seja uma parte considerável do dia a dia italiano, o futebol demorou para chegar e se desenvolver na sua forma moderna no Belpaese. Enquanto na Inglaterra o esporte já tinha caráter profissional desde os anos 1860, com a criação da Football Association (FA) – a federação de futebol inglesa –, somente nos anos 1890 é que os clubes começaram a se organizar na Itália. Primeiro com os lígures do Genoa e depois com os piemonteses do Pro Vercelli e da Juventus, seguidos pelos romanos da Lazio e de um novo clube de Turim, o Torino.

Naquela década, a organização tática no futebol já vinha se desenvolvendo, saindo das premissas do rugby e buscando a essência do que é o esporte hoje – um esporte coletivo e muito, muito tático. Nessa época aconteceu a primeira mudança na regra do impedimento e surgiu o esquema  pirâmide, o 2-3-5, como registra Jonathan Wilson no livro Invertendo a Pirâmide. A publicação é a grande referência no assunto e estará sempre presente daqui em diante nesse especial, que também aproveita a tradução e interpretação de Eduardo Cecconi em seu antigo blog.

Nessa época, os escoceses do Queens Park já traziam a ideia de criar linhas de passes, priorizar a circulação da bola através de passes curtos com velocidade, quebrando o paradigma do futebol inglês, antes baseado no kick and rush, nas corridas individuais. Dali, austríacos e húngaros importaram muitas coisas e desenvolveram a escola danubiana, atingindo sucesso no continente com seu futebol coletivo no início do século XX.

Décadas depois, com a nova mudança da regra do impedimento, um inglês revolucionou o futebol, trazendo novo sistema tático com sua interpretação da nova regra, e também a importância da organização coletiva, do trabalho sem a bola, e a figura do treinador que estuda o adversário e orienta seus jogadores de forma mais precisa. Era Herbert Chapman, treinador do Arsenal, com seu revolucionário WM, o 3-2-2-3.

Ok, inglês aqui, escocês ali, austro-húngaros acolá… mas e os italianos? É a partir da escola danubiana e do WM de Chapman que o futebol italiano começa a se desenvolver taticamente. Vittorio Pozzo se torna a grande figura do futebol na terra que, àquela época, era dominada pelo fascismo – o regime viu no esporte uma forma de fazer propaganda. Pozzo, que treinara Torino e Milan e a seleção italiana por duas outras oportunidades, estava no seu último trabalho à frente da Squadra Azzurra – que duraria 19 anos, entre 1929 e 1948.

Vittorio Pozzo, técnico marcado como primeiro “taticista” do futebol italiano (Archivio Pozzo)

Por ter desenvolvido seu trabalho durante a ditadura fascista, o técnico – apelidado de “tenente” por seu jeito rígido – acabaria identificado ao regime de Benito Mussolini, embora não fosse exatamente um apoiador da ideologia do Duce. No esporte, Pozzo foi um dos primeiros a colocar em prática o conceito de pré-temporada, de fazer a preparação para competições isoladamente. Um advento que também traria mudanças na abordagem física, com maior preocupação com o corpo dos atletas e com sua velocidade. Era o “futebol-força”.

Pozzo, amigo e rival de Hugo Meisl, treinador da seleção austríaca e expoente da escola danubiana, desenvolveu um novo sistema tático, não convencido com o WM inglês e buscando ajustar a pirâmide para a nova regra do impedimento. Juntamente com Meisl, com quem trocava contínuas ideias sobre tática, embora Itália e Áustria fossem rivais em campo (especialmente nos anos 1930), o italiano criou o esquema WW, na prática um 2-3-2-3 – na Itália conhecido como metodo, enquanto o WM era o sistema.

O WW, 2-3-2-3, de Pozzo e Meisl

O revolucionário WM, 3-2-2-3, de Chapman

Enquanto Meisl priorizava passes curtos, posse de bola, contínua troca de posicionamento e movimentação ofensiva, num jogo de posição muito rico – talvez o primeiro -, Pozzo, no mesmo “desenho”, tinha um futebol caracterizado pela força e velocidade, implantando a até então nova marcação individual. Um dos zagueiros fazia a sobra e os outros jogadores “encaixavam” a marcação e “perseguiam” adversários previamente definidos, especialmente seus destaques, como o centromédio, que muitas vezes tinha a figura do regista na época, e, claro, o centroavante. Com os encaixes na marcação e linhas recuadas, este esquema tinha nas transições ofensivas o seu ponto forte: os contra-ataques através das bolas longas, da velocidade dos pontas e da individualidade dos meias-atacantes, consagrando dois craques, Giuseppe Meazza e Giovanni Ferrari.

