Extracampo

Pelo interior com Pier Paolo Pasolini: um artilheiro contra o futebol moderno

Pier Paolo Pasolini é a grande celeuma de sua época. O renomado escritor, poeta, cineasta, diretor, ensaísta e livre-pensador italiano nasceu há “quase-exatos” 99 anos, numa época em que o futebol iniciava sua coalizão com a propaganda fascista na Itália. Clubes rivais se uniam e fundavam os seus primeiros estatutos, como outros, já gestados, engrenavam de vez nas principais divisões dos campeonatos nacionais. O futebol iniciava sua dilatação e seu Big Bang.

Bolonhês de espírito e formação, Pasolini pode respirar ainda na infância os melhores anos do Bologna, que, em duas décadas levou cinco brilhantes scudetti para a galeria de troféus rossoblù – numa época em que a Prima Divisione começava sua transição para a Serie A, na estrutura com a qual ficou conhecida. O antigo torneio regionalizado daria lugar ao campeonato de pontos corridos na temporada 1928-29.

Na infância em Casarsa della Delizia, na região de Friul-Veneza Júlia, Pasolini ganhou duas marcas que lhe seguiriam durante toda a vida: um pôster vermelho e azul do time de coração colado na parede e o dialeto friulano da comuna. A vida em retiro, quase ascética no silêncio dos campos, tomaria parte das litanias de sua primeira fase poética publicada.

Havia ali a força precursora que desalinharia o autor dos resquícios do ideário futurista de Filippo Tommaso Marinetti; que, por sua vez, viria à realização na era pós-industrial sob o prognóstico da vanguarda: o reino das velocidades, do belicismo e da máquina na Itália Moderna. Será com o tempo que as incursões pasolinianas aos poucos deixarão o fundo religioso das campinas do nordeste italiano para descer à efervescência do centro-sul, assim como será paralela a essa trajetória a era dos triunfos de um meteórico Bologna – que teve com uma de suas estrelas Marino Perani, que aparece ao lado do artista, na foto que abre o texto. Um Bologna não mais visto, até os dias de hoje.

Pasolini comanda seleção italiana de artistas, em 1969 (imago/Granata Images)

Regiões da grama: reconhecimento de campo

Nada é mais caro à obra-vida de Pasolini do que a política, isto é, em outra expressão, a ideia de que o homem é uma ferida aberta no mundo concreto das relações: aquele que transita entre a interioridade e a exterioridade e encarna uma na outra. Uma concepção mais marxista que aristotélica. Mas o próprio Pasolini foi excomungado do Partido Comunista Italiano por motivos ainda hoje controversos – descritos no poema “Il PCI ai giovani!” (“O PCI aos jovens!”, em português).

Sua adesão à causa socialista por vezes foi tida como a expressão de um espírito romântico, remetida à sua conhecida passagem “Io sono uma forza del Passato. / Solo nella tradizione è il mio amore” (“Eu sou uma força do Passado. / Só na tradição reside o meu amor”), que termina com “E io feto adulto, mi aggiro / più moderno di ogni moderno / a cercare fratelli che non sono più” (E como um feto adulto, eu vagueio / mais moderno do que qualquer moderno / procuro irmãos que já se foram)”.

A questão, para encurtar caminho, é que Pasolini foi a voz de uma recusa muito singular da modernidade: uniu de tal maneira a poesia ibérica de Antonio Machado e Federico García Lorca com a filosofia engajada de Antonio Gramsci, assim como reconheceu um humanismo mais renascentista do que propriamente cristão na leitura dos textos bíblicos, de modo que pode tratar o subproletariado como a classe portadora de um paradigma específico. Não interessava a disputa entre o Bem moral e o Mal moral estipulada pelo valor de preservação do mundo dado; não o Outro lado da história, a narrativa das grandes conspirações cruzadas, mas justamente o Outro que habita todo mundo.

Embora tivesse obra considerada controversa, Pasolini atraía multidões quando fazia partidas beneficentes (Centro Studi Pier Paolo Pasolini)

Foi assim que a política entrou no futebol e o futebol na política de Pasolini. É dele a analogia de que o futebol seria um ritual remanescente na modernidade, uma espécie de espetáculo profundamente ligado ao teatro e à missa. O estádio é uma várzea que inventa um acontecimento político: os lances de uma partida são gerados no encontro do jogo com as interferências que concorrem ao redor, isto é, gerados pelo que em tese não participa do jogo.

