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Condenação de médico, tributos e família: os três anos após a morte de Davide Astori

Na manhã de 4 de março de 2018, o zagueiro e capitão da Fiorentina, Davide Astori, não desceu para tomar café com seus companheiros de equipe. Era domingo e a Viola entraria em campo poucas horas depois contra a Udinese, no estádio Friuli, pela 27ª rodada da Serie A. Surpresos com a demora de Astori, que era sempre um dos primeiros a acordar na concentração antes das partidas, alguns jogadores e membros da comissão técnica bateram na porta de seu quarto. Ninguém respondeu.

Na noite anterior, o capitão havia jogado uma partida de futebol no videogame contra Marco Sportiello, goleiro reserva da Fiorentina, antes de se recolher em seu aposento, sozinho. Astori dormiu cedo e não acordou mais. O primeiro a encontrá-lo sem vida, em sua cama, foi o massagista da equipe. O corpo do zagueiro italiano de apenas 31 anos foi levado ao hospital Santa Maria della Misericordia para realização da autópsia. Informações preliminares davam conta que um ataque cardíaco havia acometido o jogador, sem maiores detalhes.

A morte de Astori gerou comoção mundial. Em Florença, a Piazza Santa Croce foi tomada por torcedores da Fiorentina, que acompanharam seu funeral de perto, junto a nomes importantes do futebol italiano – Gianluigi Buffon, Giorgio Chiellini, Francesco Totti, Massimiliano Allegri e todo o elenco da Viola. Não demorou para que Fiorentina e Cagliari (equipe que Astori defendeu por seis anos) aposentassem o número 13 de suas camisas.

Imediatamente após a tragédia, foi aberta uma investigação para a possibilidade de um homicídio culposo envolvendo Astori. Médicos de Cagliari e Florença, que trabalharam com ele e concederam permissões para a prática esportiva do zagueiro, passaram a ser investigados. E, em dia 3 de maio de 2021, pouco mais de três anos após a morte do zagueiro, o Tribunal de Florença deu seu veredito: Giorgio Galanti, ex-diretor de medicina esportiva do Hospital Universitário Careggi, em Florença, único réu na investigação, foi condenado a um ano em regime aberto, em condicional. Ele não ficará recluso em uma prisão, desde que não volte a cometer um crime do mesmo tipo e natureza durante o tempo previsto. Além disso, também foi intimado a pagar uma multa indenizatória na casa de 1 milhão de euros à família de Astori.

Galanti acabou condenado por emitir dois certificados em julho de 2017 autorizando Davide a jogar futebol. O tribunal entendeu que a morte do italiano, fruto de uma miocardiopatia arritmogênica silenciosa, poderia ter sido detectada através de exames complementares, que não foram solicitados pelo médico. Francesca Fiorelli, ex-esposa de Astori, concorda com a decisão da justiça e aponta a importância deste caso para salvar vidas futuramente. Atualmente, ela vive em Milão com Vittoria, filha do casal, mas fez questão de comparecer à última audiência em tribunal que tratou do caso. A menina nasceu em 2016 e perdeu o pai com apenas dois anos de idade.

A família de Astori, fotografada no funeral do zagueiro (imago)

A condenação

Foi com surpresa que o advogado Sigfrido Fènyes recebeu a condenação de seu cliente, Giorgio Galanti. Fènyes garante que irá recorrer da decisão e que ainda quer entender os motivos da sentença. Para ele, os documentos e a perícia vão contra a decisão do tribunal, que optou por condená-lo por negligência. De fato, há poucos meses, a situação parecia mais favorável ao médico.

Davide Astori morreu por conta de uma fibrilação ventricular decorrente de uma miocardiopatia arritmogênica silenciosa. Ou seja, o zagueiro sofreu alteração em seu ritmo cardíaco, o que levou seu coração a parar de bater enquanto ele estava em repouso. Trata-se de uma doença silenciosa, de origem genética e praticamente letal em pessoas mais jovens, como o zagueiro.

Para entender se a anomalia poderia ter sido identificada com antecedência, um dos juízes designou dois profissionais especialistas para analisarem o caso: o legista Gian Luca Bruno e o cardiologista Fiorenzo Gaita. De acordo com eles, a patologia era extremamente sutil e não poderia ter sido detectada mesmo com a realização de exames adicionais como eletrocardiograma (ECG), ressonância magnética e o Holter 24 horas – aparelho que acompanha frequência cardíaca, pausas, quantificação de arritmias e outros dados importantes do coração de um paciente.

