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Renato Sacerdoti, o presidente da Roma que foi adepto do fascismo e acabou perseguido pelo regime

A jornada de Renato Sacerdoti é daquelas em que o sujeito, dono da trajetória, se confunde com a instituição que representa. Tendo nascido na capital italiana, em 1891, foi um dos fundadores da Roma em 1927 e presidente do clube em dois períodos: de 1928 a 1935 e de 1952 a 1958, pavimentando o início da história dos giallorossi e consolidando a equipe capitolina como uma das maiores agremiações da Itália.

Entretanto, a história de Renato e a sua atuação na presidência da equipe giallorossa não podem ser restritas às quatro linhas, pois estiveram intimamente relacionadas com o momento sociopolítico que a Itália vivia. Eram tempos marcados pela ascensão do fascismo enquanto regime de governo e o constante controle exercido pelo Partido Nacional Fascista (PNF) sobre a prática do futebol no país.

O contexto italiano e os primeiros anos de Sacerdoti antes da Roma

Em 1891, a Itália como um estado-nação unificado existia havia apenas 21 anos e era uma monarquia parlamentarista, cujo governante era o rei Humberto I, da Casa de Savoia. Roma, inclusive, tinha sido o último território anexado pelo reino em 1870 – na ocasião, o próprio papa Pio IX não aceitou plenamente a expansão italiana e passou a se considerar um prisioneiro. Internacionalmente, a Itália estava vivendo o auge da corrida imperialista, contexto em que as potências europeias disputavam territórios na Ásia e, sobretudo, no continente africano, com o objetivo de colonizar essas regiões, encontrar mercados consumidores para escoar suas mercadorias e extrair matéria prima para suas indústrias. Foi justamente nesse contexto que, entre 1895 e 1896, o Reino da Itália promoveu a Primeira Guerra Ítalo-Etíope. Os itálicos tentaram invadir a Etiópia e foram derrotados pelo exército africano.

A derrota na guerra escancarou a realidade de uma Itália que, embora tentasse se inserir no jogo de poder de França, Alemanha, Inglaterra e Império Austro-Húngaro, ainda não contava com a força militar e econômica dessas potências imperialistas. A própria industrialização italiana era limitada e desigual, pois a maioria dos complexos industriais encontrava-se em abundância no norte do país, principalmente nas regiões do Piemonte e da Lombardia, enquanto o sul ainda concentrava uma economia predominantemente agrícola e de muitas terras improdutivas.

É nesse cenário que Sacerdoti nasce, na própria Roma. E, de 1891 em diante, sua história passa a representar também a história de seu país. Membro de uma família tradicional da capital, ainda cedo ingressa no Colégio Militar, onde aprende valores conservadores e militaristas, principalmente o respeito à autoridade.

Um pouco mais tarde, Renato fez parte do próprio exército italiano e lutou na Primeira Guerra Mundial (1914-1918), na qual o então rei Vitor Emanuel III fez a Itália engrossar as fileiras da Tríplice Entente (Rússia, França e Inglaterra), em 1915, após receber promessas territoriais feitas pelos ingleses. Sacerdoti esteve na linha de frente em batalhas contra o Império Austro-Húngaro, ajudando as tropas italianas a lutar por posições estratégicas nos Alpes, como a cidade montanhosa de Cortina D’Ampezzo. Como outros soldados, escrevia sempre que possível para a sua família, relatando as apreensões do campo de batalha e das trincheiras que, naquela região, abrigavam milhares de mortos.

Ao fim da guerra, a Itália recebeu os territórios do Trieste, do Tirol do Sul, de Trentino e da Ístria, considerados insuficientes pelo governo, que desejava mais posses, sobretudo no continente africano. Enquanto a monarquia continuava reivindicando seu lugar no jogo da exploração colonial capitalista e o rei da Casa de Savoia estava intacto, Renato, assim como milhões de soldados, voltava para casa com sérias sequelas da guerra. Uma delas, a bala que ficaria a vida inteira alojada em seu miocárdio, fruto de um disparo que sofreu de um soldado inimigo. A outra, mais dolorosa, foi a morte de seu irmão, Ettore, no front. Os traumas da guerra acabariam por influenciar as posturas políticas e sociais de Sacerdoti e de tantos outros ex-combatentes após a chamada grande guerra.

