Os estudos dedicados à História da Europa são unânimes: o continente era um verdadeiro barril de pólvora nas primeiras décadas do século XX. Uma forte recessão econômica, a ocorrência de revoluções e a ascensão de regimes totalitários e movimentos revanchistas e irredentistas temperaram aqueles anos turbulentos, marcados pela eclosão de duas guerras mundiais. A Itália estava no centro disso tudo.
Em 1917, a Primeira Guerra caminhava para o seu fim, com os italianos lutando nos fronts dos Alpes e dos Bálcãs e os Estados Unidos anunciando sua entrada no conflito. Em agosto daquele mesmo ano, uma família de imigrantes italianos na América do Norte celebrava o nascimento de mais um filho: numa cidadezinha de Indiana, o pequeno Herman alegrava a estirpe dos Frigo.
O Herman ítalo-americano, porém, só existiu por oito anos. Em 1925, a família Frigo decidiu retornar a seu país de origem, pois a economia dos Estados Unidos começava a retrair. Uma vez na Itália, Herman foi rebatizado como Armando, já que as leis fascistas da época proibiam nomes de origem estrangeira. Já com o novo nome, Frigo se tornou o mais famoso de sua linhagem, primeiro no futebol e depois na II Guerra Mundial.
Armando Frigo, ao centro da foto que abre este texto, começou sua carreira no Vicenza, antes mesmo de completar 18 anos, e seria o segundo jogador estadunidense a jogar na Itália – o pioneiro foi Alfonso Negro, também oriundo. O meio-campista estreou pelos biancorossi na Serie B 1934-35 e, após o rebaixamento, ficou quatro anos na terceirona. Peça importante do time vicentino, Frigo ficou conhecido por jogar um clássico contra o Verona com um braço imobilizado, no melhor estilo Franz Beckenbauer. Seria uma amostra da valentia que lhe daria o status de herói.
Em 1939, a Segunda Guerra começava, mas a bola continuava a rolar na Itália. Neste mesmo ano, Frigo foi contratado pela Fiorentina. Lá, reencontrou o atacante Romeo Menti, seu companheiro no Vicenza e um de seus melhores amigos – Menti, inclusive, integraria o chamado Grande Torino e faleceria na Tragédia de Superga, em 1949. Armando Frigo ajudaria a equipe violeta a ficar com uma quarta posição na Serie A e, mais importante, seria útil para a conquista do primeiro título da história do clube: a Coppa Italia, em 1940.
Frigo ainda defendeu o Spezia em 1942-43, até a interrupção do campeonato por causa da guerra, que cada vez mais adentrava em território italiano. No entanto, o evento que mudou a sua vida aconteceu em 1941, quando ainda jogava pela Fiorentina. O meio-campista viajava de trem para visitar a família em Vicenza e dividiu vagão com um jovem soldado, que havia sido licenciado do front porque não tinha mais condições de cumprir seus deveres com o exército: tivera uma perna amputada.
Após horas de conversa, Armando ficou imensamente comovido e tomado por uma forma de sentimento patriótico que talvez só apareça em situações extremas, verdadeiramente contingentes – e que, em seu caso, prescindia de ideologia. Frigo se deu conta de que havia gente dando sua vida no maior conflito armado da história enquanto jogadores de futebol (já profissionalizados, àquela época) se refugiavam na neutra Suíça ou eram dispensados do serviço militar por causa de seu status na sociedade ou grau de estudo. Imediatamente, decidiu se alistar. Não para defender o estado fascista italiano, mas para, de alguma forma, honrar o país que o acolheu.
Depois de receber treinamento e cumprir parte do serviço militar na região central da Itália, Frigo foi outorgado como oficial do exército, com a graduação de subtenente. No início de 1943, o jogador recebeu o chamado para o combate e foi deslocado para a Dalmácia, região que compreende o que hoje é o sul da Croácia e partes de Montenegro e Bósnia e Herzegovina. Na época, o território pertencia à Iugoslávia e havia sido invadido pelos italianos, que reivindicavam a sua posse.