No entanto, tais argumentos não convenceram o juiz de audiência complementar (GUP) de Florença. A decisão foi de que, ao menos, o ECG e exame com o Holter deveriam ter sido realizados em Astori durante sua última bateria de testes de esforço, em 2017. Por conta da falta de aprofundamento na investigação das anomalias cardíacas, o médico Giorgio Galanti foi condenado. Graduado em Medicina e Cirurgia na Universidade de Florença, em 1972, Galanti é especialista em cardiologia, doenças cardiovasculares e medicina do esporte. Foi como diretor do centro de medicina esportiva de Careggi que ele concedeu a autorização a Astori para jogar futebol nove meses antes da morte do jogador. No passado, o médico e professor também foi consultor esportivo da própria Fiorentina.

Vale dizer que, na Itália, desde 1971, existe um programa de avaliação extremamente rígido e apoiado por lei nacional. Neles, atletas jovens que realizam treinamento regular para participar de eventos competitivos são submetidos à avaliação médica. Este tipo de conduta já preveniu a morte súbita de atletas diagnosticados como portadores de miocardiopatia – justamente a patologia que afetou Astori. Da mesma forma, nos clubes de futebol profissionais, todo o acompanhamento clínico é executado com rigor. Entende-se que, por conta disso, a omissão de Galanti em realizar os exames, por mais que eles pudessem ser insuficientes para detectar o problema, resultou em sua condenação.

A princípio, o procurador Antonino Nastasi havia pedido uma pena de 18 meses por homicídio culposo. O caso teve julgamento feito com “rito abreviado”, ou seja, sem passar, anteriormente, pela análise do pedido de medida cautelar. Com a condenação de um ano confirmada, Galanti ainda terá de arcar com uma alta indenização: 250 mil euros para a viúva do futebolista, Francesca Fioretti, 240 mil para a filha, Vittoria, e 600 mil para os pais, Renato e Giovanna, e irmãos do jogador, Marco e Bruno, totalizando 1 milhão e 90 mil euros.

Viúva de Astori, a atriz Francesca Fioretti acompanhou o julgamento do médico Galanti (LaPresse)

A nova vida de Francesca

Ex-esposa de Davide Astori, Francesca Fioretti comemorou, na medida do possível, a decisão do Tribunal de Florença. Aos 35 anos, a ex-participante do Grande Fratello 2009 (a versão italiana do reality show Big Brother), passou bastante tempo sem se pronunciar a respeito da morte do marido.

Ela deixou Florença e foi morar em Milão com a filha Vittoria, que hoje tem cinco anos de idade. No entanto, em postagem no Instagram datada de fevereiro, Francesca afirmou a importância de comparecer ao tribunal para acompanhar o andamento do caso de Astori. Na época, ela temia uma sentença diferente, que mantivesse a morte de seu marido no simples plano da “fatalidade”. Agora, ela se diz feliz e orgulhosa com a justiça feita a Davide, apesar de lamentar o fato de que ele ainda poderia estar ao seu lado. “Espero sinceramente que isso possa servir no futuro para salvar uma única vida humana que seja”, disse.

Após perder Astori, Francesca relatou muitas dificuldades em seguir sua vida em frente. Só o fez por conta da filha, segundo suas próprias palavras em uma longa entrevista a Walter Veltroni, do Corriere della Sera, realizada em 2018. Aos poucos, ela retomou seus trabalhos no cinema e no teatro. Atualmente, namora o também jogador Aleksandar Kolarov. O sérvio, de 35 anos, é atleta da Inter.

Vale lembrar que a Fiorentina, logo depois da tragédia ocorrida com seu capitão, criou um fundo de apoio a Vittoria Astori com o objetivo de garantir a segurança financeira da garota, que tinha apenas dois anos de idade quando perdeu o pai. A supervisão do fundo ficou por conta da família do jogador e de Francesca. Em 2019, um ano após a morte do capitão, a Viola revelou, em seu balanço financeiro, ter doado 1,5 milhão de euros para este fundo.

Com relação ao caso na justiça, a Fiorentina não compareceu como parte civil, mas esteve representada no tribunal pelo advogado Nino D’Avirro por, segundo o próprio, “solidariedade à família de Astori”. Sobre a sentença, o advogado do clube se limitou apenas a dizer que a única ação possível a Fiorentina é “tomar conhecimento da decisão do juiz que reconheceu a responsabilidade do professor Galanti”.

