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1944: o ano em que o Torino foi da família Agnelli

A Itália era um caldeirão de conflitos. Ao norte, as tropas nazifascistas faziam a forra; ao sul, os Aliados tentavam avançar à Linha Gótica, o bloqueio alemão que passava pela cordilheira dos Apeninos. Com a Segunda Guerra Mundial em curso, a Federação Italiana de Futebol resolveu interromper o campeonato profissional. Ainda que o esporte pudesse ter um efeito coletivo positivo, como o ditador Benito Mussolini bem usou nos anos anteriores, a logística de uma competição nacional era complicada: os meios de transporte eram escassos, campos estavam indisponíveis e jogadores eram convocados pelas forças armadas. Tiveram a ideia, então, de realizar um torneio não oficial em 1944, ano em que o Torino foi Juventus – ou foi da família Agnelli.

A Fiat procurou ajudar o rival do Piemonte ao declarar ao regime que os atletas do Torino eram seus empregados, imprescindíveis para a linha de produção da montadora. Assim, permitiram-lhes que não integrassem os batalhões fascistas – aqueles que tinham trabalho fixo em grandes empresas iam para a reserva. O Torino Fiat nasceu em novembro de 1943 a partir de um amistoso contra o Astragalus em Ivea, vencido por 7 a 1. A equipe detentora do scudetto não usava ornamento que representasse o título do ano anterior. No peito, os turineses levavam o símbolo da Fiat, sempre ligada à Juventus.

Gianni e Giovanni Agnelli, patriarca da família: ambos foram presidentes da Fiat; o avô era o chefe da indústria durante a guerra (Wikipedia)

25 de julho de 1943

O dia, quatro meses antes da estreia do Torino Fiat, foi crucial para a Itália. Era um domingo quando, ainda pela manhã, Dino Grandi entregou um documento com 19 assinaturas para a deposição de Mussolini. O Duce acreditava que o Grande Conselho era somente um órgão consultivo, e não que membros do próprio governo estavam contra ele. Ao visitar o palácio do Rei Vittorio Emanuele III, o líder fascista foi preso numa emboscada e isolado em uma ilha.

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As estruturas do poder italiano ficaram estremecidas com o ditador deposto. Luigi Ridolfi Vay da Verrazzano, fundador da Fiorentina, idealizador do Centro de Coverciano e presidente da Federcalcio, renunciou ao cargo. Com uma guerra para se preocupar, as instituições tentavam procurar a melhor solução para o jogo. Especialistas, à época, acreditavam que o período resultaria somente em amistosos.

O governo do ministro Pietro Badoglio quis tirar todos os fascistas das posições de liderança. O ex-árbitro Giovanni Mauro ganhou a cadeira da Federação por não ter se comprometido com o regime e chamou Fulvio Bernardini e Renato Dall’Ara para auxiliá-lo como conselheiros. Ele procurou restabelecer liberdades que a Carta de Viareggio havia suprimido, como os nomes italianizados dos clubes e a reabilitação de jogadores e treinadores perseguidos por opiniões políticas divergentes às do regime ou por não terem nacionalidade italiano. O problema é que ele foi retirado do cargo ainda em setembro.

A federação foi transferida para Veneza após o armistício assinado pelo Reino da Itália e os Aliados, também em setembro, e da concomitante organização da República Social da Itália. Libertado da cadeia pelos nazistas, Mussolini fugiu para a Lombardia e fundou um estado-fantoche da Alemanha (também conhecido como República de Salò), que ficava distribuído das regiões do Lácio e dos Abruzos até o extremo norte do país. No novo governo fascista, Ettore Rossi foi incumbido de cuidar do futebol.

O antigo comissário do Comitê Olímpico Italiano estabeleceu torneios regionais ao invés de um grande campeonato para o ano posterior. O Campeonato da Alta Itália, de início em janeiro, seria dividido em zonas: Piemonte-Ligúria, Lombardia, Vêneto, Veneza-Júlia, Emília e Toscana. Havia, também, um grupo do Lácio, mas a região foi tomada pelos Aliados em junho de 1944 e nem Lazio nem Roma foram considerados para a fase final. A disputa, no fim das contas, acabou sendo válida para o chamado Campeonato Romano da Guerra.

Por causa do caos no país, todos os contratos vigentes entre jogadores e clubes foram postos em suspenso. Para a nova competição, o regulamento liberava os atletas para jogarem onde quisessem – ou melhor, pudessem. Bastava que seu clube de origem autorizasse e fosse firmado um acordo para que o jogador retornasse à agremiação após o final da guerra. Para facilitar, muitos jogadores optavam por atuar na região em que serviam às forças armadas. Este fator foi o que colocou Giuseppe Meazza no Varese ou o bomber laziale Silvio Piola e o goleiro Luigi Griffanti, da Fiorentina, no Torino.

O time do Spezia de 1944, marcado pelo notório belicismo da época (Unione Veterani dello Sport)

A fábrica perde para os bombeiros

O Toro encontrou um técnico compromissado e ousado em Erno Erbstein. O húngaro fora campeão italiano da terceira e da segunda divisão por Cagliari e Lucchese, respectivamente, no início daquela década, mas deixou o trabalho no meio do caminho, em 1939, quando as perseguições do regime começaram a se intensificar. O compatriota Ignac Molnár saiu sem deixar saudade, assim como Andrea Mattea. O presidente Ferruccio Novo, enquanto isso, continuou investindo no clube e conseguiu as contratações de Valentino Mazzola e Ezio Loik, promessas muito bem avaliadas do Venezia.

