Esquadrões

Campeã com elenco rachado, Lazio de 1974 foi símbolo dos anos de chumbo da Itália

Times desacreditados conseguiram se tornar vitoriosos várias vezes na história do futebol. Não é segredo para ninguém que esse esporte não é uma ciência exata. Na década de 1970, a Itália vivenciou um episódio bastante peculiar nesse sentido: um grupo de atletas totalmente desunidos conseguiu superar as desavenças para vencer suas partidas na base da raça e da violência, até chegar ao scudetto de 1974. Naquele ano, a Lazio desafiou qualquer previsão e conquistou a Itália com a melhor defesa do campeonato: foram apenas 23 gols sofridos em 30 partidas.

Pouco antes de ostentar os louros da vitória, a Lazio se encontrava enrascada. Na entrada da década, a situação na capital italiana não era nada favorável aos biancocelestes: enquanto a Roma celebrava sua segunda conquista da Coppa Italia, os aquilotti disputavam pela quarta vez a Serie B. Após a tenebrosa campanha de 1968, na qual terminou a dois pontos da zona de rebaixamento à terceira divisão, a Lazio se reestruturou e conseguiu sair do purgatório em 1970, sob o comando do argentino Juan Carlos Lorenzo.

Com as chegadas de Giancarlo Oddi, Giuseppe Papadopulo, Giuseppe Wilson e – principalmente – Giorgio Chinaglia, a esquadra da capital dava sinais de que seria capaz de montar um time competitivo e se firmar na Serie A do futebol italiano. Porém, não passava de uma impressão. A Lazio não durou mais do que duas temporadas na elite e amargou o terceiro rebaixamento de sua história, em 1971.

A queda provocou uma mudança no comando da equipe. Sob a batuta de Tommaso Maestrelli, os biancocelestes tiveram um ótimo desempenho na divisão de acesso. O treinador toscano conseguiu garantir a vaga na elite com três rodadas de antecedência, embora tenha deixado o título escapar na última partida, após empate sem gols contra o Bari.

Mesmo assim, o maestro se tornou uma figura prestigiada no clube e lá permaneceu por outras três temporadas. Tommaso foi um dos personagens mais importantes da década de 1970 para o clube romano, sendo protagonista da histórica campanha na Serie A de 1973-74 e também do desastre na Copa Uefa daquele mesmo ano.

Chinaglia, Facco, Pulici, Oddi e Wilson (em pé); Martini, Nanni, Garlaschelli, Manservisi, Frustalupi e Re Cecconi (agachados) (Ansa)

Um ano antes da conquista do scudetto, a Lazio já havia batido na trave. Graças ao faro de gol de Giorgio Chinaglia e às boas defesas de Felice Pulici, os biancocelesti foram uma grata surpresa na temporada de 1972-73. Os romanos lutaram pelo título até a última rodada, tendo Juventus e Milan como rivais. A taça acabou ficando nas mãos dos alvinegros.

A terceira colocação obtida pelos laziali, com 71,6% de aproveitamento, representa até hoje a melhor campanha de um time recém-promovido na história do Campeonato Italiano. Foi o primeiro passo para a ascensão do clube capitolino, que em julho de 1973 se preparava para disputar a Copa Uefa.

A disputa na competição continental não foi frutuosa para a Lazio – falaremos disso mais adiante. Na Serie A, porém, tudo corria de vento em popa. Maestrelli aplicava sua interpretação do totaalvoetbal com muito sucesso e até Rinus Michels, seu precursor, quis conferir as estratégias do pupilo em treinamentos. Tommaso, contudo, não permitiu. Com as magias do técnico toscano, a equipe celeste galgou posições e fez uma campanha melhor do que a do ano anterior. Além disso, bateu a Roma nos clássicos de turno e returno, ambas as vezes por 2 a 1 e com gols decisivos de Chinaglia. Sua comemoração provocativa no dérbi de março de 1974 entrou para a história.

Na penúltima rodada, a Lazio entrava em campo dependendo só de si mesma para ser campeã. O adversário seria o Foggia, que corria sério risco de rebaixamento. Para tentar evitá-lo, a diretoria foggiana tentou até subornar o árbitro da rodada final, ante o Milan, o que rendeu uma punição posterior de seis pontos por parte da federação. A expectativa no duelo contra os rossoneri era a mais alta possível: logo na quinta feira, três dias antes da partida, todos os ingressos já estavam vendidos. No dia do duelo, as bilheterias do Olímpico sequer abriram.

