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Juve acusada de se envolver com a máfia italiana: qual é a história?

A Procuradoria de Turim encerrou a operação Alto Piemonte em novembro de 2016. As pessoas envolvidas na investigação foram acusadas formalmente em 84 crimes – desde associação criminosa e tráfico de drogas à tentativa de homicídio. A polícia começou a suspeitar que a máfia estava usando torcedores para entrar no futebol quando um importante ultra da Juve morreu um dia depois de depor sobre o crime organizado.

A semana passada voltou a ser movimentada. Antonino Pesce, um dos presos em julho último e que tinha escapado do cárcere, foi capturado novamente. Ele era o líder de uma célula ligada à máfia calabresa ‘Ndrangheta. Além da prisão, a investigação voltou à tona com uma publicação do Fatto Quotidiano. O jornal noticiou que a Federação Italiana de Futebol recebeu os documentos que acusavam o presidente da Juventus, Andrea Agnelli, de “atos ilícitos”.

Para compreender melhor o que aconteceu, temos de identificar que os personagens principais da história estão ou estiveram dentro dos estádios do Belpaese: são os ultras, torcedores organizados (muitas vezes com viés político) que extrapolam o ambiente esportivo – como acontece no Brasil, Argentina, França e Inglaterra.

Atualmente existem 382 grupos de ultras conhecidos na Itália. Os primeiros foram formados no fim da década de 1960, quando fanáticos de Milan, Inter, Torino, Verona e Sampdoria se agruparam para promover os clubes e interesses próprios. A Juve só foi ter uma organizada no período que a maioria dos clubes grandes do Belpaese já tinha seus pelotões. Venceremos e Autonomia Bianconera foram os estreantes conhecidos da Velha Senhora – ambos com inclinação política de esquerda. Em dez anos, a lista aumentou: Panthers, Fossa dei Campioni, Fighters, Superstars, Nucleo Armato Bianconero, Viking… A Drughi, da extrema-direita, apareceu exatamente após a dissolução da Fighters depois de uma briga generalizada com os ultras da Fiorentina, em 1987. Membros da extinta organizada se juntaram com Indians e Gioventù Bianconera para formar a inicialmente alcunhada Laranja Mecânica, referência ao filme de Stanley Kubrick.

As organizadas são montadas por indivíduos que vendem a ideia de lealdade às cores de determinado time. A extrapolação dos limites supracitada ocorre porque existe uma subcultura desenvolvida nestes miniuniversos: enquanto houver a complacência do governo, estes indivíduos buscarão dinheiro e poder através da ilegalidade. Negociar ingressos fora das bilheterias não é uma ofensa criminal na Bota, mas sim um crime administrativo (punido com multa, se for o caso). Porém, os mesmos grupos vendiam produtos falsificados e pertenciam ao tráfico de drogas. “O compromisso entre Juventus e os ultras era simplesmente um acordo entre as regras e as realidades”, afirmou Michele Galasso ao The Guardian. Ele foi um advogado que representou líderes dos grupos e o bianconero. A ajuda mútua se baseava em um estádio seguro e vibrante enquanto a Juventus ajudava os ultras lucrarem milhões de euros em uma temporada. Não são incomuns os relatos de ultras mudando de time, segundo a perscrutação recente contra o crime organizado, uma vez que são investidores – o importante é ganhar dinheiro.

Ultras: influência, racismo e complacência

As torcidas começaram a ganhar muita força na metade dos anos 90, escoradas na permissividade do entorno. Temporadas antes da virada da década, a Udinese comunicou à imprensa que tinha vetado a contratação do atacante Ronny Rosenthal porque ele não tinha passado nos exames médicos. A verdade foi que uma pequena porém audível facção antissemita não queria a contratação do israelense. Quando o jogador do Standard Liège visitou o Friuli, pichações que enalteciam o nazismo foram vistas por Údine. Em 1995, o tribunal municipal condenou o time a pagar 61 milhões de liras de indenização, mesmo ano que a Lazio cancelou e não vendeu Giuseppe Signori ao Parma. O presidente Sergio Cragnotti fez o anúncio da transferência, contudo, os biancocelesti voltaram atrás pois tinham receio de perder uma dinheirama de renda após ameaça de boicote da torcida.