O “Banqueiro de Testaccio” investiu uma fortuna para ajudar a Roma em sua fundação (Repubblica)

A ascensão do fascismo, que também conquistou Sacerdoti

No pós-guerra, a Itália entrou em uma crescente crise econômica e política combinada com as perdas humanas e a ferida do orgulho nacional, por conta das promessas territoriais não cumpridas por ingleses e franceses. De acordo com os historiadores Federico Chabod e Giuseppe Galasso, em “A Itália Contemporânea (1918-1948)”, o endividamento do governo também tinha crescido absurdamente por conta de uma guerra prolongada, para a qual poucos países estavam preparados – no início do conflito, diversos governantes acreditavam que o confronto duraria pouco. Entre 1913 e 1914, os gastos do estado italiano estavam em 2,501 bilhões de liras e ao final da guerra, de 1918 para 1919, as despesas chegaram a 30,857 bi.

A volta dos soldados para o seu país também se deu de forma bastante traumática, pois muitos se encontraram empobrecidos, sem oportunidades de emprego – já que os postos de trabalho foram ocupados pelas pessoas que não haviam participado do conflito armado –, sem amparo da monarquia e, em um país ainda bastante agrário, sem terras. Foi nesse contexto que jovens da classe média, ex-socialistas e ex-combatentes da guerra, entre eles Benito Mussolini, em 1919, criaram as organizações paramilitares Fasci Italiani di Combattimento (FIC), que foram o embrião Partido Nacional Fascista.

A desilusão com as instituições políticas no Belpaese e a brutalidade da primeira guerra uniram esses grupos em torno de ideais ultranacionalistas, antiliberais, xenófobos, racistas e anticomunistas. O historiador Mark Bray, em seu livro “O Manual Antifascista”, destacou que a visão fascista sobre a política interna era de que “homens de verdade estavam arriscando suas vidas pela nação enquanto parlamentares burgueses medíocres e ‘afeminados’ viviam de forma extravagante, permitindo que os comunistas destruíssem o país”.

Portanto, o fascismo era bastante contraditório em sua origem e Mussolini, ex-membro do Partido Socialista Italiano (PSI), ainda comungava de certos ideais que poderiam ser associados à esquerda, como a defesa de um sindicalismo nacional, que unisse as classes trabalhadoras italianas, camponesas e proletárias, na reconstrução da nação. Isso fez com que muitos trabalhadores de fábricas e das zonas rurais se unissem aos fascistas, mas, na prática, o feixe violento do movimento liderado por Mussolini desceu sobre a cabeça das classes mais empobrecidas.

No chamado Biennio Rosso (o Biênio Vermelho, que durou de 1919 a 1920), aconteceram grandes agitações de camponeses que ocupavam terras e de trabalhadores urbanos que tomavam fábricas e faziam greves. Ali, a esquerda ganhou espaço entre as massas populares de norte a sul, e as elites agrárias e industriais ficaram bastante insatisfeitas com a monarquia parlamentar que tentava negociar com os grevistas ao invés de mandar forças militares para reprimir o movimento. Assim, os camisas negras fascistas ocuparam esse espaço e passaram eles mesmos a reprimir violentamente as manifestações da esquerda, sinalizando uma clara aliança com as as elites.

Os números que Bray detalha a esse respeito são espantosos: “só no semestre inicial de 1921, foram destruídas aproximadamente 119 oficinas de trabalho, 107 cooperativas e 83 escritórios camponeses”. Sindicalistas, operários e trabalhadores rurais também foram espancados e assassinados pelas milícias fascistas. Dessa forma ganhava campo um movimento ideológico de extrema direita, de cunho nacionalista, militarista e anticomunista, de grupos brutalizados pela experiência na guerra e reforçados por uma massa de trabalhadores urbanos e também rurais, que viram no fascismo uma esperança de dias melhores – mesmo que pelo uso constante do terror e da violência.

Durante o Biennio Rosso e o ano de 1921, os fascistas souberam ganhar também o apoio dos proprietários rurais e das elites empresariais, que viam no movimento uma chance de barrar uma possível revolução comunista na Itália e, assim, proteger a sua preciosa propriedade privada – e, consequentemente, os seus lucros. De um grupo de cerca de 100 homens em 1919, os squadristi chegaram a aproximadamente 250 mil membros em 1921, e outros milhares de simpatizantes e apoiadores. Não à toa, o primeiro-ministro liberal Giovanni Giolitti fez coligação com os fascistas nas eleições de 1921, o que lhes rendeu 36 cadeiras no parlamento. Após essa conquista de espaços no poder institucional, Mussolini, ainda em 1921, oficializa o movimento como partido político com a criação do PNF, que somou aos seus ideais extremistas a defesa da propriedade privada – o que agradou ainda mais os liberais.

