A relação do ser humano com o tempo, de maneira geral, é singular. Consideramos determinados períodos como especiais por marcarem nossas vidas de alguma maneira específica ou algo do tipo. É quase um consenso que a virada de página definitiva é marcada entre 31 de dezembro e 1º de janeiro – afinal, se começa um novo ano. É uma nova chance de recomeçar e isso se festeja bastante. Para Hasan Salihamidzic, a transição é mais especial: o dia do seu aniversário.
Na pequena Jablanica, em 1977, uma família crescia e via nascer um novo membro. Foi nessa data que Sefika Salihamidzic deu à luz a Hasan, o seu filho caçula. Foi logo apelidado de “Braco” (pronuncia-se “bratcho”) ou irmão mais novo, em bósnio, porque Sefika e Ahmad eram pais de uma menina. Não passou muito tempo para que Hasan demonstrasse o que queria da vida: logo aos 9 anos se juntou a um clube local, o Turbina Jablanica. Conciliando a infância na região da Herzegovina com os treinos, o garoto chamava atenção dos treinadores, apesar da pouca idade.
Em 1992, aos 15 anos, saiu para um clube maior, o Velez Mostar, o maior clube da Herzegovina e um dos maiores da antiga Iugoslávia. A cidade de Mostar fica a apenas 30 km de Jablanica e Hasan percorria essa distância diariamente para ir e voltar dos treinamentos. Quando não estava em campo, fazia bicos como garçom para complementar a renda. O ano parecia bem promissor e Salihamidzic foi convocado para a seleção sub-16 da Iugoslávia.
Porém, se tudo ia bem do ponto de vista esportivo, no social não era bem assim: a região passava por um momento conturbado. Foi também em 1992 que as tensões internas extrapolaram e, em abril, 15 dias após a estreia de Salihamidzic na seleção, se iniciou a Guerra da Bósnia. Vendo que não havia a menor condição de se manter ali, a família Salihamidzic começou a buscar alternativas para seguir a vida em outro lugar.
Foi nesse contexto complicado que surge uma pessoa importantíssima: Ahmed Halilhodzic, primo de Vahid Halilhodzic, ex-jogador de Velez Mostar, Nantes e Paris Saint-Germain, além de integrante da seleção iugoslava na Copa do Mundo de 1982. A família do ídolo bósnio, que começava a dar seus passos como técnico, também era natural de Jablanica e o pai de Hasan entrou em contato com o amigo, que havia emigrado para a Alemanha.
Enquanto usava das suas conexões, a família de Hasan ia passando por barreiras militares em busca da estabilidade. Ao todo, foram 11 paradas vencidas ao longo de 209 quilômetros, de Jablanica até a cidade de Zadar, na Croácia, onde era seguro embarcar num ônibus para deixar o país. O destino era a cidade alemã de Hamburgo.
Lá, os Salihamidzic encontraram paz e condições para seguirem a vida. Foi na Alemanha que Hasan se desenvolveu como homem, cidadão e atleta. Constituiu sua família, casando-se com Esther, irmã do também jogador Francisco Copado, com quem teve filhos. Também viu o apelido Braco ganhar nova grafia: Brazzo.
Antes disso, o jogador conseguiu uma oportunidade no Hamburgo e ficou nas categorias de base até 1995, quando chamou atenção de Felix Magath, que o promoveu para a equipe principal. Salihamidzic se consolidou como meia e lateral pela direita, passou três anos defendendo um dos principais clubes europeus e, naturalmente, ganhou espaço na seleção de Bósnia e Herzegovina, recebendo a sua primeira convocação em 1996.
Dois anos depois, rumava a um gigante continental: a custo zero, o jogador era do Bayern de Munique. Na Baviera, Brazzo viveu os tempos de glória da sua carreira. Fez parte de uma equipe que dominou a Alemanha, a Europa e o também o mundo. Foi campeão de tudo o que disputou e, de 1998 até 2007, era presença certa na escalação titular dos bávaros, como meia, lateral ou volante. Era ambidestro, aguerrido em campo e, vez ou outra, marcava seus gols.
Muita coisa mudou quando o jogador completou 30 anos. Recém-aposentado da seleção bósnia, Sali também optou por novas experiências no âmbito clubístico – também em outra agremiação gigantesca. Em janeiro de 2007, assinou um pré-contrato com a Juventus, que buscava o retorno à Serie A depois de ser rebaixada em virtude do escândalo Calciopoli.
A custo zero, Salihamidzic acertou por quatro temporadas e chegou à Juve no verão europeu. A sua trajetória em Turim começou sob as ordens de Claudio Ranieri, que foi contratado como treinador após a saída de Didier Deschamps. O romano era o responsável por um grupo que buscava mesclar experiência com juventude. A chegada de Sali encorpou um grupo de veteranos que tinha Gianluigi Buffon, Alessandro Del Piero, Vincenzo Iaquinta e David Trezeguet, nomes que permaneceram para disputar a segunda divisão. Ao mesmo tempo, Giorgio Chiellini, Sebastian Giovinco e Claudio Marchisio começaram a ganhar espaço entre os jogadores da equipe principal.
Envergando a camisa 7 no Piemonte, Hasan foi titular quando a Juve voltou a disputar a Serie A. A goleada por 5 a 1 diante do Livorno, em casa, deu ânimo àquela equipe. Fazendo parte da rotação do elenco, Sali esteve em campo na estreia da Juve na Coppa Italia, diante do Parma, e marcou o seu primeiro gol com a camisa da Juve naquela partida, disputada em 29 de agosto. Quase um mês depois, na goleada por 4 a 0 diante da Reggina, outro tento marcado. A caminhada do experiente Salihamidzic começou muito bem.