Como abordado em “Itália e a sexualidade escondida no ‘esporte de macho’”, as cenas de racismo e violência aumentaram exponencialmente, seguindo a progressão de influência dos ultras. Aron Winter, filho de pai muçulmano e mãe judia, leu “Winter Raus” (alusão à expressão “Juden Raus” da Alemanha nazista) no muro do centro de treinamento da Lazio quando assinou com o clube. Um dérbi entre Roma e Lazio em 2004 foi cancelado porque uma organizada giallorossa disse que “mataria os jogadores” caso a partida fosse realizada, depois revelou o capitão Francesco Totti. Eles protestavam porque uma garota tinha morrido pelas mãos da polícia nos arredores do estádio – e era só um boato. Um dos homens envolvidos no assassinato do marroquino Abdellah Doumi chamava o cachorro de Adolf. A vítima, que foi jogada no rio Pó por ultras do Torino, não sabia nadar. Enquanto ele se afogava, os criminosos gritavam “seu merda preto e sujo”.

Raffaello Bucci foi a peça-chave para o início das investigações no Belpaese. Nascido em San Severo, região central do país, ele se mudou para Turim naquele período de fortalecimento das torcidas. Ciccio era formado em biblioteconomia, mas não achou emprego assim que chegou ao noroeste da Itália. A oportunidade que teve (ou criou) foi vender ingressos das partidas para amigos e colegas destes. Foi o início da relação entre a Drughi e ele, que teve um triste fim em 7 de julho de 2016. Resumindo: Bucci foi escanteado por Mocciola, acusado de traíra pelos antigos parceiros ultras e foi encontrado boiando no rio Stura di Demonte, entre Turim e Cuneo, no dia 7 de julho do ano passado. A estrutura de 45 metros de altura tem o triste apelido de “ponte do suicídio”; este foi o mesmo lugar onde Edoardo, filho único do ex-dono da Fiat e presidente da Juve, Gianni Agnelli, cometeu suicídio em 2000.

A fama de Ciccio era tremenda e a lista de contatos, extensa. Os amigos dele falavam que ele era um trascinatore, um líder nato. A confiabilidade que trazia consigo fazia com que ele tivesse bom relacionamento com o staff juventino – ao ponto de dormir no apartamento do responsável pelo setor de ingressos do clube, Stefano Merulla. A escalada culminou com Bucci empunhando o megafone para puxar os cantos da Juventus durante as partidas. Ele era um dos líderes do grupo, mas não era O Cara: este era Gerardo Mocciola. Dino ficou preso durante 20 anos por assalto à mão armada e assassinato de um policial. Quando foi solto, em 2005, poucas eram as pessoas que conseguiam chegar perto dele – visto que foi banido dos estádios. Por outro lado, a liberdade de Mocciola influenciou a Drughi. Entre aquele ano e o seguinte, drugos e membros da Fighters foram esfaqueados em brigas das organizadas. O resultado foi que os ultras de Dino conseguiram a curva. Garantir o centro da arquibancada demonstrava o prestígio daquele grupo. Significava, em outras palavras, que a Drughi, a partir daquele momento, era uma intermediária da Juventus, com maior quantidade de ingressos e subsídio para viagens.

Quando o jovem policial Filippo Raciti morreu durante um combate entre oficiais da lei e ultras do Catania, políticos italianos quiseram intervir na ameaça que os fãs violentos proporcionavam à sociedade. Em 2007, todas as partidas da Liga foram suspensas por uma semana e nenhuma torcida, posteriormente, pode levar bandeiras e megafones aos estádios. Coincidentemente foi o mesmo ano que a Juve fechou o acordo de compra do Delle Alpi junto à Prefeitura de Turim. O clube queria que a violência fosse coibida, pois não queria correr o risco de perder o potencial financeiro com multas e perdas de ponto devido ao comportamento da torcida dele.