Nessa massa de pessoas apaixonadas e esperançosas com o projeto de poder fascista estava Renato Sacerdoti, então com 30 anos e imerso no mundo financeiro. Nessa época, ele já atuava como empresário e era dono do Banco Sacerdoti, ficando conhecido em seu meio como o Banqueiro de Testaccio, em alusão ao bairro popular de Roma em que seus negócios estavam sediados. Assim como outros tantos burgueses da época, manifestou claro apoio a Mussolini. Suporte que ficou nítido quando o financista desfilou junto a cerca de 30 mil camisas negras vindos de toda a Itália na conhecida Marcha sobre Roma, em 28 de outubro de 1922. O movimento ocupou a Cidade Eterna com uma exigência: que o rei Vitor Emanuel III convocasse o líder fascista para a posição de primeiro-ministro, o que de fato aconteceu dois dias depois.

O fascismo chegava ao poder, pronto para colocar em prática o seu programa político, e Sacerdoti deu a sua contribuição – da qual costumava se orgulhar. O fato contraditório é que o banqueiro era judeu e, mesmo que em 1922 o PNF não assumisse abertamente um caráter antissemita, já abraçava ideais xenófobos e de supremacia racial. Em algum momento isso resultaria em perseguição à comunidade judaica italiana, mas Renato acreditava que sua influência financeira, seu apoio e sua proximidade a vários membros do PNF formavam um conjunto de fatores que lhe blindaria contra qualquer possível ameaça.

Por conta de investimentos e inovações, Sacerdoti ganhou respaldo da torcida romanista (Arquivo/AS Roma)

A fundação da Roma em um contexto de reestruturação do futebol controlado pelo fascismo

Estabelecido no poder, o fascismo passa a concretizar seu programa, que estava baseado e uma concepção totalizante de sociedade. O partido desejava conquistar corações e mentes, além de se fazer presente em todos os âmbitos, exercendo um forte controle nas mais diversas áreas, como na educação, nos espaços de lazer, cultura e, mais especificamente, no esporte – leia aqui o nosso especial sobre o assunto. Nas décadas de 1920 e 1930, Mussolini teve um constante papel duplo no futebol, que consistiu em reformular o esporte de acordo com a perspectiva fascista e se utilizar da prática como meio de propaganda e difusão da ideologia do regime político.

O futebol moderno se instalara na Bota desde o final do século XIX. Os primórdios do esporte tiveram forte influência britânica, como mostra a fundação do Genoa, em 1893, por imigrantes vindos da Grã-Bretanha – inicialmente, o clube mais antigo do país proibia até a atuação de italianos em seus quadros por se considerar uma agremiação britânica em solo italiano.

O esporte foi se consolidando com mais força no norte, onde havia diversas rotas comerciais e um destacado crescimento industrial, sobretudo em Turim e Milão. Nestas cidades nasceram times economicamente mais fortes, como o Milan, fundado por homens de negócios e a Juventus, que no início da década de 1920 foi assumida pela Fiat. O monopólio nortista fez com que os primeiros Campeonatos Italianos, que eram disputados em grupos regionais, fossem conquistados apenas por clubes do Piemonte, da Lombardia e da Ligúria. Apenas em 1929, com o triunfo do Bologna, da Emília-Romanha, essa sequência foi quebrada.

Na década de 1920, o PNF enxergou o futebol como uma ferramenta para mobilizar multidões em todo o país e começou a utilizar o esporte como um meio para alcançar a sonhada unificação da população italiana em torno da identidade fascista – não só em termos de governo, mas de sociedade. Em 1926, a Federação Italiana de Futebol (FIGC) passou por uma crise e a liga de clubes do norte repassou a organização do futebol para o Comitê Olímpico Italiano (Coni), que era presidido por Lando Ferreti, membro do PNF indicado por Mussolini para o cargo. A partir daí, os fascistas concentraram amplos poderes para intervirem na reorganização da modalidade nacional, já que o Coni (subordinado ao PNF) indicava nomes para a presidência da FIGC e até mesmo de clubes.

Além dessa reestruturação institucional, são bastante conhecidas as interferências do governo para organizar a Copa do Mundo de 1934 com a Itália como sede e a utilização do título como propaganda do fascismo como um regime de sucesso. Também entraram para a história as ameaças de Mussolini aos jogadores da seleção: em 1938, chegou ao vestiário da Nazionale um telegrama com a frase “vencer ou morrer”. No mesmo Mundial, a Squadra Azzurra foi obrigada a disputar as quartas de final com camisas pretas, em referência explícita ao uniforme dos esquadrões da morte fascistas.

