Corrado Orrico é um daqueles que muito descreveriam como Professor Pardal. Mas o que notamos, ao conhecer a sua história, é um treinador à frente do seu tempo. Embora nunca tenha conseguido sucesso na elite do Campeonato Italiano, o toscano sempre foi tido como um sujeito “nunca banal”, “inovador” e “atípico” – bom, pelo menos foi assim que um grupo de torcedores da Carrarese o descreveu. Além de ídolo dos giallazzurri, que comandou em sete oportunidades, Orrico também é lembrado por uma controversa passagem pela Inter.
Nascido na cidade de Massa, região da Toscana, Orrico começou a carreira como treinador bem cedo, aos 26 anos, enquanto ainda era jogador da Sarzanese, a única equipe que defendeu como atleta. Com o clube, foi promovido à Serie D em 1967 e, na temporada seguinte, concorreu à vaga de acesso para a terceirona. A pequena agremiação da Ligúria acabou perdendo o playoff para a Lucchese, num duelo de rubro-negros bastante simbólico para Corrado, pois marcou a sua última partida como meia: o camisa 8 se lesionou e teve que abandoná-la precocemente.
Mas a sua vivência no futebol não havia acabado, muito pelo contrário. Após a curta carreira como atleta, que durou apenas uma década, entre 1959 e 1969, Orrico se dedicou exclusivamente à função de técnico. Ao final de temporada 1968-69, após sair da Sarzanese, o jovem comandante toscano teve a sua primeira passagem pela Carrarese, na Serie D. Durante essa curta experiência, foi responsável por implantar um novo método de treinamento para seus jogadores: em suma, as atividades eram realizadas dentro de uma gaiola.
Aplicado em um espaço reduzido, o treino na Gaiola (“Gabbia”, em italiano) visava, sobretudo, aprimorar os fundamentos básicos dos jogadores, principalmente as habilidades técnicas. A redução do campo de atuação e a ausência de linhas de fundo e laterais tinham como objetivo fazer com que os atletas reagissem de forma mais rápida e com mais destreza para executar com o menor número de erros possíveis nos movimentos.
A criação da Gabbia foi inspirada por uma prática comum nos balneários de Livorno, na Toscana, onde Orrico costumava passar férias. Quando ainda eram jovens, no início dos anos 1950, os defensores livorneses Armando Picchi e Mauro Lessi, juntamente a amigos, fizeram alterações nos campinhos de cimento localizados na orla da cidade: os cercaram com grades, para evitar que as bolas caíssem no mar, e também eliminaram arremessos laterais, tiros de meta e escanteios. Em estruturas muito parecidas às milhares de quadras espalhadas pelo Brasil, nascia a Gabbionata.
A Gabbionata é uma versão do futebol reduzido em espaço, números de jogadores e tempo de partida, que duram 60 minutos, divididos em duas etapas. Embora guarde semelhanças com o futebol de cinco, as diferenças são expressivas: além de a bola estar quase sempre rolando, a não ser quando há interrupções por faltas, as balizas têm um metro de largura por dois de altura. Os goleiros não podem usar as mãos. É um jogo feito para que a habilidade, a destreza e a precisão com os pés entrem em evidência.
Pensando no futebol atual, o método aplicado por Orrico faz todo o sentido, pois, após tantos avanços, o que temos hoje é um esporte em que o espaço de circulação da bola é cada vez mais reduzido, com linhas mais próximas entre os jogadores, configurando, dessa maneira, um jogo mais encaixotado. Portanto, para a época, essa maneira de pensar que o toscano propôs em seus treinos foi encarada de forma apaixonada: uns demonstravam extrema aversão, enquanto outros se interessavam pela estratégia. Esse método ajudou Corrado a implementar a marcação por zona nas equipes pelas quais passou e, também, trabalhar o condicionamento físico dos atletas. O esforço deu muito certo em algumas agremiações, mas não passou de teoria em outras, como a Inter.
Sempre buscando não ser taxado como óbvio, Orrico passou três anos estudando após essa primeira passagem por Carrara. Em 1972, foi contratado pelo pequenino Camaiore, da Toscana, que comandou ao longo de duas tranquilas temporadas na Serie D. Em 1974, rumou à Massese, de sua cidade natal, mas acabou demitido após apenas 12 jogos: apesar do bom desempenho na Coppa Italia de Semiprofissionais, não resistiu a uma campanha em que somou apenas uma vitória em sete rodadas da terceira divisão.
Em 1975, Orrico retornou à Carrarese. Em sua segunda passagem pelo clube, o comandante toscano ganhou respaldo por ajudar os giallazzurri a conquistarem a Serie C2 na temporada 1977-78 e, de imediato, lutarem pelo acesso à terceirona no ano seguinte: os marmiferi acabaram perdendo para o Montevarchi na final dos playoffs.