O time granata tentou repetir a fórmula: abordou outro húngaro, András Kuttik, bicampeão da terceirona por Pro Patria e Perugia, para colocar o clube nos eixos. O treinador saiu em dezembro de 1940 para treinar a Lucchese, assumiu o Bari para a temporada 1941-42 e, no meio da disputa da segunda divisão, foi chamado para substituir Tony Cargnelli para assumir o comando do Torino vice-campeão. A partir de dezembro de 1942, quando se demitiu do Toro, as informações sobre o húngaro cessaram por um tempo – a hipótese mais plausível é a de que ele seguiu o caminho de Erbstein e deixou a península. Ele voltou ao Bari quatro anos depois e foi notícia nos principais jornais ao rumar para o futebol mexicano nos anos 1950.

De qualquer forma, mesmo com tantas mudanças nos anos anteriores, o Torino começava o Campeonato da Alta Itália como franco favorito. Afinal, a equipe conseguiu a dobradinha nacional no ano anterior sob o comando do ídolo Antonio Janni – bateu o Venezia na Coppa Italia e ganhou o scudetto na última rodada, deixando o Livorno com o vice. Enquanto o Torino ganhava o nome da Fiat, a outra equipe da cidade adotou o nome Juventus Cisitalia como método de promoção do presidente do clube e fundador da empresa automobilística, Piero Dusio. Rivalidade cruzada.

A base do Torino Fiat é a que está na foto que abre o texto. Em pé, estão o técnico Janni, Cadario, Piacentini, Griffanti, Mazzola, Ferraris II e Gallea; agachados, temos Cassano, Ossola, Ellena, Piola e Gabetto. Esse time não teve tantas dificuldades para se tornar o campeão piemontês no grupo com equipes da primeira à terceira divisão. O quadrangular interregional, porém, foi tenso. Diferentemente dos jogos maiúsculos na campanha do título de 1943, o Toro não bateu a Juve na semifinal, mas conseguiu avançar à decisão com um ponto a mais do que a rival. O triangular derradeiro foi formado pelos granata, acompanhados de Venezia e Spezia.

O último era a grande zebra e havia contado com alguma sorte. Primeiro, La Spezia fica na Ligúria, mas o grupo lígure-piemontês já tinha 10 equipes e, pela proximidade geográfica a algumas regiões emilianas, os bianconeri foram agrupados em outra chave. Na medida em que os Aliados avançavam rumo à liberação do norte italiano, equipes que estavam no caminho do Spezia foram abdicando do campeonato – casos de Montecatini e Lucchese, da Toscana, e Bologna, da Emília-Romanha. As estradas que atendiam aquelas localidades estavam bastante danificadas por causa dos bombardeios.

O Spezia não foi apenas beneficiado pelas consequências de logística que a guerra impôs ao futebol. Por outro lado, a equipe também estava desfalcada de profissionais: Riccardo Carapellese, Eusebio Castigliano e Alfonso Borra, importantes para o sexto lugar na Serie B anterior, estavam no sul e não puderam retornar. Ademais, o presidente Coriolano Perioli fora deportado para um campo de concentração na Alemanha. O time, assim, foi incorporado pela equipe do Corpo de Bombeiros, tal qual os piemonteses foram integrados às fabricantes de automóveis.

Foi assim que as equipes chegaram ao triangular. Os favoritos pediram adiamento do primeiro jogo da final na Arena Civica (hoje Gianni Brera). O Torino Fiat viajou até Trieste para disputar um torneio regional dois dias antes do encontro com o Spezia e a viagem de volta à Milão foi desgastante. A Federação recusou o pedido, apesar de os jogadores aparecem no estádio apenas duas horas antes do início da partida. No confronto, Mazzola foi anulado por Mario Tommaseo e Sergio Angelini deu números finais ao jogo ainda no primeiro tempo. Nem mesmo a goleada em cima do Venezia inverteu o resultado: por causa do empate entre spezzini e venezianos, o Toro ficou na segunda colocação no campeonato que só seria reconhecido com título honorário para o Spezia em 2002.

Em Belli e dannati, Marco Cassardo conta a fábula de um famoso jogo da temporada seguinte, da campanha no campeonato oficial de 1945-46, o primeiro do pós-guerra. O Torino visitaria a Roma na capital. Um torcedor chamado Mario foi zoado pelos fãs adversários. Ouviu deles que o “dia seria cinza”. O jovem optou, então, por assistir a partida com esses rapazes. O Toro fez 6 a 0 em 19 minutos – a partida terminou 7 a 0. Os romanistas estavam estarrecidos. Falavam baixinho: “incrível, incrível…”. No que Mario respondeu: “somente mais uma vitória de rotina; mais um dia de trabalho”. Ainda que não estivesse mais ligado à Fiat, o Torino passou o carro – fato recorrente nas temporadas subsequentes da grande equipe que marcaria época na história.

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1 Comentário

  • Sou torcedor do Torino, essa história é sensacional, inclusive esta foto com o escudo da Fiat tenho em um quadro na minha sala…

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