O gol sai dos pés de Giuseppe Savoldi, mas os pés de Savoldi não são o centro realmente ou a causa de ser do centro do jogo. O gol é uma implosão dentro da produção coletiva de código: a maré das arquibancadas, o grito arrancado do banco, o gandula-torcedor que atrasa a bola, e tudo sob as regências paramentadas: o árbitro é uma câmera que deve ser capaz de balizar o contato físico nos noventa minutos, e num tempo que está sempre encurralando uma possível virada. O centro é onde tudo isso se aglomera num jogo de forças, mas é pura indefinição. O que insiste em tomar consistência é uma potência que quer ser materializada; um universo inteiro que nasce e desaba no momento em que o gol se efetiva.

Num famoso artigo chamado “O gol fatal”, publicado logo após a Copa do Mundo de 1970, no jornal Il Giorno – e traduzido para o português aqui, em publicação na Folha de S. Paulo –, Pasolini distingue duas categorias semióticas: um futebol de prosa e um futebol de poesia. Entre eles não há uma fronteira intransponível, mas estes lugares se comunicam e coabitam de formas muitíssimo singulares. Giacomo Bulgarelli é um prosador realista, Luigi Riva um poeta realista, Gianni Rivera um prosador poético, Sandro Mazzola um prosador, mas mais poeta que Rivera.

O futebol de prosa é a triangulação, a retranca, o tiki-taka: pode ser realista e/ou estetizante, pode ser inventivo e/ou tradicional, mas ele se baseia num plano das organizações. Há um domínio do código e a intenção de que ele possa correr pelas ligações nervosas do campo, porque é necessário que haja uma mensagem, uma atribuição e um sentido que sejam preservados na técnica ante a sua realização. É preciso um plano de ataque. É a ideia de que para chegar ao gol é preciso mapeá-lo na grama. Cogito, ergo sum.

Craque dentro e fora dos gramados, Pier Paolo Pasolini ficou conhecido pelo acrônimo PPP (Umberto Pizzi)

É um futebol avesso ao fluxo de jogo em que se tenta o resultado, mas o placar não larga o empate. É um futebol do sistema, da conclusão: o gol é um meio para a vitória. O célebre escritor norte-americano Ernest Hemingway dizia que uma prosa não é nunca design de interiores; essa objetividade estabelece um critério definitivo para a estratégia do sistema prosaico do futebol, pois a geometria do jogo coletivo deve ser capaz de formar falanges e estruturas que privilegiem a sustentação das muralhas defensivas, e assim para instituir o contragolpe tramado: são grandes máquinas de guerra.

Por outro lado, Pasolini dirá que, na base do futebol latino-americano, há um estilo alternativo que também se impõe. O futebol poético é o da primazia do drible e do gol. Um drible altera a rota natural do movimento; é por ele que um jogador é tentado a criar uma passagem à frente de seu adversário, é por ele que há quebra da interdição da grande barreira. Exige tempo e ritmo: um drible fratura a dinâmica da marcação para instaurar um caos momentâneo na linha defensiva. Eis que o jogador infiltra o esquema tático, o plano de organização que mencionamos.

Não que o drible seja propriamente o que sempre há de mais sublime – pode ser torto, mal calculado, menos intencional – mas é que ele comunica a necessidade de que tudo em volta tenha de se recompor, reaquecer, retomar. O drible dá luz ao outro universo do jogo pois, assim que ele se realiza, tudo precisa operar com a máxima eficiência e agilidade para bloquear o novo ritmo invasor. É dessa frequência que a equipe rival se mobiliza para o ataque, e a formação tática se converte num repentino desmonte. É a ideia de que o poetartilheiro é quem faz o caminho, é ele quem desenha o mapa até o gol; este futebol poético, para Pasolini (certamente sob influência da final de 1970), é o pilar do futebol brasileiro. Provare per credere – ou, em português, “tentar para acreditar”, como salienta cena do filme Accattone, de 1961.

Pasolini, poetartilheiro, num momento de descanso ao lado do cineasta Bernardo Bertolucci (Umberto Pizzi)

Futebol italiano, potência da miséria

Enquanto o diretor Federico Fellini exibiu com alguma pompa as fibras que pendiam a alta sociedade romana – culminando no clássico La Dolce Vita, com os superastros Marcello Mastroianni e Anita Ekberg – ali se confirmava o símbolo de um Belpaese; ficaria resguardado ainda o “submundo” que insurgia contra o Risorgimento, o lance inaugurador do ideário de um reino nacional.