Estiveram presentes 78.886 espectadores, que compuseram o maior público da história do estádio até os dias de hoje. O título da Lazio foi sacramentado no dia 12 de maio de 1974, com vitória pela contagem mínima e uma enorme festa nas arquibancadas. O gol, claro, foi de Chinaglia, artilheiro da competição com 24 tentos. Uma parte de Roma estava em festa: era apenas o segundo scudetto da cidade (o outro foi da arquirrival), e o primeiro no pós-guerra.

Equipe da Lazio entra em campo junto com o Foggia, adversário no dia da conquista do título (Rivista Contrasti)

Jogos, pistolas e dois vestiários fumegantes

Aquele 12 de maio é lembrado pelos torcedores da Lazio até hoje. Se esse fosse um time comum, a história terminaria de ser contada ali. Mas, não. O dia em que os celestes levantaram a taça como campeões nacionais pela primeira vez marcou a celebração do improvável.

>>> Conheça os personagens e a campanha do time campeão em 1974

Não apenas porque os laciais corriam por fora na disputa, mas porque um elenco de bad boys que se detestavam foi capaz de vencer um scudetto que, no início da temporada, ninguém enxergava como plausível. Afinal, o time de Maestrelli tinha quase tudo para dar errado. O elenco contava com bons talentos individuais, mas muitos de seus jogadores não se davam nada bem fora de campo. O grupo era um barril de pólvora pronto para explodir e costumava estourar nos centro de treinamentos de Tor di Quinto, proporcionando cenas dignas de faroeste.

Para a sorte da torcida celeste, as incontornáveis diferenças entre os jogadores ficavam restritas aos vestiários. Sim, no plural. Havia duas facções no elenco celeste e elas se detestavam a ponto de a diretoria adaptar as instalações do clube. O CT era dividido em territórios e os integrantes de cada tribo não podiam frequentar as áreas dos “inimigos íntimos” sem autorização prévia.

Um dos clãs era liderado por Chinaglia e Wilson, e contava ainda com Pulici, Oddi, Sergio Petrelli, Luigi Polentes e Renzo Garlaschelli. O grupo rival tinha Luigi Martini e Luciano Re Cecconi, além do apoio silencioso de Mario Frustalupi. Por sua vez, Franco Nanni e Vincenzo D’Amico não se posicionavam e flutuavam entre os times.

As razões para essa divisão, contudo, nunca foram muito claras. Na época, tentaram atribui-la à rivalidade política entre aqueles de direita e os de esquerda, mas a verdade é que praticamente todos os jogadores daquele elenco eram “destros”. Motivações relacionadas a uma rivalidade geográfica entre nortistas e sulistas também não eram plausíveis. O mais provável é que a antipatia entre os líderes dos clãs tenha causado a segregação. Depois, por afinidade pessoal, os outros jogadores passaram a orbitar nos grupos que lhe apeteciam.

Re Cecconi, contratado em 1972, já chegou desaprovado por Wilson e Chinaglia. Os dois eram amigos desde antes dos tempos de Lazio: jogaram no Internapoli e se transferiram para a capital na mesma janela de mercado, no verão de 1969. O “anjo loiro” não contava com o apreço da dupla porque supria a saída de Giuseppe Massa, um dos melhores amigos do líbero: o atacante também atuara na agremiação de Nápoles. Frustalupi foi incluído no negócio que levou Massa à Inter e teve de lidar com uma herança incômoda e uma hostilidade desproporcional.

Maestrelli puxa a fila de jogadores num treino celeste: o técnico era respeitado pelos dois clãs (Arquivo/SS Lazio)

Foi nesse contexto que o carismático Re Cecconi acabou se tornando o líder do grupo de jogadores que não tinham muito tempo de casa. O loiro era um “bruxinho” do técnico Maestrelli, que lhe fizera crescer no futebol. Em 1969, Luciano fora contratado pelo Foggia a pedido de Tommaso e evoluiu como atleta graças às suas orientações. Por ser próximo ao comandante, o meia era uma espécie de paladino daqueles atletas vistos pelos senadores como indignos de vestir a camisa celeste.

