Serie A

Jogo à italiana: a história dos esquemas táticos no futebol da Bota – parte 3

O especial sobre tática do Quattro Tratti continua a todo vapor. Após falarmos os esquemas táticos utilizados nas origens do futebol italiano e nas primeiras décadas de Serie A, abordamos o surgimento do catenaccio e da zona mista, com a afirmação de técnicos como Helenio Herrera, Nereo Rocco, Giovanni Trapattoni e Luigi Radice. Chegamos cada vez mais perto da modernidade. Agora é hora de falar do final dos anos 1980 e de parte dos anos 1990. Vamos lá.

>>> Parte 1: WM, WW, Vittorio Pozzo e o Grande Torino: as origens do estudo tático
>>> Parte 2:
Catenaccio, zona mista e o jogo à italiana
>>> Parte 4:
Os dias atuais; o que andam fazendo os treinadores na Bota

Itália: entre a inovação e a atualização da tradição
Se os anos 1970 foram tempos difíceis e de reinvenção para o futebol italiano, os anos 1980 representaram o início da que se transformaria na maior liga do futebol europeu. Depois do escândalo Totonero, a Itália foi campeã mundial com o time de Enzo Bearzot e então emplacou finais europeias com Roma e Juventus, voltando ao título europeu em 1984-85 com a Vecchia Signora de Giovanni Trapattoni, sua zona mista e o poderoso trio formado por Michel Platini, Zbigniew Boniek e Paolo Rossi.

Até então, os grandes expoentes do futebol na Europa eram o totaalvoetbal holandês do Ajax de Rinus Michels e Johan Cruyff, o Bayern Munique organizado e criativo de Franz Beckenbauer e o Liverpool de Bill Shankly e Bob Paisley, com as duas linhas de quatro rígidas. Como relatei na última parte, nessa época, a Itália viveu o “colapso” do catenaccio e o ressurgimento do gioco all’italiana com a zona mista de Trapattoni e Radice.

A abertura para contratação de craques estrangeiros foi a grande mudança na Serie A, o que popularizou o campeonato internacionalmente e o tornou grande sucesso comercial. Os mais antigos lembrarão das transmissões dominicais no Brasil, onde podiam ver Platini, Diego Maradona, Lothar Matthäus ou os brasileiros Paulo Roberto Falcão, Zico, Toninho Cerezo e muitos outros. Mas foi um time em particular que alavancou ainda mais o futebol italiano, e com boas razões: o Milan de Arrigo Sacchi.

Como bem define o especial do ESPN FC sobre grandes treinadores, “alguns treinadores alcançaram grandeza pela longevidade, enquanto outros alcançaram através de uma breve explosão que revolucionou o jogo”. E o segundo caso é exatamente é o de Sacchi. O romanholo surgiu repentinamente no futebol, treinando um Parma pré-Parmalat na Serie C e na Serie B. Em seu segundo ano no clube crociato, apareceu para o mundo ao surpreender e eliminar o Milan da Coppa Italia em pleno San Siro, com seu futebol ofensivo, já praticando as premissas que consolidaria no clube comandado por Silvio Berlusconi. O dono do clube rossonero, aliás, sempre bancou o polêmico treinador, desde que apostou as fichas para que Sacchi, embora não tivesse currículo expressivo, tomasse as rédeas de um gigante europeu.

No início, Sacchi enfrentou resistência pela pouca experiência e por não ter tido passado como jogador profissional – atuou apenas em campeonatos amadores, por pouco tempo. Isso o técnico respondia com a célebre frase: “não sabia que para ser jóquei era preciso ser cavalo antes”. Depois, o carequinha era combatido por ter enfrentado o tradicional jogo à italiana, a marcação a homem, as linhas baixas e a individualidade.

Com sua evolução do futebol total holandês, o calcio totale de Sacchi revolucionou o futebol. As preparações física, técnica e tática, entre outros aspectos, sofreram profundas alterações a partir das práticas do treinador, que só tornou tudo isso popular a partir das conquistas europeias e nacionais com o Milan entre 1987 e 1991. Apesar de tudo, o resultado sempre foi, e provavelmente continuará sendo, o grande determinante das mudanças no esporte. E não poderia deixar de ser com o histórico Milan formado pelo técnico romanholo.