Mas os excluídos da unificação não habitavam outro mundo: o mérito do Pasolini de Mamma Roma e Acattone consiste em tematizar os tipos degenerados em trânsito pela cidade de Roma, de Trastevere à Villa Borghese. O subúrbio supera o gueto e chega às portas da cidade moderna; o centro do país não é mais a disputa dos símbolos territoriais por Roma e Lazio, mas justamente onde aquilo que é expulso da participação política aparece, sob toda parte, num movimento em que as margens vêm comprimir o seu núcleo referente – a capital.

Faz-se necessário então, ao critério do direito, da sintaxe e da moral, uma reforma desta cidade para extirpar o que transpõe a cota do aceitável; a sujeira deve ir ralo abaixo, mas ela reage. Assim, a perversão nasce nessa Pax Romana, e não apesar dela. O caos social decorrente da miséria não é a máxima – quase otimista – da guerra de todos contra todos, mas o atentado contra tudo o que é vivo e pode nascer, porque há sempre reafirmação da destruição no desapropriado: o seu próprio estar no mundo é uma injúria contra a matéria da vida pensada pelo humanismo, isto é, a realização da obra.

Nas produções cinematográficas e nos textos, Pasolini optou por dar espaço para os dialetos regionais e para as gírias suburbanas para incorporar ali o calabrês, o napolitano, o “caipira”, a prostituta, o vagabundo, as figuras ambulantes. Mas é uma nova língua que se estabelece dentro da voz italiana, a língua estrangeira que reúne a variedade, a diferença num país selado pela indiferença formal do idioma oficializado. O gueto retorna ao mundo que lhe confere a exclusão.

Em “A História Caipira”, um galpão de matadouro serve de cenário para dois funcionários que trabalham juntos; ambos compartilham o mesmo nome: um é Romano, o Janota e o outro Romano, o Bronco. São as implicações da miséria que furam a fronteira entre mundo do trabalho e mundo da vida. Nessa não-identidade entre as personagens ou nessa identidade parcial que sugere a necessidade de uma designação “segunda” é que a imagem da miséria se edifica. O apagamento individual que decorre da miséria invade o símbolo católico do sacrifício, e descobre nele a insígnia da sociedade burguesa-clerical. A miséria será cooptada pelos segmentos da História Antiga acorrentada: a da vingança prescrita dos escravos contra o mundo da vida.

O estádio Flaminio foi palco de diversas exibições do artista, que vivia em Roma (Archivio Luce)

A singularização destes homens impera num regime da absoluta indiferença, porque só toma corpo quando essa “subespécie” decide vingar também todo o sentido que lhe é negado. O desumano está sob judice do valor pequeno-burguês: a confissão do pecado sob vigília está para a preservação do menos temível dos males, isto é, a morte psíquica dos que já estão socialmente mortos. Os personagens pasolinianos, reunidos sob o signo da pauperização, estão massificados numa forma “amorfa” sentenciada ao nada que lhes espera; em outra medida, estão sempre realizando a vida, sem que ela os admita na sua expressão social.

Dos três gigantes do futebol italiano, a Juventus foi o clube que mais representou a unificação sócio-cultural da Bota: foi o time-base da maior parte das seleções italianas campeãs do mundo e ainda é a equipe que lidera o ranking de torcidas de quase todas as regiões da Itália. O Torino é o antagonista regional, mas a grande rivalidade bianconera se estabeleceu com a Inter; não apenas uma disputa empresarial, mas um choque entre os times que mais detêm adeptos no país inteiro. Segundo matéria de 2016, publicada no site Eco della Locride, a equipe de Turim é a preferência de um a cada três calabreses, seguida por Inter (16,4%) e Milan (14,1%). Somente em quarto lugar apareceria a Reggina (11,7%). Cosenza (3,9%) e Catanzaro (3,8%) completam a preferência dos calabreses.

Nos anos do êxodo dos sulistas para o norte, a Fiat era a maior indústria do país e se tornou o sonho de trabalho dos habitantes do chamado Mezzogiorno. Essa é uma questão também sedimentada na política do futebol. Foi com o siciliano Pietro Anastasi que a família Agnelli obteve seu melhor representante da classe operária em campo: o jogador serviu para a construção da imagem de um time essencialmente universal, um time-total.