Como o elenco era rachado, os treinos tinham um mesmo roteiro: Maestrelli realizava as atividades com os mesmos times jogando entre si. A pressão dos senadores era tamanha que o treinador só encerrava os coletivos se o bando de Chinaglia estivesse vencendo ou, no mínimo, o placar registrasse empate – e contanto que Long John tivesse marcado pelo menos uma vez, é claro. As caneleiras ainda eram artigo opcional na época e se dizia que elas nem seriam mesmo necessárias aos domingos, já que a atividade da quinta-feira precedente faria a rodada do fim de semana parecer um recreativo. A proteção, inclusive, era utilizada pelos jogadores em Tor di Quinto.

Embora os limites territoriais estivessem bem definidos e cada jogador estivesse ciente do que era ou não permitido, o respeito às regras combinadas nem sempre era seguido à risca. Dessa forma, aconteciam algumas brigas homéricas por motivos, no mínimo, fúteis. Certa vez, Martini estava secando seus esparsos cabelos após um banho quando houve uma queda de tensão elétrica e seu secador pifou. O lateral não pensou duas vezes: foi até o vestiário dos rivais e, sem pedir licença, pegou um aparelho novo. Mal tornara a seu posto e a repetir a secagem da careca quando Pulici apareceu, arrancando o eletrodoméstico da tomada e gritando muito. Logo o goleiro, que era considerado “moderado” naquela equipe de extremos.

O nervosismo aumentou, os dois partiram para o contato físico e garrafas começaram a voar de um lado a outro, numa luta que envolveu os dois clãs. Maestrelli precisou aparecer para intervir e acalmar os ânimos. Para selar a paz, ordenou que os brigões trocassem um aperto de mãos na frente de todo o elenco. Era Tommaso quem garantia que a balbúrdia e o ódio nos bastidores não interferisse no desempenho dos jogadores dentro de campo. Pelo contrário, o técnico toscano por vezes utilizava as desavenças para estimular os seus comandados.

Além de ser um hábil estrategista e entender muito de tática, o treinador era um gestor de grupo impecável e se dedicava a conhecer as necessidades de cada um dos atletas. Não era fácil. O elenco proporcionava arestas a aparar e ainda tinha jogadores com personalidades, trajetórias e objetivos de vida muito diferentes entre si. Havia carolas, estudantes de direito, amantes de paraquedismo e aqueles que, como Chinaglia, não dispensavam noitadas. Nelas, Long John passeava de Jaguar, pulando de discoteca em discoteca e exibindo correntes de ouro, casacos de pele de rena, calças boca de sino e sapatos finíssimos.

Por tentar entender as necessidades de cada atleta e por seu estilo paizão, o técnico era adorado pelos dois clãs. Maestrelli era mesmo uma espécie de figura paterna para Pulici, Re Cecconi e Chingalia – que costumava comemorar gols com o comandante. Mas a adoração não se sustentava só por isso. Os atletas tinham plena confiança no discurso do toscano e sabiam que ele só prometia o que podia entregar.

Chinaglia aponta e provoca a torcida da Roma: comemoração entrou para a história da Lazio (Marcello Geppetti)

O maestro ganhou créditos antes mesmo da temporada do histórico scudetto. Quando chegou à Cidade Eterna, em 1971, ele conseguiu convencer os jogadores mais importantes da equipe a ficarem para a disputa da Serie B ao prometer que o retorno à elite seria imediato.

Foi Maestrelli que confiou a braçadeira de capitão a Pino Wilson e que patrocinou a compra de Martini, transformado de meia em lateral-esquerdo, posição em que a Lazio não tinha em quem apostar. Por fim, Tommaso permitiu que Chinaglia tivesse liberdade no ataque. Com 21 gols de Long John – convocado à seleção mesmo na segundona –, a Lazio conseguiu a promoção. Alcançar os resultados prometidos e conquistar os líderes de um dos clãs foi fundamental para que o grupo ficasse coeso em torno de um ideal e esquecesse das rusgas ao pisar no gramado.