Durante a investigação, Merulla afirmou que a Juventus disponibilizava centenas de ingressos para cada líder dos grupos. A distribuição era feita em forma de crédito pela agência Akena. O que ele pedia em troca era a boa conduta deles. O compromisso era uma “boa solução para todo mundo”, disse à polícia. É bem verdade que os bilhetes para as partidas não era nada comparado ao ouro dos carnês para a temporada. Um membro de cada organizada, durante os verões entre temporadas, recolhia identidades, as duplicava e usava para comprar o pacote anual. Uma vez que o dono oficial do bilhete não tinha interesse em ir aos jogos, os ultras vendiam para quem tivesse a melhor oferta. Para mensurar a quantidade de dinheiro envolvida, cada grupo podia chegar a 1 milhão de euros por época com a venda de ingressos.

A tentativa de diminuir a influência das organizadas, uma medida conhecida como Daspo, perdurou cinco anos. Os ultras voltavam a ter muito poder no Belpaese devido ao crescimento da popularidade entre os torcedores e à falta de políticas que os confrontassem. A partida entre Salernitana e Nocerina, pela Lega Pro (3ª divisão), foi abandonada quando cinco jogadores do time visitante fingiram lesão em forma de protesto porque os torcedores foram banidos das partidas. Quando o Genoa lutava para fugir do rebaixamento na Serie A de 2012, os ultras, revoltados, arremessaram sinalizadores no gramado do Marassi e gritaram para que os jogadores tirassem a camisa do Grifone quando a partida marcava 4-0 para o Siena. Mais? O técnico Alberto Cavasin foi ameaçado e quase agredido por fanáticos no centro de treinamento da Sampdoria. A final da Coppa Italia em 2014 aconteceu somente porque Genny ‘a Carogna, chefe da organizada Mastiffs (Napoli), permitiu – a surreal história pode ser lida aqui na Calciopédia.

O tiro no pé pós-Guerra e os Dominello

O Fatto Quotidiano disse na reportagem que os ultras estavam ligados a uma investigação que buscava a ‘Ndrine, outro braço da ’Ndrangheta. E como a máfia sulista ganhou força no Norte? A Itália do pós-guerra quis diminuir o poder delas. O soggiorno obbligato foi uma ideia colocada em prática em 1956 que bania os piores elementos da região e os realocavam nos territórios fronteiriços a França, Áustria, Suíça e Eslovênia. Na teoria, eles seriam submetidos a leis mais rígidas do Norte; o resultado foi que, basicamente, exportaram a máfia. A que melhor se adaptou ao novo ambiente foi a calabresa. A ‘Ndrangheta migrou os serviços de extorsão, cartel na construção civil, tráfico de drogas e empréstimos de dinheiro – afinal, a riqueza do Piemonte era uma atração sem precedentes.

Entrar no esporte seria, portanto, uma questão de tempo. A família Dominello pretendia, como revelou uma investigação antimáfia em 2013, vender ingressos fora das bilheterias e criar uma torcida chamada Gobbi. O pai, Saverio, e o filho, Rocco, eram suspeitos de integrarem o Rosarno, clã envolvido em casos de extorsão em pequenas cidades entre Turim e Milão, da vizinha Lombardia. Para pertencerem a esse novo universo, Saverio sabia que tinha de ter a aprovação dos outros grupos de ultras. Naquele ano, em abril, os Dominello conversaram com Mocciola por quase duas horas em um café na pequena vila piemontesa de Montanaro. No dia seguinte, ou seja, 21, um banner gigantesco da Gobbi foi apresentado no estádio durante o clássico ante o Milan. Dois meses depois, ele já dava ordens ao chefe da segurança bianconera, Alessandro D’Angelo – e até pediu para que diminuíssem a cota de ingressos ao grupo rival Vikings “como havia falado”.

