Cartolas

Artemio Franchi montou Fiorentina histórica e ocupou alto escalão da Uefa e da Fifa

Se você acompanha futebol italiano há algum tempo, provavelmente deve ter percebido que os estádios de Fiorentina e Siena têm o mesmo nome: Artemio Franchi. Trata-se de uma homenagem a um notável dirigente que criou raízes nas duas cidades, localizadas na Toscana. Com passagens marcantes por Fiorentina, Federação Italiana de Futebol, Uefa e Fifa, Franchi revolucionou o futebol nacional e internacional no século passado, sendo considerado um dos grandes cartolas oriundos da Itália.

Franchi veio ao mundo em Florença, no dia 8 de janeiro de 1922. Seus pais, nascidos em Siena, haviam se mudado dois meses antes para a capital da Toscana por motivos de trabalho: o pai do garoto, Olinto, era chefe de um dos restaurantes mais famosos de Florença. Durante toda sua vida, Artemio brincava ao dizer que não sabia se era senês por jus sanguini ou florentino por jus soli – respectivamente, princípios jurídicos que definem a naturalidade de uma pessoa por vínculos familiares ou de seu local de nascimento.

Graças a seu progenitor, Artemio era fã do Palio di Siena, tradicional corrida de cavalos que ocorre no verão europeu. O jovem começou a se atrair pelo futebol quando assistia aos jogos da Fiorentina dos anos 1940, que tinha como destaques Luigi Griffanti, Giuseppe Bigogno, Romeo Menti e Ferruccio Valcareggi. Após se formar no ensino médio, Franchi ingressou na faculdade de Economia e Comércio. Lá, tornou-se um dos alunos favoritos do professor Vedovato, especialista em direito internacional.

Em 1943, o jovem foi chamado para servir na Segunda Guerra Mundial e acabou enviado ao sul da Itália. Em outubro do ano seguinte, voltou à Florença, retomou os estudos e arranjou um emprego em uma empresa de caminhões. Apaixonado por futebol, leu num jornal que um curso de árbitros seria realizado na cidade. Franchi se inscreveu e se formou na primeira turma. Em 1948, ele também alcançou a graduação, com nota máxima, em direito internacional. No ano seguinte, juntou alianças com Alda Pianigiani, esposa que lhe deu dois filhos, Giovanna e Francesco.

Antes de existir rivalidade: Enrico Befani, então presidente da Fiorentina, ri com os irmãos Umberto e Gianni Agnelli, donos da Juve, e Franchi (Torrini)

Fiorentina e quarta divisão

Artemio Franchi chegou a apitar alguns jogos da terceira divisão italiana, mas seu futuro no futebol lhe reservava outra função. Em julho de 1949, o toscano deixou a camisa preta, logo após se formar em Economia e Comércio, e entrou para a diretoria da Fiorentina a pedido do então presidente violeta, Carlo Antonini. Apesar da pouca experiência – tinha apenas 27 anos quando fora contratado –, Franchi fez um excelente trabalho de captação de reforços para a equipe.

Àquela época, os presidentes que assumiam o clube toscano dificilmente ficavam mais de uma temporada à frente da cúpula violeta. Porém, as coisas mudaram na Viola quando Antonini sucedeu Ardelio Allori, em 1948, e contratou Franchi, no ano seguinte, para ocupar o cargo de secretário da agremiação. O jovem alinhou suas habilidades econômicas com a consultoria de Luigi Ferrero, então treinador da Fiorentina, para contratar jogadores que seriam essenciais na conquista do seu primeiro scudetto, em 1955-56. A dupla assegurou nomes como Ardico Magnini, Sergio Cervato, Giuseppe Chiappella e Francesco Rosetta.

Sua trajetória na Fiorentina terminou em 1951, pouco depois de Antonini passar o bastão da presidência para Enrico Befani. Com a saída da Viola, Franchi aceitou o convite de Dante Berretti, à época um dirigente violeta, para fazer parte do conselho executivo da Lega Interregionale da quarta divisão, da qual se tornara secretário e, posteriormente, presidente.

Em seu discurso de apresentação, mandou um aviso sem rodeios aos presidentes dos clubes: “Não permitirei que vocês façam loucuras no mercado de transferências. De vocês eu exijo clareza nos balanços [financeiros] e, sobretudo, a máxima honestidade”. Ele levou essa linha de pensamento para o resto de sua carreira e se manteve ligado às pequenas agremiações, mesmo depois de haver deixado o posto de presidente da Lega Interregionale.

O cartola se tornou figura influente e com acesso até a papas, como João Paulo II (Fondazione Artemio Franchi)

Empreendedorismo e FIGC

No decorrer dos anos 1950, Artemio abraçou uma oportunidade que entrou em seu caminho quase que por brincadeira: distribuição de produtos de combustível. Em 1954, juntou os outros parceiros e fundou a companhia de petróleo Angelo Bruzzi, assumindo as funções de diretor administrativo.