Para Maestrelli, o jogador ideal deveria ter “o ímpeto de Wilson, a agressividade de Martini, o fôlego de Re Cecconi, a técnica de Frustalupi e, acima de tudo, o desejo de vencer de Chinaglia”. Às vezes, porém, essas qualidades não bastavam e o time da Lazio sucumbia a seu pavio curto. Foi o que aconteceu na Copa Uefa de 1973-74. Depois de eliminar o Sion na primeira fase da competição, os biancocelestes tinham pela frente o Ipswich, time emergente do futebol inglês, treinado por um jovem e inovador Bobby Robson. Os Blues haviam eliminado o Real Madrid.

A partida de ida terminou com um sonoro 4 a 0 para o Ipswich. Foi um chocolate protagonizado pelo centroavante inglês Trevor Whymark, que marcou os quatro gols dos Tractor Boys. O cenário para o jogo de volta era de um Olímpico com aproximadamente 40 mil pessoas, a princípio desacreditadas na virada. Garlaschelli marcou o primeiro gol celeste com apenas um minuto e o segundo, assinado por Chinaglia, aconteceu aos 26. O público começou a sonhar com uma façanha.

No segundo tempo, porém, o árbitro Leo van der Kroft transformou a partida em um salseiro e acabou com qualquer esperança laziale. Em um intervalo de poucos minutos, o holandês não marcou um toque de mão do zagueiro Allan Hunter dentro da área inglesa, e ainda deu de presente um pênalti para os visitantes. Os jogadores italianos apelaram para a violência e foram para cima do juiz – que, segundo relatos de Martini, estava embriagado. A torcida foi na onda dos atletas e começou a atirar objetos no campo, provocando um verdadeiro caos no estádio Olímpico.

As tentativas de intimidação não surtiram efeito e Van der Kroft manteve sua decisão. Colin Viljoen converteu a cobrança, mas o gol do Ipswich era só um detalhe àquela altura da partida. Depois da marcação da penalidade, os aquilotti ficaram mais preocupados em descontar toda a sua frustração com entradas fortes nos ingleses. Colin Harper, Brian Hamilton e David Best deixaram o gramado com feridas e hematomas. A partida terminou com o placar de 4 a 2 para os italianos, que foram eliminados pelo placar agregado.

Garlaschelli, coadjuvante daquele elenco celeste, era um dos que deixava tudo em campo (Arquivo/SS Lazio)

O clima hostil permaneceu após o apito final. Os laziali tentaram invadir o vestiário dos ingleses e também o da arbitragem. Fora do estádio, um grupo significativo de torcedores confrontou a polícia e chegou a apedrejar uma ambulância. Eles acreditavam que o árbitro holandês estava escondido no veículo.

O tumulto rendeu à Lazio uma multa e a punição de um ano sem disputar competições da Uefa. A propósito, era a segunda briga daquele time contra ingleses: em 1970, parte do elenco brigara com jogadores do Arsenal num restaurante de Londres, após um desentendimento. Por sua vez, o Ipswich avançou até as quartas de final da competição, mas foi eliminado pelo Lokomotiv Leipzig nos pênaltis.

O quebra-quebra naquela noite de novembro de 1974, contudo, não fez com que a Lazio aplacasse os ânimos. Nem seria possível, já que a desunião dos seus jogadores e tamanha agressividade eram sintomas de uma cisão social mais grave. A Itália vivia seus anos de chumbo.

Após ser destroçada pela II Guerra Mundial, que aconteceu entre 1939 e 1945, a Itália tentou se reconstruir nos anos seguintes com as verbas proporcionadas pelo Plano Marshall. Em plena Guerra Fria, os Estados Unidos visavam – entre outros objetivos – barrar o avanço do comunismo na Europa e ajudaram financeiramente boa parte dos países europeus. A república italiana recuperou setores como indústria, agropecuária e construção civil. Com isso, cresceu e viveu um boom econômico no início dos anos 1960. No final desta última década, se percebeu que a evolução na economia não veio acompanhada de uma extensão significativa dos direitos civis. Na Bota, os protestos de movimentos sociais não ficaram restritos ao Maio de 1968 e duraram até o ano seguinte, quando aconteceu o chamado Outono Quente.