Os próximos passos do regime após concentrar o poder no Coni seriam profissionalizar o futebol na Bota e fortalecer os clubes do centro e do sul do país. A primeira etapa veio com a elaboração da Carta de Viareggio, que, além de instituir o profissionalismo do futebol, também criou duas divisões em um campeonato que passaria a ser nacional. Assim, a Liga do Norte e a Liga do Sul se esfacelaram, em prol de uma competição que não tivesse a divisão regional como uma de suas características, já que isso iria contra a ideologia nacionalista do Duce e de seu partido. O estatuto também tinha outro artigo de teor nacionalista e também xenófobo: proibia estrangeiros de jogar pelos clubes da Itália, a não ser que fossem filhos de italianos.

O fortalecimento artificial dos times do centro e do sul veio com o estímulo do governo para que clubes pequenos de cidades como Florença, Nápoles e Roma se fundissem, juntando forças para enfrentar os poderosos times do norte. Assim, em Florença, Libertas e Firenze se uniram para formarem a Fiorentina, enquanto o processo também aconteceu de forma semelhante na capital. Em 1927, três clubes passaram por um processo de fusão: a Fortitudo Pro Roma, presidida por Italo Foschi, então secretário da Federação Romana no PNF; Alba Audace, liderada por Ulisse Igliori; e o Football Club di Roma, do qual Renato Sacerdoti era dirigente.

O articulador da fusão foi o fascista Italo Foschi, que obteve apoio e auxílio de outros representantes do partido, como Leandro Arpinati, presidente da FIGC indicado para o cargo por Mussolini; Augusto Turati, secretário do PNF; e Umberto Guglielmotti, vice-presidente da Assessoria de Imprensa e Propaganda do PNF e que, em 1924, havia criado a revista Roma Fascista juntamente com Foschi. Ainda foi tentada uma articulação com Giorgio Vaccaro, general fascista e presidente da Lazio, clube ao qual o Duce era filiado, para que a agremiação celeste também fizesse parte da fusão, mas Vaccaro se opôs à proposta.

Nessa operação fascista, Sacerdoti teve papel fundamental, entrando como o grande financiador do clube que estava nascendo. O Banqueiro da Testaccio fazia parte de um grupo de investidores pertencentes à rica comunidade judaica de Roma que, a partir de 1919, tinha passado a patrocinar o Football Club di Roma ou Roman, como era popularmente conhecido. Renato entrou de forma entusiasmada no projeto que fundou a Associazione Sportiva Roma, desembolsando uma quantia de 500 mil liras para investimento no clube e utilizando de sua influência para conseguir um empréstimo adicional de 50 mil liras do Banco Crostarosa, pertencente a outros investidores ligados ao Roman.

Com isso, o financista se tornou a pessoa por trás da fundação da Loba capitolina e obteve os postos de gestor das finanças do time e de vice-presidente, enquanto a presidência ficaria com Foschi. Nascia ali, motivada pelas reformas fascistas do futebol italiano, uma grande paixão entre o pai fundador e a sua criatura.

De festejado à pária: Sacerdoti ajudou o regime fascista a se estabelecer e depois foi atacado pelos antigos aliados, o que afetou a Roma (Arquivo/AS Roma)

A presidência e o início promissor

Em 1928, Foschi deixou a presidência da Roma para se dedicar às atividades políticas em La Spezia, como membro do diretório federal da cidade. A partir daí, o cargo máximo do clube foi herdado por Sacerdoti, que ficaria até 1935 no comando dos giallorossi. Já em seu primeiro ano como manda chuva, a Roma, em uma melhor de três jogos contra o Modena, conquistou o primeiro título de sua história, a Copa Coni, organizada com 14 participantes – times que não avançavam para a fase final da Serie A. Para um clube com um ano de existência, era um início promissor. E viria mais: em 1929, foi inaugurado o Campo Testaccio, com capacidade para 20 mil pessoas. O estádio em que a Roma mandaria os seus jogos até 1940 foi construído com boa parte do capital investido pelo próprio presidente.

Renato também foi ativo nas contratações de grandes jogadores. O presidente tinha o objetivo de formar elencos competitivos, com nível suficiente para conquistar o título nacional, a grande obsessão da Loba. Na sua gestão, para a temporada 1928-29, foram contratados o atacante Rodolfo Volk e o meia Fulvio Bernardini, que se tornariam ídolos romanistas ao lado de Attilio Ferraris, que já estava no plantel desde a fundação. Aquele esquadrão ficaria com a terceira colocação no campeonato nacional ao fim da temporada e, em 1930-31, conseguiria um honroso vice-campeonato, ficando atrás somente da poderosa Juventus de Raimundo Orsi e Renato Cesarini, que iniciava o glorioso Quinquennio d’oro.