Milan 1988-89, no 4-4-2 de Sacchi

Sacchi aproveitou a base construída no Milan e o desenvolvimento de jovens com o lendário Nils Liedholm – como dito por aqui, na segunda parte do especial, um dos precursores da marcação por zona no Belpaese – e pode contar com os reforços pontuais (se é que se pode dizer assim de tais craques) dos holandeses Frank Rijkaard, Ruud Gullit e Marco van Basten. Juntos, formariam o esqueleto de um time extraordinário, trabalhador, técnico e ao mesmo tempo simples e complexo. E muito do futebol de Sacchi passava pela marcação por zona. O forte pressing, a marcação por pressão, era a base de um time que jogava sempre compacto e estreito, com os 11 jogadores próximos e formando uma sociedade com pequenos grupos, voláteis, que se moviam juntos para frente e para trás, para a esquerda e para a direita, para o ataque e para a defesa.

Com seu 4-4-2 em linha, que eventualmente ganhava forma de losango no meio-campo quanto atacava – e que não era exatamente tão determinante -, tinha linhas altas, muito altas, que praticava a linha de impedimento sob o comando do líbero Franco Baresi. Sacchi, apesar do futebol ofensivo e da predileção pela posse de bola no campo adversário, era obcecado pelo trabalho sem a bola, treinava exaustivamente os movimentos e, especialmente, a fase defensiva: eram notórios os achiques dos defensores para subir o posicionamento da última linha, buscando deixar o ataque adversário em impedimento, e as perfeitas basculações das duas linhas de quatro.

Se hoje os times se preocupam tanto em limitar o espaço em 30-40 metros, com compactação dos setores, as linhas bastantes próximas para atacar e defender, isso se deve muito a Sacchi, que gozou de sucesso e fama apenas nos seus quatro primeiros anos em Milanello. Mas foi o bastante para alterar quase tudo não só na Itália, mas no mundo. O futebol de alto ritmo, da marcação por pressão, de movimentos e jogo posicional mais ricos estava presente naquele time, campeão de tudo.

O pós-Sacchi foi marcado com a continuação do sucesso da Serie A, e dois treinadores particularmente fizeram fama nos anos 1990 – em certos momentos nos anos 2000 também -, moldando o futebol de Sacchi para novos modelos de jogo, estratégias e esquemas táticos. Ambos foram criados ainda no catenaccio, e também se aproveitaram muito do jogo à italiana. Na verdade, atualizaram o jeito italiano de se jogar para o futebol moderno.

Se você pensou em Fabio Capello e Marcello Lippi, então acertou na mosca. O primeiro foi o escolhido para suceder Sacchi, então convidado para treinar a seleção nacional, no comando do Milan. Apesar da inexperiência, rapidamente Capello se mostrou um treinador determinado, competente e também rigoroso. Um sujeito de convívio não muito fácil, egocêntrico e egoísta, mas criado para vencer. Goste ou não, seus times venciam – no passado mesmo.

Pragmático e brilhante, Capello manteve a máquina montada por Sacchi girando em alto ritmo (imago)

Capello conseguiu isso porque conseguiu trazer a leitura de jogo que tinha em campo – era um bom regista, que liderava o meio-campo em Milan, Juventus e Roma – para a beira do gramado, como treinador. Poucos têm o mesmo entendimento de jogo e direção de campo que o técnico friulano.

No Milan, ele foi capaz de montar times dos mais variados estilos, mantendo a base tática de Sacchi, com certas adaptações. Seu time era mais rígido e menos agressivo, e tinha novos jogadores: inicialmente, ele manteve a base do antecessor, com os holandeses, mas com o tempo vieram jogadores da antiga Iugoslávia – Dejan Savicevic e Zvonimir Boban. Eles formaram um time ainda mais forte, competitivo e vencedor, que chegou a 58 jogos sem derrotas na Serie A, além de quatro scudetti, três consecutivos, e três finais de Liga dos Campeões, com um título. Tudo isso entre 1991 e 1996.

Milan 1993-94, no 4-4-2 de Capello

Capello ainda montou dois outros grandes times nos anos seguintes. Primeiro, sua Roma campeã italiana, deixando de lado o 4-4-2 em benefício do 3-4-1-2, para aproveitar melhor o trio formado por Francesco Totti, Vincenzo Montella e Gabriel Batistuta e seus alas ofensivos. Sem esquecer das passagens pelo Real Madrid e o reencontro com a Juventus, voltando ao seu rígido e imbatível 4-4-2.