Parte do país reclamava: dizia não à qualquer chance de recessão, políticas de austeridade, aumento do desemprego e energia nuclear; e sim a direitos trabalhistas e pautas de preservação do meio ambiente. Esta onda de manifestações abriu espaço para a contestação do sistema e a Itália, como vários outros países do mundo, verificou um notório crescimento de partidos de extrema esquerda e de extrema direita. Porém, foi uma coalizão mais moderada, entre os Socialistas e a Democracia Cristã (DC), que acabou chegando ao poder na Velha Bota. Isso não aplacou os ânimos – na verdade, os acirrou. O país entrou numa espiral de muita violência, radicalismo e terrorismo.

Documentos interceptados pelo MI6, o serviço secreto britânico, indicavam que os EUA incentivavam, com o apoio do governo grego, uma série de atos terroristas e a instauração de ditaduras no Mediterrâneo. Para conter o avanço do comunismo, a OTAN e os norte-americanos, através da CIA, seu órgão de inteligência, patrocinaram algo similar à Operação Condor, ocorrida na América Latina: era a Operação Gladio. Em 2013, o Wikileaks publicou comunicações hackeadas do Departamento de Estado ianque com seu embaixador na Itália, que revelavam o desconforto do secretário Henry Kissinger com um suposto combate mais acentuado do governo italiano a grupos neofascistas do que aos comunistas.

Entre o fim da década de 1960 e o início da de 1980, facções paramilitares de direita e de esquerda sequestraram e assassinaram políticos ou pessoas ligadas a eles, promoveram tiroteios e expressivos atentados a bomba – foi nesse período que Cesare Battisti, que fugiu para o Brasil, ficou conhecido. Grupos ligados ao serviço secreto italiano e aos governos democratas cristãos (como a loja maçônica Propaganda Due, a P2) também não ficavam atrás: o terrorismo de estado e a sombra de um golpe militar sempre estiveram à espreita.

A tática, que ficou conhecida como “estratégia de tensão”, era desestabilizar o país para, depois, estabilizá-lo. Provocar o caos para restaurar a ordem. A intenção estava manifesta num manual da CIA encontrado nos pertences de Licio Gelli, ex-membro do Partido Fascista e grão-mestre da P2, preso nos anos 1980. Também foi achada uma lista – avaliada como autêntica – de membros da loja, que chegou a ser considerada como “um estado dentro do estado”. O documento continha os nomes de pessoas influentes; algumas delas reconhecidas no mundo do futebol, como Artemio Franchi, ex-presidente da FIGC e da Uefa, e Silvio Berlusconi, que se tornaria presidente do Milan e primeiro-ministro.

Em suma, a Itália foi banhada de sangue nos anos de chumbo. Nesse período, aconteceram os massacres da Piazza Fontana, em Milão, e da estação ferroviária central de Bolonha, ambos em atentados a bomba. Acredita-se que mais de 2 mil mortes tiveram motivação política naquela época.

Personalidades da sociedade também foram assassinadas. Os mais conhecidos a perderem a vida na década sangrenta foram o ex-presidente do Conselho de Ministros, Aldo Moro (democrata cristão, morto pelas Brigadas Vermelhas), e o poeta e cineasta Pier Paolo Pasolini, um dos gênios italianos do século XX. Oficialmente, o artista foi executado por um gigolô em Ostia, nas imediações de Roma, mas há aqueles que afirmam que o delito foi premeditado e que as investigações foram falsificadas. Pasolini sabia demais e já tinha escrito colunas em jornais sobre o envolvimento do alto escalão da DC com terrorismo.

A Roma em que Pasolini foi justiçado era uma cidade que vivia sua primeira grande onda de criminalidade. Entre os escombros do boom econômico e da dolce vita, a metrópole enfrentava a degradação dos bairros residenciais, em paralelo ao início das operações do crime organizado. No submundo da ilicitude, se destacava a aliança entre o clã dos marselheses e a Banda della Magliana. O segundo grupo de criminosos romanos era ligado à extrema direita e tinha no Nuclei Armati Rivoluzionari uma espécie de braço armado político. O NAR assumiu a autoria do atentado de Bolonha.