Nas temporadas seguintes, os bons resultados acabaram não se repetindo, mas não por falta de esforços de Sacerdoti. Em 1933, persistindo na obsessão de superar a Lazio e de transformar a Roma na primeira equipe a levar o título da Serie A para a região central do país, aproveitou-se da brecha da Carta de Viareggio em relação aos estrangeiros filhos de italianos, vendeu o artilheiro Volk e efetuou a contratação de três jogadores que vinham da Argentina: Enrique Guaita e Alejandro Scopelli, do Estudiantes de La Plata, e Andrés Stagnaro, do Racing.

A recepção dos jogadores em Roma foi calorosa, com direito a comemoração da torcida giallorossa em seu desembarque na cidade. Não era para menos. Guaita carregava um histórico de peso: El Indio, como era chamado, já colecionava 33 gols em 65 partidas pelo Estudiantes e já tinha sido convocado pela seleção argentina. Enquanto os romanistas festejavam, Mussolini bufava. O Duce ficou furioso com as contratações feitas pela Roma, por diversos motivos: eram estrangeiros e um deles tinha um apelido que fazia referência direta a uma etnia diferente do padrão racial fascista. Além disso, eram bons jogadores e, para completar, dois anos antes, Guaita e Scopelli haviam recusado uma proposta da Lazio, time amado pelo ditador.

Entretanto, mesmo com boas temporadas de Guaita, que marcou 14 gols em 1933-34 e outros 28 em 1934-35, a Roma nem mesmo igualou a boa campanha de 1930-31 – ocupou a quinta e a quarta colocação na tabela, respectivamente. Apesar disso, não há como negar que, para um clube recém-criado, as boas campanhas na primeira divisão nacional, a construção do Campo Testaccio, a formação de esquadrões memoráveis e compostos por ídolos, como Volk e Ferraris, e o acerto com lendas, como Bernardini e Guaita, fizeram da primeira gestão de Sacerdoti um marco na história giallorossa.

Não à toa, o primeiro hino do clube, entoado por sua fanática torcida naqueles tempos em que a loba jogava no Testaccio, tem em sua parte final um sinal do amor dos romanistas pelo presidente. “Somos giallorossi e todos os adversários o saberão. Enquanto Sacerdoti estiver perto de nós, sempre nos orgulharemos, nossa Roma brilhará”, lia-se nos versos. Entretanto, em 1935, o presidente não poderia fazer o que a torcida romanista cantava e iria, não por escolha própria, afastar-se de seu clube.

Durante os anos em que se afastou da loba capitolina, Sacerdoti teve de lutar pela própria vida (Arquivo/AS Roma)

A perseguição fascista

No primeiro semestre daquele ano, Sacerdoti foi acusado de utilizar dinheiro ilícito vindo do exterior na compra de jogadores, o que repercutiu na imprensa, que já não tinha uma boa relação com o banqueiro principalmente por conta do antissemitismo, que já era forte na Itália mesmo antes da subida do PNF ao poder. No pós-guerra, a comunidade judaica era vista como um grupo de parasitas que prosperavam financeiramente em meio ao caos social na Península Itálica e tais estigmas se fortaleceram durante o regime ditatorial.

Dessa forma, os jornais alinhados ao PNF começaram a veicular a notícia de que o presidente romanista era mais um “contrabandista judeu”. De acordo com o relatado no livro “Mussolini contra o presidente”, do jornalista Adam Smulevich, os periódicos iniciaram uma campanha de difamação repleta de um bizarro conteúdo antissemita, pintando a personalidade do banqueiro com características absurdas. Para as publicações, Sacerdoti era um rico judeu com “travessura diabólica fundada pela atitude tipicamente judaica de subornar com dinheiro, flagrada pela sagacidade da polícia italiana”.

O fundador da Roma foi obrigado a renunciar ao seu posto no clube, porque a partir dali seus próximos meses seriam de comparecimentos aos tribunais, na tentativa de provar sua inocência. Condição que, evidentemente, já estava descartada antes de qualquer julgamento, uma vez que a Itália não tinha um regime democrático. Os órgãos públicos relataram de modo seco sua renúncia. No dia 3 de junho, a Federação dos Fasci di Combattimento de Roma, como era chamada a administração política local, comunicou: “O fascista Renato Sacerdoti, presidente da Roma, tendo cumprido a ordem que lhe foi dada, renunciou ao seu mandato”. Renato foi preso e confinado por quase cinco anos. Nos meses seguintes ao seu afastamento, antes de ser preso, o seu time sofreu ataques diretos do governo.

