No dia 4 de julho de 1954, no Estádio Wankdorf, em Berna, cerca de 60 mil espectadores testemunharam um dos resultados mais chocantes da história do futebol. A poderosa seleção da Hungria, campeã olímpica e invicta há 32 partidas, abriu 2 a 0 diante da Alemanha, mas acabou derrotada por 3 a 2, justamente no jogo mais importante do planeta: a final da Copa do Mundo.
A perda do título de maneira surpreendente foi o início do fim de uma das gerações mais talentosas que alguém já viu em um campo de futebol. O “Time de Ouro” da Hungria não venceu o Mundial, mas revolucionou por completo o esporte – e quebrou alguns paradigmas. No centro desse esquadrão, um talentoso jogador, nascido em Budapeste no ano de 1922: Nándor Hidegkuti talvez não tenha concentrado os holofotes em si, tal qual alguns outros craques daquela seleção, como Ferenc Puskás. No entanto, sem ele, a Hungria jamais teria atingido o status de imbatível.
Como jogador, Hidegkuti foi pioneiro na função de “falso centroavante”. Em uma época na qual as equipes insistiam em espelhar o esquema tático WM, o húngaro desnorteou adversários com sua movimentação peculiar. Através dela, abria espaços jamais vistos no campo para seus companheiros. Se o faro de goleador não era tão aguçado quanto o de alguns colegas, sua qualidade técnica e passes precisos o diferenciavam de qualquer outro atacante comum.
Após glórias e traumas no futebol húngaro (de clubes e seleção), Hidegkuti investiu na carreira de treinador. E foi na Itália que ele deu seus primeiros passos na função. No banco da Fiorentina, ao lado de Giuseppe Chiappella, conseguiu uma dobradinha de títulos, em 1961. As conquistas foram o ponto de partida para uma década mágica em Florença, na qual a Viola ainda se sagraria campeã italiana pela segunda vez. Portanto, seja no campo ou à beira dele, Nándor deixou seu legado vitorioso.
Início de carreira e primeiros passos na seleção
Nascido em 3 de março de 1922, Nándor Hidegkuti conciliava o futebol com o trabalho em uma fábrica durante a adolescência. Aos 20 anos, o húngaro deixou o Gázművek, da segunda divisão do país natal, para atuar no Elektromos e, depois, no Herminamezei, equipes que já não existem mais. No entanto, o atacante somente conseguiu se destacar em 1945, quando assinou com o MTK Hungária, da elite. Neste time, o atacante passaria o restante de sua carreira.
Os tempos eram difíceis, pós-Segunda Guerra Mundial, e o MTK trocou de nome três vezes, antes de retomar a alcunha original em 1956. A primeira mudança aconteceu em 1949, quando a Hungria se tornou uma nação comunista, e o clube acabou tomado pela polícia secreta do país. Entre Textiles, Bástya e Vörös Lobogó (todos esses, nomes dados ao MTK Hungária), Hidegkuti foi vencendo taças e se consolidando como um dos principais nomes do futebol húngaro. Sua primeira aparição com a camisa nacional foi em 1945, em amistoso contra a Romênia que terminou 7 a 2 para a Hungria. Nándor marcou dois gols nesse jogo. Contudo, ainda demorou alguns anos para alcançar o patamar de titular.
Apesar de ter sido vice-campeã da Copa do Mundo de 1938, na França, foi preciso uma revolução no período pós-guerra para que o país mantivesse (e, posteriormente, elevasse) o bom nível em campo. O responsável pelo crescimento da Hungria foi Gusztáv Sebes. O treinador assumiu a seleção em 1949, mas foi em 1952 que o mundo começou a conhecer o potencial daquele esquadrão. Antes disso, em 1950, os magiares, assim como os times de outras nações socialistas, decidiram não disputar as eliminatórias para a Copa, realizada aqui no Brasil. Foi neste mesmo ano de 1950, porém, que uma longa invencibilidade começou a ser forjada no Leste Europeu.
Em primeiro lugar, Sebes revolucionou a preparação física dos atletas. Com direito a um treinamento militar, o comandante instaurou o pré-aquecimento no campo de jogo, enquanto o adversário ainda se aprontava no vestiário. Muitos atribuem a isso o fato da Hungria sempre começar as partidas em alta intensidade, o que proporcionava muitos gols no início dos duelos. Tendo como base o poderoso Honvéd, rival do MTK de Hidegkuti, o treinador repetia com exaustão as jogadas nos treinamentos. Tanto no aspecto físico quanto tático, Sebes foi pioneiro e incentivou verdadeiras inovações no futebol. Também é possível dizer que seu sistema de jogo precedeu o famoso Carrossel Holandês, da Copa de 1974.