Os jovens dessas corporações ilegais começaram a enriquecer com roubos, tráfico de drogas e sequestros – ou, por outro lado, com a formação de milícias, sob o pretexto de combater os fora-da-lei. Capitalizados, os criminosos queriam, então, penetração social: frequentar os lugares da moda, mais centrais, se aproximar das esferas de poder e transformar seu dinheiro sujo em status. É aí que os círculos da criminalidade e dos esportes encontram seu espaço de interseção. E alguns jogadores, como Chinaglia, são atraídos pela ilegalidade. Long John, inclusive, esteve envolvido em negociatas até o fim da vida e chegou a ir morar nos Estados Unidos para não ser preso na Itália.

Wilson argumenta com ultras revoltados: organizadas surgiram nos anos de chumbo (Wikipedia)

Outra zona de convergência entre os jogadores e o crime estava nas torcidas organizadas. Elas começaram a se difundir exatamente no início dos anos de chumbo e, para muitos, eram um espaço de abrigo e união em tempos tão atribulados. A penetração dos grupos de torcedores se dava, sobretudo, nas camadas mais populares da sociedade e era, também, uma extensão da polarização da época – é um dos motivos para que, ainda hoje, grupos ultras tenham orientação política definida. Não bastava apenas se opor a um time adversário, mas também a visões de mundo diferentes.

Pouco tempo depois de sua constituição, as torcidas organizadas rapidamente viraram protagonistas de atos de violência na Itália. As brigas entre ultras levaram às primeiras mortes no fim dos anos 1970. Uma delas ocorreu em pleno estádio Olímpico. Antes de um dérbi romano, em 1979, um jovem torcedor de 17 anos da Roma disparou um sinalizador marítimo, que atravessou o gramado, atingiu e matou Vincenzo Paparelli, torcedor laziale de 33 anos. O trágico incidente teve de ser “administrado” pelo capitão Wilson. Pino precisou acalmar a torcida celeste, pois a FIGC não suspendeu a realização do jogo mesmo depois do falecimento. O clássico terminou empatado em 1 a 1.

A tensão política da Itália dos anos de chumbo, por vezes, era inflamada por acontecimentos em outras nações europeias. A Espanha, por exemplo, também atravessava um período sombrio. No início de outubro de 1975, o país estava entrando na quarta década do regime sanguinário de Francisco Franco. Por muito tempo, a comunidade internacional fechou os olhos para a ditadura militar do Generalíssimo, mas movimentos sociais, as Nações Unidas e o papa Paulo VI protestaram pelo fuzilamento de membros da Frente Revolucionária Antifascista e Patriótica e do separatista ETA – a medida era considerada dura demais. Com esse pano de fundo, Lazio e Barcelona se enfrentariam pela Copa Uefa.

As manifestações em Roma, sobretudo por parte da esquerda, eram duras – vale salientar que a Itália tinha vivido o drama do fascismo até 1945. O Barcelona não era bem-vindo na capital porque seus dirigentes homenagearam Franco com uma medalha de honra em comemoração aos 75 anos de fundação dos blaugrana. Apenas Raimon Carrasco, cujo pai fora fuzilado pelos franquistas na Guerra Civil Espanhola, não se prestou ao papel de bajular o ditador.

Parte considerável do proletariado italiano, altamente politizado na época, refutava o Barça. Funcionários do Comitê Olímpico Italiano, o CONI, órgão administrador do Olímpico até os dias de hoje, anunciaram uma greve para o dia do jogo. O boicote à partida seria o seu protesto. Os empregados de Umberto Lenzini, presidente da Lazio e empresário da construção civil, ameaçaram uma paralisação no caso de o duelo acontecer.

Após a repercussão, a equipe italiana alegou que não havia condições de segurança para a realização da partida e Lenzini teve de costurar uma saída com Artemio Franchi, então presidente da Uefa, para que o clube não fosse punido. Por outro lado, Franchi buscava apoio para isolar a Espanha no contexto esportivo europeu. O cartola planejava uma espécie de sanção por violações aos direitos humanos. Era um blefe: uma forma de fazer pressão sobre os catalães e desencorajar ações judiciais por parte dos blaugrana.