Marcello Lippi surgiu para o futebol no final dos anos 1980, e após boas campanhas por Cesena, Atalanta e Napoli, chegou na Juventus, em 1994, na última temporada de Roberto Baggio em Turim, justo no momento da afirmação de Alessandro Del Piero. A partir dali, e na segunda metade dos anos 1990, tornou a sua Juventus a grande equipe da então maior liga europeia, na primeira versão da Vecchia Signora de Luciano Moggi e Antonio Giraudo.

Na Juventus, Lippi foi o segundo a levantar a Liga dos Campeões (imago)

Apesar das estrelas e grandes jogadores, era na simplicidade que seu time se destacava. Na primeira passagem por Turim entre 1994 e 1999, Lippi conquistou, entre outros títulos, três scudetti e duas finais de Liga dos Campeões – foi vencedor uma vez. Posteriormente, em sua segunda etapa na Juventus, de 2001 a 2004, foi campeão italiano por mais duas vezes. Ele teve como antecessor Carlo Ancelotti, assunto para a próxima parte, e como sucessor o já citado Capello, campeão italiano mais duas vezes – em títulos cassados pelo processo Calciopoli.

Lippi sempre valorizou o equilíbrio. Nunca foi de extremos e, estudioso, montava seus times pensando no contexto e no adversário, mas sempre focando na vitória. Como destaca o ESPN FC, uma vez, Sir Alex Ferguson disse o seguinte: “A Juventus foi um exemplo para meu Manchester United. Os meus jogadores assistiam vídeos da equipe de Lippi e eu destacava: ‘não olhe para as táticas ou técnica, nós temos isso também, vocês precisam ter esse desejo de vencer'”.

Juventus de Lippi em 1995-96, usando o 4-3-3

Também contemporâneo de Sacchi, treinou antes, durante e depois do impactante trabalho do carequinha no Milan. Cria do catenaccio, Lippi aprendeu a marcação a homem e estratégia defensiva, e acaba se tornando uma espécie de revival de Trapattoni, apesar das tantas diferenças entre ambos. A comparação surge pelo fato de os dois formarem equipes, dependendo da situação, que sabiam marcar a homem ou por zona, que podiam defender em bloco baixo e contra-atacar, ou pressionar no campo adversário e atacar com dinâmica no último terço do gramado. Nessa aspecto, o técnico toscano era mais flexível que o velho Trap, mas soube conviver muito bem com o contexto e suas mudanças, e se destacar nesse cenário como um vencedor.

Sua primeira Juventus se portou num 4-3-3 dinâmico e agressivo, com defesa e meio-campo robustos e ataque que se completava: primeiro Baggio, depois o jovem Del Piero, operando a partir da esquerda, mas livre para se movimentar no último terço. Ainda no ataque, Gianluca Vialli partia do centro do ataque com seus ricos movimentos e agilidade, e Fabrizio Ravanelli vinha pelo outro lado, como opção mais direta, física, e garantindo trabalho de equipe e profundidade.

Juventus 1996-97, no 4-3-1-2

Variação da Juve em 1997-98, com um 3-4-1-2

Posteriormente, Lippi teve em mãos uma equipe ainda mais completa, com opções para o treinador adequar bem sua escalação ao contexto. Com isso, a Juventus ia a campo de 1996 a 1999 alternando entre 4-3-1-2, 4-4-2 e 3-4-1-2, aproveitando a versatilidade de seus meio-campistas e a capacidade organizativa e criativa de Zinédine Zidane para combinar com a riqueza de atacantes dos bianconeri – à época, o elenco tinha gente do naipe de Del Piero, Pippo Inzaghi, Christian Vieri e Alen Boksic.

Entre a inovação sacchiana e a atualização da tradição proposta por Capello e Lippi, a Itália viveu seus grandes últimos momentos no futebol. Na próxima parte, falaremos ainda sobre alguns técnicos que se destacaram nos anos 1990 e na primeira década dos anos 2000, além de falarmos de como anda a situação contemporaneamente. Até a semana que vem!

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