Esse foi o sinal de que o Piemonte era muito mais do que uma região rica, era a caricatura de todo um país. Para fortalecer ainda mais o desejo de vestir a Bota na empresa, o time deveria se tornar a grande potência nacional: é preciso que o torcedor universal veja em si um reflexo da vitória; é preciso deter o paradigma da separação em classes, dos regionalismos; é preciso que se conquiste a cada ano; é preciso que um grande clube também seja todo o espaço, o domínio totalizador da contradição.

O sonho futebolístico da união entre norte e sul era uma harmonia de interesses integrados. Um sentimento republicano exerceria o papel de ponte comum entre aristocratas, industriais, grandes proprietários, pequeno-burgueses e entre aqueles que, até então, não experimentavam esta ebulição patriótica: os “menos” italianos que se estendem por toda a Itália.

Pasolini era um tipo combativo – dentro e fora dos campos (Umberto Pizzi)

É que, para Pasolini, muito além da reestruturação do mito moderno pelas alas progressistas nascidas das ruínas do pós-guerra, o próprio registro de uma entidade nacional parte do princípio de extirpar o caótico de sua expressão. Há um nível abstrato tal dessa soberania do “Ser Nacional” que seria no mínimo ingênuo não relacionar o otimismo republicano com a associação fascista e o patriotismo da “romanidade”, isto é, a ideia de que na superfície (e nem precisamos ir a fundo) há uma exigência de que o “menos” italiano seja o mais italiano possível; ufanismo da ordem e higienismo social.

Em outras palavras, o homem médio italiano torna-se um modelo da cultura que enraíza o delírio da antiguidade imperial na sua subjetividade; ele torna a sociedade decadente uma extensão da herança latina, do passado conquistador dos Césares. As marcas de desejo se apropriam das marcas da propaganda, e os modos de vida se acoplam aos tipos de exportação, dos quais os clubes italianos ficam à sombra – e isso quando não se projetam no gigantismo de Piemonte ou da Lombardia.

“Cada camponês obscuro
tinha abandonado
aquelas suas novas casinholas
como chiqueiros sem porcos
nas clareiras cor de fome,
sob montanhas redondas
à vista da Jônia profética.
Três milênios passaram
não três séculos, não três anos, e se ouvia novamente no ar malárico a espera dos colonos gregos. Ah, por quanto ainda, operário de Milão, vais lutar somente pelo salário? Não vês como estes aqui te veneram?
Quase como um patrão
Te levariam até
a antiga região deles,
frutos e animais, os seus
feitiços obscuros, para depô-los
com o orgulho do rito
nos teus quartinhos século vinte
entre refrigerador e televisão,
atraídos por tua divindade,
Tu, das Comissões Internas,
tu da CGIL; Divindade aliada,
no seguro sol do Norte […]”

trecho de A Profecia, do livro Alí dos Olhos Azuis

Pasolini era movido por paixões, como o futebol e o Bologna (Umberto Pizzi)

Quando Cristo foi calabrês

O Evangelho Segundo São Mateus é uma importante adaptação cinematográfica na carreira de Pier Paolo Pasolini. As gravações ocorreram no sul da Itália, mais precisamente nas regiões da Apúlia, da Calábria e da Basilicata: nenhum outro lugar poderia oferecer uma vista tão antimoderna quanto essas localidades, isoladas no passado agrícola. O distanciamento dos centros oficiais do cristianismo (Jerusalém e Roma) permitiriam a redescoberta de um mundo arcaico dentro do mundo contemporâneo, lugar onde a mão do progresso não chegaria a alcançar. Fazendo parte da modernidade, ao mesmo tempo é a fração esquecida dela. São as fisionomias humanas que pouco a pouco vão compondo a terra inóspita pela qual o santo homem comum será repatriado – e o será por este deserto sem limítrofes com o plano real da contemporaneidade, cada vez menos “real” na sua razão.

O futebol na parte baixa da Bota não chegou a ser nacionalizado. São raros os clubes que tiveram participações de destaque na Serie A – de todos, somente o Napoli está entre os que detêm títulos de escala nacional. Mesmo os partenopei sucumbiram em 2004 e decretaram falência, bem como um bom número de clubes italianos na virada do século. Muitos destes clubes eram do sul e não tinham a infraestrutura minimamente adequada para a disputa das maiores competições do país. Alguns até fecharam as portas por mais de uma vez.