Populares leem o Corriere dello Sport no dia seguinte à morte de Paparelli, com o Olímpico ao fundo (Repubblica)

No fim das contas, os celestes abdicaram da eliminatória. A Lazio aceitou perder a ida por WO – o equivalente a um placar de 3 a 0 para o adversário – e, na volta, cumpriu tabela frente ao time liderado por Johan Cruyff. O holandês recebeu a Bola de Ouro antes de ser um dos destaques na vitória por 4 a 0 sobre os celestes. A bem da verdade, o Barça encarou uma equipe visitante bastante desinteressada, ciente de que o duelo estava resolvido.

Eram tempos duros, nos quais – como vimos – a conjuntura política da sociedade resultava em consequências no âmbito esportivo. Seguramente, refletia no que acontecia nos gramados. Franco morreria ainda em outubro e, em seguida, caminhando para a democracia, a Espanha aboliria a pena de morte. A Itália, contudo, persistiria nos anos de chumbo.

O chumbo, a propósito, era um metal frequentemente manipulado pelos jogadores da Lazio. O elenco era ávido por armas de fogo e costumava montar linhas de tiro no CT de Tor di Quinto e em bosques dos hotéis em que se concentrava. Era um ingrediente que acrescentava periculosidade às situações que Maestrelli tinha de lidar, num plantel cindido em dois.

O lateral-direito Petrelli era um dos maiores amantes de armamentos do grupo e acabou atiçando o gosto dos companheiros. O defensor era dono de vasta coleção e seu paiol tinha até um rifle M-16. As peças preferidas dos jogadores da Lazio, contam, eram fabricadas pela Smith & Wesson. Nas muitas brincadeiras pesadas que os clãs belicosos faziam, os alvos eram diversos e iam de pássaros a lâmpadas. Certa vez, Petrelli preferiu dar um tiro na luminária de seu quarto pois não queria levantar da cama para apagá-la.

Noutra ocasião, torcedores da Roma não deixavam os laziali dormir antes de um clássico. Os giallorossi foram perturbar a tranquilidade da concentração da Lazio e foram expulsos das imediações debaixo de chumbo grosso. Para afugentar os rivais, os jogadores foram até as janelas dos seus quartos, no Hotel Americana, e dispararam nos postes da rua.

Chinaglia tinha Wilson como seu maior parceiro, mas um outro companheiro costumava ser mais presente que o zagueiro. O bomber não se separada de seu revólver Magnum, calibre 44. Afinal, ele andava com um pessoal barra pesada e também não era muito benquisto por grande parte da Cidade Eterna. Primeiro, pelos romanistas, com quem polemizava frequentemente: um grupo de ultras chegou a saquear uma loja de roupas do atacante, certa feita. Long John também não era apreciado pelos esquerdistas, gostassem ou não de futebol. Os laziali de sinistra toleravam seu posicionamento político. Os outros lhe detestavam.

Flagrante num dos vestiários celestes: na falta de uma pistola, Chinaglia toca trompete (SS Lazio Fans)

Na época, mais exatamente nas eleições de 1972, Giorgio disse que votaria no MSI, partido de extrema direita – mais pela aparente rebeldia de Giorgio Almirante, seu líder, do que pelos valores. O cabeça da agremiação era declaradamente neofascista e fora um dos responsáveis pelas prisões de judeus durante a República de Salò, o estado-fantoche alemão que Benito Mussolini instituiu no norte da Itália, de 1943 a 1945.

Parte da sociedade queria que a corrente política fosse dissolvida, por supostamente contrariar a constituição italiana, que veda manifestações fascistas e de restauração da monarquia. Para manter-se ativo, o MSI declarava “não renegar nem querer restaurar” o regime. Outros jogadores daquela Lazio, como Wilson, Petrelli, Martini e Re Cecconi também manifestaram apoio ao partido.

Luciano não era muito atento à política e talvez só gostasse do partido porque ele havia se fundido a um grupo de monarquistas. Sua família tinha “re” (rei, em italiano) no sobrenome por causa de agrado concedido pelo ex-monarca Vittorio Emanuele II, que visitou sua cidade natal – Nerviano, na Lombardia – e ficou encantado pelo acolhimento e pela qualidade do banquete servido por seus avós. Re Cecconi, aliás, era um dos poucos atletas daquela Lazio que não portava armas de fogo. Seu hobby radical e militaresco era o paraquedismo, historicamente visto como um passatempo da direita itálica. Martini costumava saltar com o amigo.