Quatro anos depois, o toscano foi um dos fundadores do Centro Técnico de Coverciano, em Florença. Arquitetado por Luigi Ridolfi Vay da Verrazzano, cujo trabalho era considerado autêntico por Franchi, a instituição se tornou uma universidade de futebol na Itália. Nos dias atuais, todas as pessoas que visam se tornar treinadores de futebol profissional precisam passar por cursos em Coverciano a fim de obter as licenças da Uefa.

No fim da década de 1950, a Itália atravessou um período turbulento. Com a ausência da seleção italiana da Copa do Mundo de 1958, instaurou-se uma crise técnica e gerencial no futebol. Era necessário uma revolução. Com isso, houve a renúncia de Ottorino Barassi, então presidente da FIGC, a Federação Italiana de Futebol. Bruno Zauli, nomeado pelo advogado Giulio Onesti, assumiu o posto máximo do órgão que rege o futebol italiano.

Visto como um homem com ideias modernas e inovadoras, Franchi assumiu a vice-presidência da FIGC, conciliando o trabalho junto com o cargo de presidente da quarta divisão, que se transformara em Liga Semiprofissional. Com essa mudança, os clubes que disputavam a Serie C também foram incluídos na gestão da nova Liga Semiprofissional, presidida por Franchi.

Na Uefa, Franchi participava dos sorteios feitos pela entidade (Fondazione Artemio Franchi)

Virada de chave na carreira

Suas prestações como cartola em solo italiano despertaram o interesse da Uefa. Em 1962, aos 40 anos, ingressou na comissão de propaganda da entidade que organiza o futebol europeu. Também foi designado como chefe da delegação da seleção italiana para a Copa do Mundo daquele ano, realizada no Chile.

A Squadra Azzurra não fez um bom Mundial: reclamou de um possível favorecimento aos chilenos, que venceram os italianos por 2 a 0 na segunda rodada do Grupo 2, e não passou da primeira fase. Porém, o trabalho de Franchi recebeu boa avaliação, e quatro anos depois ele mais uma vez fora chamado para chefiar a delegação da Nazionale na Copa do Mundo da Inglaterra.

A Itália novamente fez uma campanha deplorável no Mundial de 1966, caindo novamente na fase de grupos, desta vez para o selecionado semiprofissional da Coreia do Norte. O mau resultado da Nazionale na Grã-Bretanha aumentou a crise na FIGC e levou à demissão de Giuseppe Pasquale, que foi sucedido por Artemio Franchi.

Como presidente do órgão máximo do futebol italiano, Franchi efetuou uma renovação de práticas em vários setores da entidade. A medida mais polêmica foi a de fechar as fronteiras para a chegada de jogadores estrangeiros. Assim, nenhum atleta de outro país poderia ser comprado pelos clubes do Belpaese. De fato, era uma atitude drástica, mas Franchi colheu os frutos de sua ousadia.

Após o fracasso na Copa da Inglaterra, o técnico Ferruccio Valcareggi assumiu o comando técnico da seleção italiana. Curiosamente, Valcareggi era um dos jogadores que Artemio admirara nos seus tempos de jovem torcedor da Fiorentina. Em 1968, a Nazionale conquistou a Eurocopa, vencendo a Iugoslávia na decisão.

Dois anos depois, o esquadrão italiano, que tinha como destaques Dino Zoff, Giacinto Facchetti, Sandro Mazzola, Gianni Rivera e Gigi Riva, chegou à final da Copa do Mundo do México. Os italianos caíram aos pés da ótima seleção brasileira de Pelé, Tostão, Rivellino, Jairzinho e outras estrelas. Contudo, o saldo, após o título na Euro e um vice-campeonato no Mundial, era extremamente positivo.

Como manda chuva da Uefa, Franchi assiste a final da Copa de 1982 ao lado do presidente Pertini (Fondazione Artemio Franchi)

Presidente da Uefa e vice da Fifa

A revitalização do futebol italiano, no final dos anos 1960 e no início da década seguinte, passou muito pelas ideias de Artemio Franchi. Assim, o nome do toscano chegou ao mais alto escalão do futebol internacional. Em 1973, foi eleito para ocupar o cargo de presidente da Uefa no Congresso de Roma. Ele assumiu a cadeira deixada pelo suíço Gustav Wiederkehr, que recém havia falecido. Automaticamente, Artemio se tornou vice-presidente da Fifa – anteriormente, ele tinha trabalhado no Comitê Técnico da entidade.

O compromisso de Franchi com a organização que comanda o futebol europeu o impossibilitou de continuar à frente da FIGC, pelo acúmulo de trabalho. Com isso, a partir de 1976, a tarefa de dar prosseguimento ao ótimo trabalho realizado pelo toscano na Federação Italiana ficou sob a responsabilidade de Franco Carraro. De todo modo, Artemio seguia de longe o que aconteceria no futebol da Bota, e retornaria à “cabeça” da FIGC depois que Carraro passou ao Coni, o Comitê Olímpico Italiano. Sua segunda gestão durou de 1978 a 1980.