A questão é que a FICG, a Federação Italiana de Futebol, até hoje mantém arregimentado um modelo que não só não oferece suporte financeiro às equipes como se limita basicamente a gerenciar as irregularidades fiscais mais grosseiras dos grupos que administram esses clubes. Naturalmente, os clubes das regiões mais pobres (ou também os falidos das regiões ricas) do país ficam à mercê de gestões que misturam falta de poderio econômico com operações fraudulentas de obtenção de recursos. Sempre que uma empresa de fundo quebra, quebram também os times alinhados a ela.

Como se fosse Rigoletto, a ópera de Giuseppe Verdi, o futebol se converte num espetáculo da mercadoria, mediado pelo universo do marketing; imagens que emergem do estágio mais flutuante da economia italiana e da europeia, e se reúnem também na caracterização da marca “calcio”. Fato é que o futebol, de palanque do fascismo, passa a palco principal da política neoliberal de financeirização do entretenimento, e isto porque o esporte passa a ser visto exatamente como entretenimento – e é aí que é preciso expurgar a derrota.

A badalação dos novos dream teams já em muito se difere das equipes vencedoras das ligas de 20, 30 anos atrás, quando essa modulação iniciava seu processo. O “atleta” do futebol contemporâneo é uma máquina operacionalizada para execução, e tem sob ameaça o prestígio midiático e os altos salários pagos pelos clubes. Pior ainda, boa parte dos clubes vive sob a ameaça do ostracismo ou da falência e recorre ao investimento nas novas promessas da bola. O garimpo interno firma quais, entre tantos, sobreviverão à próxima temporada sem passar por um incontornável – e ás vezes definitivo – empréstimo.

Nos pobres subúrbios italianos, um engravatado Pasolini bate bola com garotos (Quattro Tre Tre)

De alguma maneira, o futebol assume a função de um campo circular de apostas, mas interligado já pela rede de representação extracampo. A imagem de venda de um jogador pertence à valia do clube, é dela que se pode vender também um personagem da marca. Um Adriano – um antiatleta para muito além de um mero personagem – talvez não seja mais possível entre nós.

O universo de Pasolini é um conglomerado de vizinhanças tomando lugar neste espetáculo. Há um movimento contínuo de desmaterialização do ideário do bem comum na metafísica neoliberal, de modo que a sua própria realização não pode passar da esperança do arrebatamento virtual da imagem do homem médio. As formas justapostas da vida são representações de um centro grandiloquente; mas aqui o marginal, o menor, está à espreita do complexo.

Mencionar o “menor” não significa estipular critérios de quantidade ou sobre níveis de proporção populacional; a minoria insiste em todo mundo, é aquela condição que modifica os códigos dispostos, inclusive do futebol. Um desvio é uma criação de novos impossíveis. Menoridade é o que produz diferença, o que altera toda uma dedução sobre a temporada. É como se houvesse um Pippo Inzaghi em cada roupeiro do clube: alguém capaz de deixar a reserva e desequilibrar o meio.

O Messias do Evangelho Segundo Mateus reúne em si a minoridade do mundo, é um Cristo que não faz descer o paraíso, mas que o revela na interioridade do homem. A verdade está lá, a procura não é uma viagem para outras montanhas distantes. É justamente este Cristo em Pasolini que realiza a beatificação do homem comum e apela ao que está nos escombros da Grande Língua, isto é, conclama as histórias que correm na voz coletiva tomada num só corpo:

“ ‘Vindes, benditos de meu Pai, tomai posse do reino que vos está preparado desde a criação do mundo. Pois eu tive fome, e me destes de comer; tive sede, e me destes de beber; era estrangeiro, e me acolhestes; estavas nu, e me vestistes; doente, e me visitastes; no cárcere, e viestes me ver’. Então lhe responderão os justos: ‘Senhor, quando foi que te vimos com fome, e te demos de comer; com sede, e te demos de beber; estrangeiro, e te recolhemos; nu, e te vestimos; doente ou no cárcere, e fomos ver-te?’ E o rei responderá: ‘Em verdade vos digo: o que fizestes a um dos menores desses meus irmãos, a mim fizestes.’ ”
Mateus 25, 34 – 409

Embora fosse torcedor do Bologna, o artista também vestiu a camisa rossoblù do Genoa em suas excursões pelo país (Pasolini Punto Net)

Bologna, o último suspiro

Ah sim… caminhamos com Pasolini para chegar até aqui, depois de longo e nada estreito percurso. Já que tanto falamos de centro, vamos agora concentrar palavras naquele do qual queremos falar.