Por uma ironia do destino, foi uma pistola que tirou a vida de Re Cecconi, justo naqueles anos de chumbo. Em janeiro de 1977, o meia de 28 anos visitava um bairro comercial da Cidade Eterna, próximo ao CT da Lazio. A região era habitada e frequentada por muitos atletas do clube, e o próprio Luciano já tinha participado de batizados de garotos celestes por ali. Acompanhado de Pietro Ghedin, companheiro de vestiário, e do perfumista Giorgio Fraticcioli, eles foram à joalheria de Bruno Tabocchini. Mal entraram na loja e, bang!, o comerciante disparou no peito do jogador. Cecco morreria na noite do mesmo dia, no hospital.

As versões para o ocorrido são conflitantes e houve contestação da sentença por parte dos laziali. Num primeiro momento, foi reportado que o trio teria feito uma brincadeira, numa simulação de assalto à joalheria, e que Cecco, ferido de morte, teria dito “era só uma pegadinha…”. Nessa linha, a defesa de Tabocchini afirmou que o lojista se assustou, pois já tinha sido assaltado outras vezes, e disparou tão logo Re Cecconi terminou de falar, sem ter tempo para reconhecer o amigo Fraticcioli ou o jogador. O comerciante foi absolvido por legítima defesa, mas as críticas à decisão foram severas.

Outras interpretações fornecidas sobre a tragédia ainda geram discussão até hoje. A mais comum é a de disparo acidental, sustentada por amigos do ex-jogador, inclusive Ghedin – o zagueiro estava na cena do crime e declarou não ter havido simulação de assalto. Os companheiros de time descreviam Luciano como um “cara responsável”, que dificilmente teria pensado em fazer uma brincadeira do gênero durante os anos de chumbo. Cecco não prestava atenção na política, mas não era tonto. Sabia que, especialmente em Roma, as armas circulavam com facilidade e os assaltos eram frequentes.

Contudo, também houve quem argumentasse que Re Cecconi pensara que não corria riscos ao brincar daquele jeito, pois estava na companhia de um amigo do joalheiro e era um habitué da área. Uma coisa, porém, é certa: a estratégia de tensão, disseminada pelas facções políticas, deixava o país alarmado e contribuiu para o seu assassinato.

A morte de Luciano foi a segunda tragédia vivida pela Lazio em 1976-77. Um mês e meio antes de o meia ser assassinado, Maestrelli já havia partido. O treinador foi vítima de um câncer de fígado devastador, que rapidamente lhe consumiu.

O toscano havia se licenciado para se tratar em abril de 1975 e chegou a tentar voltar às atividades laborais em dezembro do mesmo ano. Um ano depois, o maestro faleceu, chocando os clãs celestes, que já não contavam com a presença de Chinaglia, que fora jogar no New York Cosmos, com Pelé. A despedida do maestro foi capaz de unir os grupos por um instante, que levantaram bandeira branca por causa da dor pungente.

As duas fatalidades marcaram tragicamente o fim de ciclo daquela equipe, que ainda teve um epílogo nefasto. Em 1979, ocorreu a morte do torcedor Paparelli e, no ano seguinte, eclodiu o escândalo Totonero, com participação de Wilson e de outros três jogadores do elenco celeste. O envolvimento do grupo em apostas ilegais e em manipulação de resultados significou uma dura punição para o clube, que foi automaticamente rebaixado para a Serie B. Nos anos 1980, os aquilotti viveram enorme crise e disputaram a segundona em seis ocasiões, chegando a flertar com a queda para a terceira categoria. A agremiação só se recuperou mesmo no início da década seguinte, depois que foi adquirida pelo empresário Sergio Cragnotti.

Aquele grupo da Lazio de 1973-74 viveu de tudo. Formado um pouco antes, jogou a segundona e deu a volta por cima. Depois, em menos de uma década, foi do júbilo ao drama; do scudetto à segunda divisão. Sem dúvidas, nenhum outro time representou tão fielmente o seu tempo, calcado em extremismo, bangue-bangue e sangue derramado.

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  • Parabéns, grande texto! O contexto político do final dos anos 1960 até início dos anos 1980 é muito parecido com o que estamos vivendo no Brasil nos últimos anos.

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