O PNF aprofundava a sua política expansionista, movendo uma guerra de invasão contra a Etiópia, antigo desejo territorial da Itália. O conflito que ficaria conhecido como a Segunda Guerra Ítalo-Etíope se iniciou em outubro de 1935 e se estendeu até maio de 1936. Mussolini aproveitou a iminência da invasão para trabalhar com uma poderosa arma: a desinformação. O Duce espalhou o boato de que os três oriundi da Roma (Stagnaro, Guaita e Scopelli) seriam recrutados para lutar na guerra pelo exército italiano.

Caso isso ocorresse, a rival albiceleste – reforçada por Sacerdoti com os campeões mundiais Luigi Allemandi e Eraldo Monzeglio – ficaria enfraquecida. Ao mesmo tempo, poderia acabar com qualquer celebração a Guaita como herói nacional. Embora ele tivesse sido convocado por Vittorio Pozzo e vencido a Copa de 1934, era cada vez menos bem vista pelos fascistas a presença de um jogador latino-americano com tom de pele que certamente não era branco, visto os apelidos de El Indio e Corsário Negro.

No dia 19 de setembro de 1935, em visita do elenco giallorosso a um quartel militar para prestigiar as tropas italianas, os oriundi tomaram conhecimento da possibilidade de servirem na guerra e deram início a um plano de fuga que culminou em sua volta para a Argentina e, naturalmente, em perdas para a Roma. A verdade é que, por terem o status de jogadores de futebol, os romanistas não lutariam no conflito. Mas eles deveriam pagar para ver?

Os anos que se seguiram e viram a violência política fascista se aprofundaram. Durante a invasão da Abissínia, a Liga das Nações – órgão internacional de países que antecedeu a ONU e tinha como objetivo evitar conflitos mundiais – se posicionou de forma contrária à Itália, o que isolou o país politicamente. No entanto, o fascismo de Mussolini obteve o apoio de outro regime semelhante: o nazista, comandado por Adolf Hitler na Alemanha. A partir daí, os dois ditadores cultivariam uma aliança que seria firmada oficialmente em outubro de 1936, com a assinatura do tratado de amizade em solo alemão, no que ficaria conhecido como o Eixo Roma-Berlim.

Para Sacerdoti e para qualquer outro judeu que vivia na bota, essa união foi devastadora. A partir daí, o Duce, encantado pelo Führer, adotou explicitamente a perseguição à comunidade judaica como um programa sistemático de governo, que resultaria no Manifesto da Raça, promulgado em julho de 1938. O documento foi assinado por cientistas de diversas áreas, mas que compactuavam de um mesmo cabedal de doutrinas, que se encaixam no chamado darwinismo social.

As ideias que contemplam esse conjunto de teorias tinham surgido no século XIX e defendiam que a sociedade humana era dividida em diferentes raças de diferentes níveis, sendo que os europeus constituíam uma raça superior a qualquer outra. Dessa forma, italianos fascistas se consideravam pertencentes à raça ariana, considerada pura. Enquanto tal, deveriam se livrar de qualquer outro grupo étnico impuro ou inferior – incluídos aí negros, ciganos e judeus.

Em setembro de 1938, o arianismo fascista seria ratificado com a promulgação das Leis Raciais. Em suma, a legislação proibia judeus de serem proprietários de empresas, lotes de terra, de assumir cargos públicos e de se casar com pessoas de qualquer outra religião. A partir desse momento, tornaria-se mais comum o espancamento de judeus nas ruas, a depredação de lojas e estabelecimentos da comunidade e o encarceramento de quem não se enquadrasse dentro das leis.

Tentando sobreviver, Renato Sacerdoti começa um jogo de gato e rato com o regime que tanto tinha apoiado e que, absurdamente, continuou a exaltar, mesmo confinado. No final de 1937, até antecipando a onda de perseguição que viria contra a comunidade judaica no ano seguinte, o empresário, já casado com Leopoldine Madlo e com os três filhos batizados, converte-se ao catolicismo, numa tentativa de escapar da perseguição. Assim, continuava manifestando total apoio a Mussolini em cartas particulares enviadas ao Duce. O que o ex-presidente romano não imaginava era que o entendimento que basearia a grande bota esmagadora do fascismo sobre os judeus não seria apenas religioso, mas, sobretudo, racial. A partir desse ponto de vista, aderir ao catolicismo apostólico romano não faria dele um ex-judeu. Etnicamente, Sacerdoti continuaria um semita e, como tal, deveria ser execrado.