A questão física era sempre alvo de preocupação. Sali já tinha rompido ligamentos do joelho direito em 2002, quando jogava pelo Bayern, de modo que ele e a Juve sabiam que não era prudente abusar. Por isso Hasan raramente jogava os 90 minutos: das 26 partidas que realizou naquela temporada, foi titular em 21, mas em apenas 11 percorreu toda a jornada em campo. Ao longo da campanha, contando com a utilidade do versátil bósnio, a Juve foi muito regular: a posição mais baixa que ocupou na Serie A daquele ano foi a sexta. O time de Ranieri terminaria o campeonato na terceira colocação.
A partida mais marcante do bósnio pela Juventus aconteceu na 33ª rodada da Serie A, diante do Milan – quando atuou por 90 minutos. Àquela altura, a Juve estava muito tranquila na tabela. Tinha 64 pontos, oito a mais que a quarta colocada Fiorentina e distante sete pontos da Roma, vice-líder. Os rossoneri estavam 12 pontos distantes, na quinta posição. Ao longo do primeiro tempo, Salihamidzic viu Del Piero abrir o placar e Pippo Inzaghi virar o placar para o Milan.
Havia uma curiosa coincidência com os gols marcados por Brazzo com a camisa da Juve. O camisa 7, que atuava principalmente como meia-direita, sempre aparecia na área para completar jogadas: desviando por baixo, completando rebotes e afins. Foi num rebote que marcou diante da Reggina, foi também numa bola espirrada que marcou o tento contra o Siena. Contra o Milan, isso ocorreu de novo.
Aos 45 minutos, no fim do primeiro tempo, o bósnio estava na área para aproveitar a rebatida do goleiro Zeljko Kalac em cabeçada de Trezeguet: empurrou a bola para as redes e empatar aquela partida. E, num cruzamento de Mauro Camoranesi, aos 80, surgiu imponente no ar para cabecear para o fundo das redes e virar, garantindo mais três pontos para a Velha Senhora. O resultado ajudou a consolidar a volta da equipe à Champions League.
A preocupação com os problemas físicos começou a se intensificar nas temporadas 2008-09 e 2009-10. Ao longo dos dois anos, Brazzo esteve mais fora de campo do que dentro dele. Pouco contribuiu na campanha vice-campeã de 2008-09, quando participou apenas de 11 partidas – 15 no total, considerando a Liga dos Campeões. As lesões musculares passaram a ser mais frequentes e Sali conheceu um novo e íntimo adversário: a dor.
A partida de Ranieri da Juventus em maio de 2009, após a conquista de mais uma vaga na Champions League (a Velha Senhora foi vice-campeã) se provou um ponto crucial na carreira do bósnio na Bota. Ciro Ferrara, Alberto Zaccheroni e Luigi Delneri deram poucas chances para o já veterano atleta, que perdia a batalha contra as lesões e também via Marchisio crescer. A escassez de oportunidades foi tanta que, em 2010, Delneri chegou a afastar Salihamidzic do grupo principal e orientá-lo a procurar um novo clube. Mas Brazzo permaneceu.
Batalhando contra uma tendinite, Hasan chegou a se recuperar e ser reintegrado ao grupo, já aos 33 anos e mais perto do fim da carreira. No total, entre 2008 e 2011, atuou em 35 partidas, sendo apenas 14 delas como titular. Portanto, pouco pode fazer para evitar os dois sétimos lugares da equipe em suas derradeiras temporadas. O seu último gol pela Juve foi marcado nas oitavas de final da Europa League 2009-10, na fatídica eliminatória contra o Fulham, e a sua última atuação com a camisa bianconera ocorreu num empate por 2 a 2 com o Napoli, na última rodada da Serie A de 2010-11.
Em fim de contrato, Salihamidzic encerrou a sua passagem de altos e baixos pela Juve, voltou à Alemanha e disputou mais uma temporada pelo Wolfsburg. Depois de contribuir com a equipe alviverde, encerrou a sua carreira como jogador aos 34 anos. Depois disso, Brazzo foi comentarista e se tornou diretor esportivo do Bayern de Munique, clube que lhe permitiu viver seu auge dentro de campo.
Na Bósnia, Hasan Salihamidzic é tido como um dos principais ídolos do futebol. Defendeu a seleção por 10 anos, entre 1996 e 2006, com amor e muita competência, sendo inclusive responsável pelo primeiro gol da nação numa partida competitiva – contra a Croácia, pelas Eliminatórias da Copa de 1998. Nunca deixou de esconder o orgulho de sua nação e de sua etnia, nunca tratando o assunto de forma trivial.
Certa vez, seu pai afirmou que eram três as características que mais chamavam atenção no filho: a dedicação, a ambição e o desejo de vencer. Apesar das lesões e das dificuldades, nunca o bósnio reclamou ou colocou em prática algum tipo de boicote na passagem durante a Juventus. Quando esteve em campo, sempre deu o melhor que podia e ajudou na reconstrução de uma equipe que precisava daquilo: garra e vontade de vencer. Incansável no gramado, não conseguiu suplantar as lesões que limitaram a produtividade do seu fim de carreira, mas deixou legado positivo no Piemonte.
Hasan Salihamidzic
Nascimento: 1 de janeiro de 1977, Jablanica, antiga Iugoslávia
Posição: meio-campista e lateral-direito
Clubes: Hamburgo (1995-98), Bayern de Munique (1998-2007), Juventus (2007-11) e Wolfsburg (2011-12)
Títulos: Bundesliga (1999, 2000, 2001, 2002, 2003, 2005 e 2006), Copa da Alemanha (2000, 2003, 2005 e 2006), Copa da Liga Alemã (1998, 1999, 2000 e 2004), Champions League (2001) e Mundial Interclubes (2001)
Seleção bósnia: 42 jogos e 6 gols