Nos primeiros meses, a tarefa da 155ª Divisão de Infantaria, a Emilia, da qual Frigo fazia parte, era administrar a região e combater opositores locais. Afinal, a Dalmácia era cercada apenas pela Croácia Nazista, um estado fantoche dos alemães, que replicava a política genocida de Adolf Hitler e exterminava sérvios, judeus, ciganos, croatas dissidentes e outros – estima-se que 700 mil pessoas foram assassinadas pelo regime.
Tudo mudou entre o final de julho e o início de setembro daquele ano. A Itália perdia a guerra: os territórios invadidos no norte da África haviam sido retomados pelos Aliados, cujas tropas também já avançavam sobre a Península Itálica, com operações na Sicília. Insatisfeito, o povo italiano queria que o país deixasse o conflito, ao passo que a Alemanha pretendia reforçar sua presença militar na Itália, ciente do clamor popular e de que o exército fascista estava em seu limite. Nos bastidores, o rei Vittorio Emanuele III articulava a troca no comando executivo italiano para salvar o país e a própria monarquia – esta última, durou somente até 1946, quando a república foi instituída.
No dia 25 de julho, a coroa destituiu o duce Benito Mussolini e decretou a sua prisão, sob a acusação de ter colocado o país em risco pela aliança com os nazistas e a entrada na II Guerra Mundial. De imediato, o marechal Pietro Badoglio começou a negociar a paz com os Aliados e, no dia 8 de setembro, foi anunciado um armistício com as forças lideradas por Estados Unidos, Reino Unido e União Soviética. A partir daquele momento, não obstante a posição de neutralidade que a Itália assumiu logo após a assinatura do tratado, o führer ordenou a ofensiva da Alemanha sobre as tropas italianas.
O acordo com os Aliados pegou o exército italiano de surpresa: as tropas só ficaram sabendo do armistício através do rádio. Os batalhões se dividiram entre os que obedeceram ao cessar-fogo e os que continuaram apoiando Mussolini. O duce foi resgatado da prisão pelos alemães menos de uma semana após o anúncio do tratado e se tornou uma marionete mais escancarada dos interesses alemães na Itália ao fundar a República Social Italiana, que tomava a metade setentrional da península se sustentava graças à SS e à Wehrmacht. Com um exército com dois comandantes e apoio de forças estrangeiras, o país, evidentemente, entrou em guerra civil.
Enquanto a decadente família real, a elite da burocracia e os oficiais de alta patente fugiam para o sul da Bota, no intuito de não serem mortos ou capturados pelos alemães, nenhum plano de extração foi traçado para as tropas que estavam nos territórios dominados pelos nazistas. Era o caso da divisão de Armando Frigo. O cerco dos germânicos aos soldados da brigada Emilia se intensificou assim que o armistício foi anunciado e os quatro oficiais no comando (entre eles, o meio-campista) decidiram que o pelotão iria resistir.
Durante um mês, o grupo de soldados e oficiais defendeu a região montanhosa situada a 40 quilômetros das Bocas de Cátaro. Hoje a baía é um dos principais destinos turísticos de Montenegro e é considerada patrimônio da humanidade pela Unesco, mas antes era um ponto estratégico para a chegada e a saída de tropas da região. A bravura de Frigo e sua infantaria fez com que tropas italianas e partisans que formavam a resistência guerrilheira sérvio-montenegrina pudessem escapar do cerco com segurança.
No início de outubro de 1943, todos já haviam batido em retirada, menos Frigo, outros três oficiais e 26 soldados. O pequeno grupo só cedeu aos intensos bombardeios e ataques terrestres dos nazistas quando a munição e os mantimentos acabaram. No ato de rendição, Armando e os outros militares de patente mais alta decidiram não esconder suas insígnias (que “denunciavam” o seu status) e declararam aos alemães que os praças apenas cumpriam suas ordens.