Fato é que o técnico tinha verdadeiros craques à disposição. É o caso de Puskás, Zoltán Czibor, Sándor Kocsis e o próprio Hidegkuti. Com material humano de qualidade, Sebes criou uma adaptação do já difundido esquema WM. Ao invés de atuar com dois atacantes, o comandante “inverteu” o M e montou sua equipe com uma linha de três à frente, dando origem ao WW. No entanto, a peça central deste trio não guardava posição de centroavante. Este era, justamente, Nándor.
Com muita técnica e, principalmente, inteligência, ele recuava no campo, atraindo a marcação. Ora, ninguém esperava que o atacante central fosse sair de sua posição. Com isso, o espaço de em que ele se deslocava ficava aberto, com um zagueiro a menos na contenção. Era nessa brecha que os outros jogadores ofensivos se colocavam para receber os passes e finalizar.
A estratégia era implacável e inédita. Com ela, a Hungria logo adquiriu um poderio ofensivo assombroso. A primeira prova de que um “monstro” havia sido criado se deu na Olimpíada de Helsinque, em 1952. Em cinco jogos, os húngaros marcaram 20 gols, com direito a um sonoro 6 a 0 na Suécia, então campeã olímpica. Hidegkuti balançou as redes uma vez nessa partida. Já na final, vitória por 2 a 0 diante da Iugoslávia e medalha de ouro garantida. Ao longo da incrível sequência de 32 partidas sem derrota, a Hungria anotou 146 tentos, o que representa uma média surreal de 4,56 bolas na casinha por duelo.
Apesar do papel importante na conquista olímpica, Hidegkuti ainda não era um titular absoluto. Na verdade, isso só foi acontecer pouco tempo após os Jogos Olímpicos. Ainda em 1952, o camisa 9 da seleção entrou em uma partida da Copa Internacional com o placar adverso frente à Suíça. Todavia, em cerca de meia hora, ele conseguiu ajudar os companheiros a transformar uma derrota por 2 a 0 em vitória por 4 a 2. A partir daí, seu status começou a mudar. No ano seguinte, a Hungria venceu a competição, que durava cinco temporadas, após uma vitória por 3 a 0 diante da Itália, no Estádio Olímpico de Roma – com direito a mais um gol de Hidegkuti.
O brilho no “Jogo do Século”
Apesar de já ser um jogador extremamente importante para o sistema magiar, Hidegkuti só alcançou o estrelato em 1953. Um ano após o ouro olímpico, a seleção húngara havia sido convidada para uma partida amistosa contra a Inglaterra. Os autointitulados inventores do futebol tinham a tradição de desafiar as seleções mais badaladas para, teoricamente, sustentar sua superioridade no esporte. Entretanto, em 23 de novembro de 1953, em Wembley, Nándor provou que a tese dos ingleses era furada.
O duelo foi promovido como o “Jogo do Século”. E o craque húngaro precisou de apenas 45 segundos para deixar sua primeira bola na rede. A Inglaterra até igualou o marcador, mas não conseguiu segurar a alta intensidade dos magiares. Sem ver direito a cor da bola, a seleção anfitriã foi humilhada pelo placar de 6 a 3, deixando quase 100 mil espectadores ingleses perplexos. Hidegkuti anotou uma tripletta na partida que marcou a primeira derrota doméstica da Inglaterra para uma seleção não britânica.
Por falar em tripletta, Hidegkuti também tem no currículo o feito de ser o primeiro jogador a marcar três gols em uma só partida da Copa dos Campeões. Em 1955, quando o MTK se chamava Vörös Lobogó, ele guardou um hat-trick contra o Anderlecht, da Bélgica.
Mas, voltando para o “Jogo do Século”, naquele momento, diante da Inglaterra, Hidegkuti chegou ao ápice de sua carreira. Não contente com o papelão diante da própria torcida, os ingleses decidiram marcar uma revanche para o ano seguinte, às vésperas da Copa do Mundo de 1954, disputada na Suíça. Dessa vez, em solo húngaro, o vexame foi ainda pior: 7 a 1 a favor dos comandados de Sebes. Nándor, novamente, deixou sua marca, anotando um dos gols. Diante de mais esse atropelo, não tinha como ser diferente: a Hungria era a favorita ao título mundial. Afinal, os Mágicos Magiares não perdiam desde 1950.
Drama na Copa do Mundo
O grande pecado para esta lendária geração húngara se deu, justamente, no palco mais importante do futebol mundial: a Copa do Mundo. A caminhada inicial da Hungria no Mundial até foi bastante positiva. Primeiro, vitórias na fase de grupos por 9 a 0 e 8 a 3 sobre, respectivamente, Coreia do Sul e Alemanha Ocidental – que atuou sem muitos titulares.