Como presidente da Uefa, Franchi cuidou de funções na organização da Copa dos Clubes Campeões Europeus (atual Liga dos Campeões), na arbitragem e em demandas disciplinares. Empenhou-se em modernizar as competições da Uefa e, sobretudo, argumentar a favor da duplicação do número de seleções participantes na fase final da Eurocopa de 1980. Ele também transformou a extinta Copa das Feiras em Copa Uefa (atual Liga Europa).

Em artigo no site da Uefa, Franchi é descrito como um homem que se importava ao máximo em coibir a violência em torno do futebol. “Diplomata talentoso e homem de vasta cultura e enorme determinação, Franchi mostrou-se incansável na luta para reduzir a violência neste esporte, assim como na atenção dedicada às necessidades dos jovens jogadores, pois tinha a noção que o futuro do futebol dependia, em grande parte, da qualidade das gerações vindouras de atletas”, diz o texto.

Artemio foi aliado de João Havelange, presidente da Fifa (Arquivo/Uefa)

Maçonaria, Havelange, controvérsias e morte

Há rumores de que Artemio Franchi seria frequentador da loja maçônica P2, que era vista como “um estado dentro do estado” e chegou a promover atos terroristas – ampliando as teorias de que os maçons pretendem dominar o mundo. O nome de Franchi, inclusive, apareceu numa extensa lista, encontrada em março de 1981, numa loja de joias perto de Arezzo, junto com várias outras personalidades – incluindo Silvio Berlusconi, ex-presidente do Milan e ex-primeiro-ministro italiano. O relatório da comissão parlamentar de inquérito avaliou a lista como “autêntica” e “confiável”.

Maçonaria à parte, Franchi acompanhou a jornada triunfante da Itália na Copa do Mundo de 1982, na Espanha. Na final, assistiu à vitória da Nazionale sobre a Alemanha ao lado do presidente da República, Sandro Pertini. Prestigiado por muitas pessoas, ele seria o próximo presidente da Fifa. O então manda chuva da entidade, o brasileiro João Havelange, inclusive, já havia declarado que seu sucessor seria o toscano.

Contudo, ser o herdeiro do ex-cartola brasileiro – que, anos depois, se veria envolvido em dezenas de inquéritos policiais – suscitava diversas dúvidas sobre a figura do italiano. Em alguns momentos, Franchi foi acusado de participar dos costumeiros esquemas de corrupção que tomaram conta das entidades que organizam o futebol.

Primeiro, em 1975, foi absolvido pelo comitê disciplinar da Uefa depois que o jornalista inglês Brian Glanville o denunciou por, supostamente, subornar árbitros – em parceria com o diretor esportivo Italo Allodi e o empresário húngaro Dezso Solti – para favorecer times e a seleção italiana. Em 2016, Joseph Blatter, ex-presidente da Fifa, declarou, sem apresentar provas, que Artemio manipulava sorteios dos torneios de clubes da Uefa ao utilizar bolinhas quentes e frias para diferenciar os times nos potes.

Entretanto, Franchi nem pode se defender da segunda acusação. Um trágico acidente de carro ceifou sua vida, no dia 12 de agosto de 1983, uma sexta-feira. Ele tinha 61 anos. Guiando seu Fiat Argenta a caminho de Siena, onde tomaria providências para a participação de um jóquei no Palio dell’Assunta, seu carro derrapou em uma curva no asfalto molhado e colidiu com um caminhão.

“Ele foi grande como homem de esporte e como político. Conhecia os problemas de cada federação como nenhum outro e todos o procuravam para conselhos, encorajamento, verificação”, lamentou Havelange.

O cartola foi enterrado no cemitério de Soffiano, localizado nos arredores de Florença. Após sua morte, o histórico dirigente recebeu inúmeras homenagens. De imediato, foi inaugurada uma fundação com seu nome, sediada no CT de Coverciano. Além disso, foi realizado em 1985 e 1993 o Troféu Artemio Franchi, entre os campeões da Eurocopa e da Copa América. Para muitos, o torneio amistoso foi o precursor da Copa das Confederações.

As homenagens continuaram. Já em 1991, o estádio municipal de Florença, onde joga a Fiorentina, foi rebatizado como Artemio Franchi. O principal palco futebolístico de Siena também ganhou o seu nome. Em 2011, Franchi entrou para o Hall da Fama do futebol italiano.

Homenagens justas para um dos maiores dirigentes italianos do pós-Segunda Guerra Mundial – se não o maior. Polêmicas e acusações arquivadas à parte, o toscano sem dúvidas melhorou e modernizou o futebol, nas esferas nacional e internacional, em seus 35 anos de carreira. O legado deixado por Artemio Franchi é imenso e serve de exemplo para muitos cartolas.

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2 comentários

  • Faltou citar que a primeira homenagem após sua morte foi um torneio com seu nome, entre o campeão da Eurocopa e da Copa América, a Copa Artemio Franchi, em 85,o que para muitos é o embrião da Copa das Confederações, e que pode voltar a ser disputada agora.

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