Na prática, trocaram as vidas dos subordinados pelas suas. Os quatro oficiais foram levados a uma clareira e, sob os olhares de prisioneiros italianos, acabaram fuzilados pelos nazistas. Foram colocados de costas para seus atiradores, numa posição dispensada para aqueles que eram considerados traidores, e alvejados no dorso e na nuca. Na carteira de Frigo, que morreu com apenas 26 anos, foram encontrados um santinho de Nossa Senhora do Monte Berico, santa de devoção do povo de Vicenza, e sua cédula de jogador da Fiorentina.
Duas tristes ironias sucederam a morte de Armando Frigo e adicionaram um sabor ainda mais amargo a seu precoce fim. A primeira delas, quase que de imediato. Três dias depois de seu assassinato, a Itália declarou guerra à Alemanha Nazista e reforçou sua atividade militar, o que poderia ter poupado a vida dos oficiais.
Além disso, na esfera futebolística, os clubes sediados no norte do Belpaese disputaram um torneio nacional, pensado como substitutivo à Serie A. O Campeonato da Alta Itália acabou tendo como vencedor o Spezia, time que Frigo defendia. Na ocasião, os aquilotti foram representados por uma equipe do corpo de bombeiros local e, em 2002, a Federação Italiana de Futebol reconheceu o título, conferindo à agremiação um scudetto honorário.
Frigo não foi o único jogador a morrer em combate nas grandes guerras. Na primeira delas, devido ao fato de o futebol ainda ser praticado de forma amadora, a participação de atletas no conflito foi maciça – segundo estudiosos do tema, a Lazio e o Vicenza são os clubes que mais tiveram esportistas falecidos em batalhas. Nomes conhecidos são os de Luigi Ferraris (Genoa) e de Giovanni Zini (Cremonese), que batizaram os estádios de Gênova e Cremona, respectivamente.
Na II Guerra Mundial, porém, apenas seis baixas de jogadores foram contabilizadas. Além de Frigo, morreram Antonio Turconi, 23 anos, goleiro da Pro Patria e partisan; Dino Fiorini, 29, lateral esquerdo do Bologna e membro da Guarda Nacional Republicana fascista; e Cecilio Pisano, 27, meia ítalo-uruguaio do Liguria, que chegou a ser nomeado pelos nazistas como cônsul do país sul-americano em Gênova, durante o jugo alemão no norte da Itália. Além deles, Aldo Fabbro, 24, meia do Napoli, e Pietro Tabor, 25, defensor do Liguria, não lutaram no conflito: eram civis, mas faleceram em bombardeios.
Sem dúvidas, Frigo é o símbolo da transposição do espírito esportivo para o inóspito ambiente de guerra. Apesar disso, até hoje o ex-jogador não recebe o reconhecimento que merecia. Nos anos 1970, algumas equipes dedicaram um memorial ao mártir, que também havia sido homenageado com um campo de futebol com seu nome na comunidade de Roana, onde morava. Alguns anos atrás, porém, a pequena cancha desapareceu, dando lugar a um empreendimento.
Atualmente, pesquisadores e descendentes do herói reivindicam que o governo italiano dê o devido o tratamento a Armando Frigo, que nem mesmo ganhou uma medalha póstuma de honra ao mérito pelos seu sacrifício na Segunda Guerra Mundial. Seria um gesto que conferiria um mínimo de justiça e reparação histórica para aquele que deu a própria vida para que o mundo pudesse seguir um caminho melhor.
Armando Frigo
Nascimento: 5 de agosto de 1917, em Clinton, Indiana, Estados Unidos
Morte: 10 de outubro de 1943, em Crkvice, Croácia Nazista (atual Montenegro)
Posição: meio-campista
Clubes: Vicenza (1934-39), Fiorentina (1939-42) e Spezia (1942-43)
Título: Coppa Italia (1940)
Obrigado pelo post.
A família Frigo agradece.