Desde a morte de seu capitão, a Fiorentina utiliza braçadeira personalizada (IPA)

Homenagens em Florença

Enquanto o caso de Davide Astori se desenrolava na justiça, a cidade de Florença anunciou, em abril, a realização de mais um tributo em memória ao capitão. Um mural com 241 metros quadrados será confeccionado na parede de um edifício localizado no distrito 4 da cidade. Quem vai assinar a obra é Giulio Rosk, artista de rua siciliano, com ampla experiência em criações como esta por toda a Itália.

O projeto foi idealizado pela organização não governamental Cure2Children, em colaboração com a Prefeitura de Florença e em parceria com a Esselunga, rede de lojas de varejo italiana. Trata-se de um financiamento coletivo, que visa atingir e ultrapassar a arrecadação de 30 mil euros. Assim que esse valor for alcançado, o dinheiro começará a ser destinado aos projetos da Cure2Children, fundação que ajuda crianças com câncer ou doenças hematológicas graves em países em desenvolvimento há mais de 12 anos.

O que pouca gente sabe é que o próprio Davide Astori era muito ligado à Cure2Children. A presidente da fundação, Cristina Cianchi, se recorda de algumas palavras do zagueiro. “Temos de fazer as pessoas perceberem o que a Cure2Children faz, porque toda criança tem o direito de jogar o seu jogo”, disse. Já o prefeito de Florença, Dario Nardella, também fez questão de celebrar a construção da obra, que tem início previsto para este mês de maio. “Davide está e ficará para sempre no coração de Florença”, disse o político.

E, para tornar a homenagem mais completa, um documentário, produzido pela revista Edera, vai mostrar a realização do mural dedicado ao capitão. Por conta deste filme, o Museo del Calcio, localizado no Centro Esportivo de Coverciano, se tornou set de filmagens. Por lá é mantida a camisa de número 13 que Astori usou no amistoso entre Itália e Alemanha, disputado em Milão, em 15 de novembro de 2016.

Vale lembrar que o nome do zagueiro também já foi dado ao Centro de Treinamentos da Fiorentina, localizado junto ao estádio Artemio Franchi. No entanto, a equipe deixará de utilizar este complexo assim que seu novo CT ficar pronto – as obras do “Viola Park”, localizado em Bagno a Ripoli, começaram, mas foram interrompidas por problemas com a ONG Italia Nostra na justiça. A previsão mínima é de que a estrutura, que será o maior centro de treinamento de um time na Itália, fique pronta em 2022.

Anteriormente, em 2019, uma outra homenagem a Astori foi autorizada pela Liga Serie A. Isso porque, naquele ano, a entidade que organiza o campeonato italiano introduziu uma faixa de capitão padrão para todos os times. No entanto, a Fiorentina pediu para permanecer utilizando a braçadeira estilizada em homenagem ao zagueiro: a faixa conta com as iniciais de Davide Astori, “DA”, e o número 13, utilizado pelo eterno capitão. Ela também possui os brasões dos quatro bairros históricos de Florença. Após a solicitação, a liga abriu uma exceção para o clube violeta.

Telão do Franchi homenageia Davide (LaPresse)

Para sempre, Davide Astori

Davide Astori nasceu em 7 de janeiro de 1987, em San Giovanni Bianco, província de Bérgamo. Zagueiro canhoto, de 1,89 m, começou a jogar no Milan, mas não recebeu muitas oportunidades. Por conta disso, foi emprestado a Pizzighettone e Cremonese, antes de ser vendido ao Cagliari no ano de 2008. Atuou por seis anos na equipe da Sardenha, até ser emprestado à Roma na temporada 2014-15. Logo no ano seguinte, desembarcou em Florença também por empréstimo. Contudo, agradou os dirigentes da Fiorentina, que optaram por comprá-lo em definitivo após 12 meses.

Com o manto da Viola, entrou em campo 109 vezes, marcou três gols e deu três assistências – a última delas, em seu jogo derradeiro, quando fez o passe para o gol solitário de Cristiano Biraghi na vitória contra o Chievo. No dia 4 de março de 2018, às vésperas de um duelo contra a Udinese, no Friuli, faleceu na cama do hotel, em decorrência de uma miocardiopatia arritmogênica silenciosa. Ele tinha 31 anos e deixou esposa e filha de apenas dois anos.

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