Nas quartas de final, a “Batalha de Berna”, contra o Brasil. Em um jogo extremamente violento, e com direito a três expulsões, a Hungria se saiu melhor e venceu por 4 a 2. Até aquele momento, Hidegkuti tinha três gols na Copa – dois contra a Alemanha e um diante da seleção canarinho. Puskás, por outro lado, havia se machucado na partida contra os germânicos e não estava em condições plenas. Ainda assim, a equipe comandada por Gusztáv Sebes continuava imbatível aos olhos dos demais.
Na semifinal, frente ao atual campeão mundial, Uruguai, um novo 4 a 2 para os húngaros. Dessa vez, porém, foi necessária uma exaustiva prorrogação para que a seleção europeia conseguisse a vitória. Hidegkuti voltou a balançar as redes e chegou a quatro gols na competição. Com 32 jogos de invencibilidade (28 vitórias e quatro empates) e nada menos que 25 gols marcados em quatro partidas na Copa, a seleção húngara carimbou o passaporte para a segunda decisão de Mundial em sua história.
Na grande final, em Berna, estava marcado o reencontro contra a Alemanha Ocidental, que os magiares haviam batido por 8 a 3, na primeira fase. E no dia 4 de julho de 1954, data da finalíssima, parecia que uma nova goleada viria à tona. Em apenas oito minutos, a Hungria já vencia por 2 a 0, com gols de Puskás e Czibor. No entanto, daí em diante, o que aconteceu foi simplesmente inacreditável.
Cansada da batalha na semifinal e atuando em um gramado pesado por conta da forte chuva, a seleção magiar não conseguiu mais impor seu estilo de jogo, baseado no toque de bola rápido e movimentações. Um dos pontos centrais para se anular a Hungria foi, justamente, a marcação cerrada em cima de Hidegkuti, o “cérebro” do esquadrão. Caçado pelo camisa 6 alemão, Horst Eckel, de apenas 22 anos, o camisa 9 húngaro não conseguiu jogar. Antes do intervalo, a Alemanha já havia empatado o confronto. Mas o pior ainda estava por vir: a seis minutos do final, Helmut Rahn virou o jogo a favor dos alemães. Puskás chegou a empatar o confronto no fim, mas seu tento foi invalidado por impedimento.
Sem reação por parte da Hungria, o apito final ecoou para a partida que ficou conhecida como o “Milagre de Berna”. De forma chocante, a Alemanha se sagrara campeã do mundo pela primeira vez em sua história. De quebra, a invencibilidade da rival, que já durava quatro anos, havia acabado. Assim como também se esgotava uma geração brilhante.

Pela Fiorentina, Hidegkuti faz cortesia a Benjamín Santos, técnico do Torino, e se senta no banco junto a ele (Bertazzini)
Chuteiras penduradas
Ainda tendo sucesso no futebol de clubes, Hidegkuti venceu uma Copa Mitropa e o seu terceiro campeonato nacional com o MTK Hungária depois da “tragédia” na Copa de 1954. O atacante também foi um dos poucos remanescentes da seleção húngara após a Revolução de 1956 no país. Com o movimento extremamente reprimido pela União Soviética, alguns jogadores decidiram se exilar na Espanha. Foi o caso de Puskás, Kocsis e Czibor – Puskás, inclusive, disputou a Copa do Mundo de 1962 com a camisa espanhola. Hidegkuti, porém, permaneceu e classificou o selecionado magiar para a Copa de 1958, na Suécia.
No entanto, a campanha em solo escandinavo não foi tão positiva quanto a de quatro anos antes. Após uma vitória contra o México, derrota para a seleção anfitriã e empate com o País de Gales, um novo jogo entre húngaros e galeses foi marcado para definir o classificado para o mata-mata. De virada, a Hungria perdeu por 2 a 1 e acabou eliminada. Este jogo representou o fim da carreira de Hidegkuti na seleção – e também no futebol. Já aposentado no MTK, o craque abandonou os gramados de vez após o Mundial da Suécia, aos 36 anos. No total, foram 69 partidas e 39 gols marcados para Hidegkuti com a camisa de sua seleção.
Imediatamente após pendurar as chuteiras, ele começou sua trajetória como treinador no próprio MTK, equipe que defendeu durante quase toda a vida. Só que a estadia não durou muito tempo. Após somente uma temporada, Hidegkuti foi se aventurar em solo italiano.
Glórias na Fiorentina
Nándor Hidegkuti foi contratado pela Viola em novembro de 1960 para o lugar de Lajos Czeizler, seu compatriota. Cerca de dois meses depois, em janeiro de 1961, Giuseppe Chiappella, ex-jogador da Fiorentina entre 1949 e 1960 e recém-aposentado, também foi integrado à comissão técnica com o objetivo de acompanhar o trabalho do húngaro à frente da equipe. Com dois treinadores, os gigliati fizeram uma temporada vitoriosa em 1960-61. No Campeonato Italiano, o time ficou na sétima colocação. Entretanto, o desempenho discreto no torneio por pontos corridos foi compensado por ótimas caminhadas nas competições eliminatórias.