Um cidadão suíço entrou em contato com a Juventus em janeiro de 2014 reclamando que pagou 620 euros por um bilhete que valia 140. O clube investigou a denúncia e notou que o ingresso fora fornecido a Rocco por D’Angelo. Merulla, que foi somente apresentado à família, começou a suspeitar dos Dominello. O cabeça do setor dos tíquetes conversou com outro ultra e disse que não fazia ideia qual era o tamanho da influência de Rocco. Uma semana mais tarde, D’Angelo disse a Dominello que encontraria uma forma para entregar-lhe os ingressos. Ao The Guardian, uma fonte descreveu que a Juventus errou feio no julgamento porque acreditava que conseguiria lidar com a situação, e um juiz escreveu que a agremiação apresentava sinais de complacência e submissão perante Rocco. O pai de D’Angelo fora o chofer de Umberto Agnelli e ele mesmo tinha crescido ao lado do menino Andrea, o atual presidente bianconero. O nepotismo intrínseco é parte do problemático sistema italiano.

Segundo um dos promotores públicos que acompanhava a investigação, o chefe da segurança só entendeu o que estava acontecendo depois que conversou com Ciccio. Bucci já tinha retornado para a cidade natal – dentro da Drughi após a fusão com a Gobbi, sugeriram que ele era informante da polícia – e entrou em contato com D’Angelo para dizer, em termos velados, sobre a relação de Rocco com a máfia. No mesmo período, Andrea Puntorno foi preso por tráfico de drogas numa operação que visava o crime nas organizadas. Ele era o líder da Bravi Ragazzi, grupo conhecido por atear fogo em um acampamento de viajantes em Continassa. O ato consistia em forçar a saída das 20 famílias do entorno da nova arena da Juve para que as obras continuassem.

Depois de preso, a mulher de Puntorno se tornou testemunha de acusação, visto que foi ameaçada pelos associados do marido. Por vezes, ele conseguia 30 mil euros por partida da Velha Senhora – dinheiro que era distribuído entre outros membros que estavam presos. Foi assim que os investigadores conseguiram juntar peças restantes entre a venda dos ingressos com o ações criminosas. Enquanto Puntorno conseguiu liberdade condicional mediante pagamento de 500 mil euros, os Dominello aguardam o julgamento na prisão por uma variedade de infrações. A operação que flagrou pai, filho e outras 13 pessoas, em julho de 2016, se deu dias após a detenção do segundo homem mais procurado da ‘Ndrangheta. Ernesto Fazzalari, foragido desde 1996, foi condenado à revelia à prisão perpétua por sequestro, posse de armas, associação mafiosa e duplo homicídio.

O que o ex-prefeito e atual promotor da FIGC Giuseppe Pecoraro procura é como a Juventus esteve envolvida nisso tudo. O Fatto Quotidiano divulgou o documento que dizia que o “presidente Agnelli não impediu sócios, gerentes e funcionários do clube em manter relações duradouras com os ultras ao autorizar a distribuição de bilhetes […] e que ele participou pessoalmente de algumas reuniões com membros do crime organizado e ultras”. No inquérito, nenhum membro do corpo diretivo ou funcionário foi apontado em um tribunal criminal. A Juventus não teve papel ativo na situação, contudo, resta o nível do esporte. O clube ainda pode ser culpado por manter a disponibilização indevida de bilhetes que fere o artigo 12 do Código de Justiça Desportiva. A violação é punida com multa e uma sanção mais grave só seria obtida se a Juventus tivesse financiado atividades criminosas junto aos ultras. Em nota oficial, o clube demonstrou cooperação ativa para as investigações futuras.

Todo e qualquer resultado obtido é extremamente importante porque afeta tantos outros clubes – de forma similarmente tolerante com os torcedores – e também a comissão parlamentar antimáfia. A audiência dos magistrados piemonteses está marcada para a próxima terça-feira (7). A Gazzetta dello Sport noticiou que Angelo Attaguile, deputado da Liga Norte, quer realizar audiências com as autoridades da Federação Italiana, AIC, Liga A, B e Pro para “proteger os interesses do futebol”.

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Esse texto foi publicado originalmente em fevereiro de 2017 no ESPN FC. Baseado na excelente reportagem de Tobias Jones, que conta a história pelo ponto de vista de Ciccio Bucci.

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