Assim, sempre com Meazza e Ferrari e seu metodo, Pozzo comandou os times italianos que ganharam o primeiro bicampeonato mundial do futebol, conquistando as Copas de 1934 e 38 – o treinador, até hoje, é o único a ter alcançado tal feito. Aquela seleção italiana ainda faturou o ouro na Olimpíada de 1936 e dois títulos na Copa Internacional, similar à Eurocopa de hoje, em 1930 e 35. No campeonato nacional, foi seguindo o planejamento de Pozzo que o Bologna venceu seis vezes nos anos 1920 e 1930 e a Juventus alcançou o recorde dos cinco scudetti consecutivos entre 1931 e 35 – até hoje apenas igualado, por Torino e Inter, mas não ultrapassado.

A formação da Itália campeã mundial em 1938, no WW

Apesar da fórmula vencedora na seleção e em alguns clubes, o WW não foi difundido no futebol como o WM, mesmo na Itália. O sucesso de Pozzo sempre esteve ligado ao fascismo, e, com a queda do regime, o técnico nascido em Turim foi definido como um homem do passado, antiquado. Seu jogo de imposição física, de vencer a qualquer custo e de intimidação ao adversário não superou o pós-guerra, caindo no ostracismo, mesmo que Pozzo ainda estivesse ligado ao futebol italiano até os anos 1950, participando, inclusive, da criação do centro de formação de treinadores da Federação Italiana de Futebol – FIGC, em Coverciano. Taticamente, foi o esquema WM, de Chapman, que seguiu como referência para os treinadores no Belpaese.

No WM, a formação titular do último Grande Torino, antes da tragédia de Superga, em 1949

A afirmação do WM como esquema principal dos times italianos se deve também pelo que aconteceu nos anos 1930 e 1940, com a importação de treinadores húngaros e ingleses, todos influenciados pelo WM de Chapman. A contratação de técnicos sobretudo da Hungria era uma verdadeira febre e todos os principais times do país – e quase todos os menores, mas seguramente todos os que jogaram a Serie A alguma vez – tiveram pelo menos um técnico do país entre as décadas de 1920 e 1940 – magiares ainda treinaram equipes italianas nos anos 1950 e 1960.

Enquanto a II Guerra Mundial entrava no auge em 1940, o futebol italiano avançava após os vários títulos dos anos 1930. Nessa época, surge o Grande Torino, que passa a construir um ótimo time a partir da contratação de jogadores de vários clubes, como Juventus, Ambrosiana-Inter, Fiorentina, Venezia, Genoa, entre outros. Inicialmente treinado pelo austríaco Tony Cargnelli, seguidor de Pozzo, o Torino não teve sucesso e abandonou o WW em favor do WM ao substitui-lo pelo húngaro András Kuttik, que seria seguido por Antonio Janni, Luigi Ferrero, Mario Sperone – ex-jogadores do clube –, Leslie Lievesley (inglês) e Erno Erbstein (húngaro), todos preservando o sistema.

Com o esquema clássico de Champman, os técnicos tornaram o Torino cinco vezes campeão italiano – além dos títulos dos campeonatos de guerra em 1944 e 45, época em que foi patrocinado pela Fiat e contou com o craque Silvio Piola. A inteligência de grandes jogadores, como Mario Rigamonti, Ezio Loik, Romeo Menti, Franco Ossola e Valentino Mazzola ajudou que, mesmo com as constantes mudanças de treinadores, o time executasse o esquema com perfeição. O Desastre de Superga acabou com aquele elenco multicampeão, mas não foi o responsável pela extinção do WM. A evolução tática do futebol nos anos 1950 e 1960 mudou o esporte para sempre e ajudou a tornar os placares mais magros, em um jogo cada vez mais estudado. Assunto para a parte 2 do nosso especial. Até lá!

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