Pasolini teve de conviver por boa parte da vida com acusações dos mais diferentes níveis: não à toa a versão oficial de sua morte até hoje é cercada de desconfiança pública. Em alguns dos seus poemas o interlocutor é um réu, alguém que deve confessar a própria obra e depô-la à graça dos deuses particulares de seus leitores. Em “Sim, exato, que fazem os jovens…”, a reivindicação do poder de qualquer ordem implica em fazer irromper uma hierarquia: os intelectuais burgueses interpretam, a militância popular representa (no sentido mesmo do teatro):

Somente nós burgueses sabemos ser marginais,
e os jovens extremistas, passando sobre Marx e vestindo-se
no Mercado das Pulgas, não fazem outra coisa senão urrar como generais e engenheiros contra generais e engenheiros.
É uma luta intestina.
Quem na verdade morresse tuberculoso
vestido de mujique, antes dos dezesseis anos,
seria o único talvez a ter razão.
Os outros se dilaceram entre si.

trecho de Teorema

Pasolini, vestido com as cores do Bologna, numa partida contra o time de Bertolucci (Revista Líbero)

É essa razão que é escandalizada pelo poeta-diretor em Teorema, Salò e Porcile. O que se entende por prática e por realização não passa de concessão já mediada pela ideologia; a normalidade é a resignação daqueles que compreendem o mundo, mas aceitando-o na sua miséria, na sua impossibilidade:

– sou como um gato queimado vivo
pisado pelo pneu de uma carreta
enforcado por rapazes numa figueira,

mas ao menos ainda com seis
de suas sete vidas,
como cobra reduzida a pasta de sangue
uma enguia meio mordida

– as faces cavas sob os olhos abatidos,
os cabelos horrivelmente ralos sobre o crânio
os braços magros como os de um menino
– um gato que não morre, Belmondo
que “ao volante de seu Alfa Romeo”
na lógica da montagem narcísica
se destaca do tempo, e aí insere a
Si mesmo:
em imagens que nada têm a ver
com o tédio das horas em fila…
com o lento resplendor de morte da tarde…

A morte não está
em não poder se comunicar
mas em não poder mais ser compreendido.

trecho de Una disperata vitalità

A comunicação está sempre em risco; o futebol de prosa mostra que a emissão da mensagem não garante em nenhuma medida sua recepção, tal como ela fora engarrafada. Um técnico organiza as linhas, mas não impede o “errar” (no sentido mesmo de errante) individual ou coletivo, ele não decide a prática do jogo. Ser compreendido implica numa abertura, porque mesmo a palavra mais negada pode ter lugar no mundo; mas é preciso que a palavra escape, que ela crie percursos que a desloquem da comunicação tática, da simples resposta já datada à toda pergunta: “Sim” ou “Não”. A saída de Pasolini está no mundo, não fora dele. O futebol é a liturgia que liga o homem à sua interioridade; mas tal como a verdade do Cristo do Evangelho Segundo São Mateus, essa interioridade é compartilhada com toda a humanidade. Não há segredo na interioridade: a revelação se dá pela comunhão e o futebol é uma forma crucial de comunhão.

Pasolini chegou a organizar uma equipe de futebol chamada Canta e Attori, que participou de eventos beneficentes nas diversas periferias italianas e que contava com as personalidades da televisão, da música e do cinema: Bernardo Bertolucci, Ninetto Davoli, Franco Citti, Franco Nero, Ugo Tognazzi, Enrico Montesano, Sergio Leonardi, Little Tony, Enzo Cerusico, Philippe Leroi, Max Dean, Antonio Sabato, Tony Santagata, Giorgio Bracardi, Gianni Nazzaro, Maurizio Merli, Stelvio Cipriani, além de Gianni Morandi, seu conterrâneo.

O grupo acabaria colaborando com a origem da Nazionale di Calcio degli Artisti, em 1978, que se tornaria um importante movimento de solidariedade no país, contando com nomes bastante conhecidos como Massimo Troisi, Nino D’Angelo e Carlo Verdone. Pasolini também participou de muitos jogos beneficentes, inclusive vestindo as cores do Genoa num “clássico” fictício contra a Sampdoria.