Sacerdoti estava em pedaços: confinado, afastado do seu amado clube, traído pelo grupo político-ideológico do qual tinha sido um militante ativo, renunciado à sua religião de origem e com medo, muito medo. Em uma de suas cartas, disponível no Arquivo Central do Estado na Itália, chegou a destacar para Mussolini as suas virtudes patrióticas e sua estreita afinidade histórica com o movimento de extrema direita, implorando para que fosse de alguma forma útil para o regime: “Soldado desde os 17 anos, participei de todas as nossas guerras e saí ferido e honrado pelo valor. Voluntário na guerra da Etiópia, fascista desde os anos 1920, membro dos squadristi e participante em armas na Marcha sobre Roma. Peço-lhe que me permita que os próximos eventos me encontre no meu posto de combate”. Seus esforços foram inúteis: a humilhação é o último estágio ao qual o fascismo condenava os seus perseguidos antes de enviar-lhes ao matadouro.

A partir das leis raciais de 1938, o cerco foi cada vez mais se fechando. Sacerdoti era o estereótipo perfeito do judeu parasita, imoral e impuro que a propaganda do PNF queria inculcar na opinião pública: tinha feito muito dinheiro no sistema financeiro, era presidente do clube rival da Lazio de Mussolini, contratara os oriundi considerados traidores da pátria e tinha sido preso por movimentação ilícita de moeda. O banqueiro fugiu do confinamento, teve que se esconder e só escapou de ser deportado para um campo de concentração nazista durante a guerra porque, em 1943, refugiou-se em um convento se disfarçando de frade, na Igreja de São Pedro em Montorio.

O romano teve a sorte que outros não tiveram. Como Raffaele Jaffe, também judeu italiano e presidente do Casale, time da região do Piemonte, que foi preso por milícias fascistas e enviado para o sanguinário campo de Auschwitz, onde morreu em agosto de 1944, asfixiado em uma câmara de gás. Ou o húngaro Árpád Weisz, que fora técnico de Inter e Bologna até fugir do país por causa das leis raciais. Weisz foi preso pelos nazistas na fronteira entre Alemanha e Países Baixos e também morreu em Auschwitz, em janeiro de 1944.

Os anos que viriam seriam de amargura. Apesar disso, a Roma conquistou a Serie A em 1942, tendo como um dos seus destaques o grande goleiro Guido Masetti, que tinha sido contratado por Sacerdoti. Outros ídolos daquele time eram o italiano Amedeo Amadei, o albanês Naim Krieziu, o argentino Miguel Ángel Pantó, que formavam um poderoso trio ofensivo. Vale destacar que os estrangeiros podiam atuar no campeonato porque Pantó era descendente de italianos e Krieziu nascera num país que era reclamado pela Itália e que, por isso, tinha sido invadido por Mussolini.

O sonho pelo qual Sacerdoti tanto tinha trabalhado em sua gestão no clube tinha se realizado. Mas a que custo? A Itália estava banhada em guerra e a sua vida estava em risco. Ainda nessa época, Renato também perdeu a esposa e um filho. O título chegou num período em que havia poucos motivos para comemorá-lo. Ou nenhum.

Em sua segunda passagem pela presidência da Roma, Sacerdoti contratou o botafoguense Dino da Costa (Arquivo/AS Roma)

Roma: o retorno

Após sobreviver à Segunda Guerra Mundial, ver o nazifascimo ruir e Mussolini ser fuzilado e pendurado de ponta-cabeça em praça pública, Sacerdoti voltou a se dedicar à Roma. Em 1949, voltou a ser vice-presidente do clube e trouxe algumas inovações para a administração, como a implementação de um cartão vitalício: o torcedor que contribuísse com um determinado valor teria direito de voto nas assembleias e de ingressar no estádio, Era um sistema bem semelhante aos programas de sócio-torcedor que conhecemos atualmente.

No entanto, já na temporada 1950-1951, a Roma experimentaria o inédito e vexatório rebaixamento para a Serie B. Por clamor popular, Sacerdoti voltou a ocupar a presidência giallorossa e obteve sucesso na gestão que levou o time de volta à elite já em 1952. Na ocasião, indicou nomes para o conselho de administração  do clube sem nenhum obstáculo e reduziu o déficit orçamentário da agremiação de 141 para 46 milhões de liras.