Em menos de 15 dias, a Fiorentina faturou dois títulos, entre maio e junho de 1961: a Recopa Europeia, após triunfo diante do Rangers, da Escócia, e a Coppa Italia, batendo a Lazio na final. Para engordar o currículo de sucesso de Hidegkuti na Fiorentina, também vale citar a Copa dos Alpes: a Viola bateu o Young Boys, da Suíça, e ajudou a Itália a faturar a taça contra os helvéticos. A competição colocava frente a frente times dos dois países e ganhava a nação que mais somasse pontos.
Aquela equipe já não era a mesma que conquistou o scudetto, em 1955-56, mas contava com verdadeiros craques. O destaque, certamente, era o goleador sueco Kurt Hamrin, artilheiro do time naquela temporada, com 14 gols. Respaldado pelo sucesso em sua temporada inicial, Hidegkuti permaneceu por mais um ano em Florença.
No entanto, apesar de uma boa campanha no torneio nacional, que rendeu o terceiro lugar à Viola, os títulos não vieram em sua segunda temporada com o time. A equipe até chegou, novamente, à decisão da Recopa Uefa, mas o treinador húngaro sequer conseguiu brigar pelo título. Hidegkuti comandou a Viola na partida de ida, contra o Atlético de Madrid, que terminou empatada em 1 a 1. Este jogo foi em maio, mas o confronto de volta acabou marcado somente para setembro. O húngaro deixou a equipe neste meio tempo. Comandada por Ferruccio Valcareggi, a Fiorentina perdeu para os espanhóis por 3 a 0.
Outros times no currículo
Depois de dirigir a equipe violeta, Nándor Hidegkuti permaneceu mais um ano na Itália, à frente do Mantova. O time biancorosso vinha em ascensão sob as ordens de Edmondo Fabbri e estreara na Serie A no ano anterior, com um nono lugar – além de um terceiro posto na Coppa Italia. O húngaro assumiu um time taticamente inteligente, com dois futuros técnicos de sucesso (o volante Gustavo Giagnoni e o meia Luigi Simoni) e uma boa dupla de ataque, formada pelo suíço Toni Allemann e o ítalo-brasileiro Angelo Sormani. Com essas peças, o treinador magiar deixou os lombardos no meio da tabela do Italiano.
Na sequência, Hidegkuti retornou à Hungria, onde treinou o Győri ETO, guiando a equipe a um título nacional e às semifinais da Copa dos Campeões. A partir daí, rodou por mais alguns clubes sem conseguir emplacar um trabalho duradouro. Passou por Tatabánya, MTK, novamente, Spartacus, Stal Rzeszów, da Polônia, e Egri Dózsa.
Enfim, em 1973, chegou ao Egito para trabalhar no Al Ahly. Por lá conseguiu retomar o caminho do sucesso, com a conquista de cinco campeonatos nacionais e uma Copa do Egito, ao longo de sua passagem pelo clube, que durou até 1980. Após uma pausa de três anos, Hidegkuti acertou com outro Al-Ahli, o dos Emirados Árabes Unidos. Aos 63 anos, encerrou a carreira de técnico em 1985.
Oito anos depois, em 1993, o húngaro recebeu o prêmio de Fair Play da Fifa como homenagem ao comportamento exemplar durante sua trajetória no futebol – tanto como jogador quanto como treinador. Hidegkuti morreu em 2002, aos 79 anos, em decorrência de problemas cardíacos que já o acometiam há algum tempo. Como forma de tributo a um de seus mais lendários ícones, o MTK rebatizou seu estádio com o seu nome.
Nándor Hidegkuti
Nascimento: 3 de março de 1922, em Budapeste, Hungria
Morte: 14 de fevereiro de 2002, em Budapeste, Hungria
Posição: centroavante
Clubes como jogador: Elektromos (1942-45), Herminamezei (1945-46) e MTK Hungária (1946-58)
Títulos como jogador: Campeonato Húngaro (1951, 1953 e 1958), Copa da Hungria (1952), Ouro Olímpico (1952), Copa Internacional (1953) e Copa Mitropa (1955)
Clubes como treinador: MTK Hungária (1959-60 e 1967-68), Fiorentina (1960-62), Mantova (1962-63), Győri ETO (1963-65), Tatabánya (1966), Spartacus (1968-71), Stal Rzeszów (1972), Egri Dózsa (1973) Al Ahly (1973-80) e 1983-85)
Títulos como treinador: Recopa Uefa (1961), Coppa Italia (1961), Copa dos Alpes (1961), Campeonato Húngaro (1963), Campeonato Egípcio (1975, 1976, 1977, 1979 e 1980) e Copa do Egito (1978)
Seleção húngara: 69 jogos e 39 gols