No estádio Flaminio de Roma, Pasolini dialoga com o amigo Morandi, em partida entre artistas (Umberto Pizzi)

Pasolini, pique de jogador

O ator mais icônico de seus filmes, Franco Citti, chegou a dizer que Pasolini parecia ver Jesus quando conheceu Giacomo Bulgarelli. O gênio meio-campista, maior ídolo do Bologna e herói do scudetto de 1963-64. chegou a ser convidado para participar das filmagens de I Reconti di Canterbury (1972), mas acabou mesmo foi no documentário Comizi D’amore (1964) junto da vencedora equipe felsinea da época.

Pasolini era um assíduo frequentador dos jogos do clube, e também costumava ir aos treinos da equipe para conversar com os jogadores, em especial com o próprio Bulgarelli. “Ele costumava nos visitar durante o treinamento”, contou o meia. “Ele tinha muito desejo de falar de futebol: tentei me rebelar, me interessei por outra coisa, mas ele monopolizou todos os discursos, queria saber tudo sobre o meio em que vivíamos”, completou o capitão rossoblù.

A polêmica Coppa Italia da temporada 1973-74 foi o último grande título nacional do Bologna e também o último de Pasolini em vida. A final contra o Palermo, que disputava a Serie B, ficou marcada por um polêmico pênalti no último minuto, cujo protagonista foi, justamente, Bulgarelli. A equipe siciliana abriu o placar aos 32, com uma cabeçada de Sergio Magistrelli, e dominou completamente o adversário.

Aos 90, depois de um lateral duvidoso cedido pelos rosanero aos bolonheses, a bola foi arremessada até a área e Bulgarelli foi derrubado por Ignazio Arcoleo. O árbitro Sergio Gonella marcou a penalidade, para a ira dos sicilianos. Depois, próprio Bulgarelli chegou a admitir, pela televisão, que cavara a falta. “Foi uma ‘manobra’. O jogo já tinha acabado e só uma cobrança de penalidade podia nos colocar de novo na corrida. Tentei e deu certo”, afirmou.

Pasolini, reflexivo, em primeiro plano (Umberto Pizzi)

Beppe Savoldi empatou para o Bologna e levou a partida para a prorrogação – que, pela manutenção do 1 a 1, levou o jogo aos pênaltis. Nas primeiras cobranças, Bulgarelli converteu para o Bologna e Sandro Vanello para o Palermo. O goleiro Sergio Girardi fez grande defesa na batida de Franco Cresci, enquanto Magistrelli colocou o Palermo novamente na frente pelo título. Na quarta cobrança dos rosanero, o meia Salvatore Vullo perdeu a chance de conquistar a Coppa; em seguida, Eraldo Pecci empatou e Erminio Favalli chutou a bola no travessão, dando o título para os emilianos. Para a alegria de Pasolini.

Bulgarelli se aposentaria em 1975, alguns meses antes do encontro entre Pasolini e o garoto de programa Pino Pelosi, no dia 2 de novembro daquele ano. O corpo do escritor foi encontrado em Óstia (região nos arredores de Roma), com sinais de espancamento e fraturas no tórax, levando a polícia a confirmar a hipótese de atropelamento.

A justiça italiana condenou Pelosi pelo crime confessado, mas depois de cumprida a pena, em 2005, o mesmo desmentiu a versão oficial contada à época do assassinato. Segundo a nova versão do caso, três homens abordaram Pasolini dentro de seu Alfa Romeo e dois deles o agrediram brutalmente até a morte. Pelosi fugiu com o carro e atropelou acidentalmente o cadáver, tendo sido parado pela polícia ainda próximo da região, por excesso de velocidade.

Suspeita-se, desde então, do envolvimento do criminoso Giuseppe Mastini, conhecido pelo pseudônimo Johnny lo Zingaro (Johnny Cigano), e de dois sicilianos extremistas de direita infiltrados na polícia – os irmãos Bosellino, falecidos nos anos 1990. Pelosi faleceu em 2017, sem esclarecer o caso ao público.

Podemos dizer que Pier Paolo Pasolini nos deixa a convicção de que, independentemente do desfecho que assumirmos, trata-se sempre, nesta vida comungada, de um crime político.

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