Nas temporadas seguintes, a Roma de Renato se firmou como um clube sólido e de boas campanhas. O presidente fazia questão de deixar clara a sua paixão pelo cargo e pela instituição, cultivando um laço de confiança e de esperança juntamente à torcida. Como em 1953, quando articulou a chegada do uruguaio Alcides Ghiggia, campeão do mundo três anos antes, e anunciou a contratação para alguns torcedores presentes em Testaccio de forma bastante espirituosa. “Há algumas horas, antes de estar aqui com vocês, fui informado que um dos maiores jogadores do mundo vestirá a gloriosa camisa da Roma. Tem o mesmo nome do nosso querido primeiro-ministro [Alcide De Gasperi]. É Alcides Ghiggia, campeão mundial com a seleção do Uruguai”, contou. E, claro, levou a torcida à loucura.

Mesmo com a sensação uruguaia, a Roma não conseguiu conquistar o título nacional até o fim da gestão de Sacerdoti, em 1958. Durante esse período, porém, o time da capital fez boas campanhas e contou com um elenco recheado de outros ótimos jogadores, como Egisto Pandolfini, Carlo Galli, István Nyers e o brasileiro Dino da Costa. Entre o retorno à elite e 1958, apenas em 1956-57 a Loba não ficou entre os seis primeiros colocados na classificação. Em 1954-55, inclusive, os giallorossi conquistaram um satisfatório terceiro lugar. Campanhas positivas para um período de grande domínio do incrível Milan de Cesare Maldini, Nils Liedholm e Gunnar Nordahl e da forte Inter de Lennart Skoglund, Benito Lorenzi e do próprio Nyers.

Em 1958, Sacerdoti precisou se afastar da presidência do clube para fazer uma cirurgia ocular, mas ocupou cargos como dirigente romanista até 1967. Portanto, fez parte das conquistas da Copa das Feiras (precursora da Copa Uefa), em 1961, e da Coppa Italia, em 1964. O dirigente morreria em 1971, já afastado das atividades administrativas do clube e prestes a completar 80 anos, deixando um legado imenso e muito reconhecido pela torcida.

Além de ter sido um dos fundadores da Roma, Sacerdoti é o segundo presidente mais longevo da história do clube, com 13 anos – atrás apenas de Franco Sensi, que comandou a agremiação por 15 anos. De uma forma ou de outra, Renato manteve vínculos estreitos com a Loba por quase meio século, desde a sua fundação, em 1927, até 1967. A filha, Mariella Sacerdoti, em entrevista concedida ao site La Roma 24, em 2016, vaticinou: “Papai era, e ainda é, meu grande amor… E o grande amor do meu pai era a Roma”. Ela também lembrou que, quando a Roma perdia, o silêncio reinava na casa da família. Quando o time vencia, no entanto, era o momento de aproveitar o bom humor do banqueiro para lhe pedir alguns mimos.

Tendo engrossado as fileiras fascistas e sendo posteriormente traído e perseguido pelo movimento, Renato Sacerdoti viveu uma vida de arrependimento no pós-guerra: nesse momento da vida, tentou se dedicar ao máximo à família e ao seu clube do coração. Em última instância, a vida do ex-presidente romanista ratifica quanto o esporte e a política são indissociáveis e, principalmente, foi um exemplo de como o fascismo pode ser contraditório e operar até mesmo contra aqueles que o apoiam, desde que sejam vistos em algum momento como bode expiatório. Nas palavras do filósofo italiano Umberto Eco, em seu texto “Ur Fascismo”, a nefasta ideologia tem um quê de eternidade, no sentido de sempre estar à espreita, esperando o momento oportuno para tomar as instituições e se apoderar da sociedade civil.

De tempos em tempos podemos ver algumas de suas garras aparecendo. Como em 2017, quando um grupo de ultras de extrema direita da Lazio fabricou e espalhou adesivos de Anne Frank (adolescente judia vítima do Holocausto, com apenas 15 anos) com a camisa da Roma no entorno do estádio Olímpico, com o objetivo de provocar organizadas rivais – nos últimos anos, tem crescido o número de torcedores neofascistas nas arquibancadas aurirrubras. Entre ultras de extrema direita, chamar outra torcida extremista de judia é uma forma de insultar o adversário.

Essa foi apenas uma das mais explícitas demonstrações recentes de antissemitismo que mostram o quanto o imaginário e as práticas fascistas ainda estão presentes no cotidiano das pessoas que vivem na Itália e em muitos países ao redor do mundo. Histórias como a de Renato Sacerdoti são muito importantes para evidenciar o que o flerte e a defesa de tais ideais podem gerar. E, principalmente, para que não mais se alimente dúvidas quanto à necessidade de se posicionar de forma contrária a qualquer semente que possa engendrar o fascismo, por mais inocente ou caricata que ela pareça ser.

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