O grande trabalho ao longo de quatro anos fez com que Corrado saltasse aos olhos de clubes mais tradicionais do cenário nacional. Com isso, em 1979, o técnico foi contratado pela Udinese, que retornava à Serie A após duas décadas de sofrimento nas divisões inferiores do futebol italiano, sendo a maior parte desse período na terceira categoria. Orrico estreou na elite, mas não durou muito por lá: após um baixo aproveitamento em 30 partidas, sendo 22 pelo campeonato nacional, foi demitido do cargo. Os friulanos terminariam a temporada na penúltima posição, mas se salvariam do rebaixamento por causa do escândalo Totonero, que levou Milan e Lazio para a segundona.
Após o insucesso pelos bianconeri, Orrico começou 1980-81 acertado com o Vicenza, da Serie B, mas deixou os lanerossi sem mesmo tê-los comandado à beira do campo, por divergências com a diretoria do clube. Dessa forma, Corrado escolheu retornar à quarta divisão; optou voltar a treinar a Carrarese. O toscano novamente marcou época à frente dos marmiferi, fazendo-os brigar por grandes conquistas – considerando, naturalmente, o tamanho da agremiação.
A Carrarese conquistou a Serie C2 em 1982 e, no ano seguinte, além de brigar pelo acesso à segundona, venceu a Coppa Italia da Serie C. Orrico passou sem sucesso pelo Brescia em 1983-84 e retornou a Carrara para dirigir a equipe em temporadas menos gloriosas – tanto é que, em janeiro de 1986, foi demitido. Porém, logo voltaria aos apuani, após comandar o Prato numa campanha de meio de tabela na terceirona. A quinta passagem de Corrado pelo time giallazzurro terminou em um novo título da quarta divisão, em 1988.
Tido como rei das divisões inferiores, Orrico foi contratado pela Lucchese, sedenta pelos dias de glória que teve entre as décadas de 1930 e 1950, quando teve oito participações na elite italiana. Sob a batuta de Corrado, a equipe rossonera teve uma campanha razoável em 1988-89, e, na temporada seguinte, foi brilhante: conquistou o acesso à Serie B e também faturou a Coppa Italia da Serie C.
Na segundona, as panteras também conquistaram resultados expressivos. O elenco da Lucchese era muito modesto, mas Orrico construiu um mecanismo muito eficiente: com a terceira melhor defesa da Serie B, a equipe terminou o certame na sexta colocação e, por apenas três pontos, não conseguiu o acesso direto à elite nacional. Essa campanha chamou a atenção, mais uma vez, de clubes da primeira divisão. Desta vez, porém, muito maiores do que a Udinese.
No verão de 1991, Orrico foi anunciado pelo presidente Ernesto Pellegrini como novo técnico da Inter. O toscano teria a dura missão de substituir Giovanni Trapattoni, o mais vitorioso treinador do país, que fizera os nerazzurri faturarem o scudetto e a Supercopa Italiana, em 1989, e a Copa Uefa, um mês antes de ter fechado o seu acordo com a gigante de Milão.
Corrado Orrico já chegava ao topo de sua carreira com uma sombra enorme: a todo momento, seria alvo de comparações com Trapattoni. Além disso, também teria o seu trabalho contraposto ao de Arrigo Sacchi, ex-treinador do Milan, que revolucionou o futebol e que, naquele ano, aceitou o convite para comandar a Nazionale. Os rivais tentavam dar respostas aos ares de modernidade que o Mago de Fusignano havia soprado no esporte.
“Mas quem é Orrico?”, indagou Lothar Matthäus, quando um jornalista lhe perguntou o que achava do seu novo técnico. A dúvida do alemão, camisa 10 da Inter, não era uma ironia: Corrado, por sua pequena história na elite, era desconhecido no cenário internacional. Aposta de Pellegrini, era tratado como tal: começava cercado de desconfianças, uma vez que o seu currículo de raras conquistas parecia insuficiente para gabaritá-lo ao posto de treinador de uma potência do futebol italiano.
Houve, ainda, quem dissesse que o comandante apenas fazia sucesso na região da Toscana, onde nascera. De certa forma, o fracasso que viria pela frente fez aqueles que acreditavam nessas afirmações se sentirem cheios de razão. De qualquer forma, a chegada de Orrico a um clube tão grande também foi importante para constatar o quão sólidas eram as suas convicções e lhe permitiram lançaram um olhar sobre o futebol da elite do país daquela época.
Orrico aportou em Appiano Gentile consciente de que o seu grande desafio seria implementar o seu jogo de zona, uma vez que o elenco passara cinco anos sob as ordens de um técnico que tinha um jeito de pensar o futebol completamente diferente. Corrado chegou aos vestiários humildemente, tentando se aproximar dos senadores e estabelecer um diálogo com eles, mas nunca conseguiu encantá-los com sua filosofia.
Embora não ficasse estagnado à proposta original e buscasse alternativas, o toscano não obteve bons resultados ao longo da temporada e alguns episódios foram decisivos para as críticas se aprofundarem, como a precoce eliminação na Copa Uefa: detentora do título, a Inter caiu para o Boavista, de Portugal, logo na primeira fase da competição. Na Serie A, o baixo rendimento da maior parte dos jogadores, principalmente aqueles mais experientes, condicionou o trabalho e deixou a torcida furiosa. Assim, sob muita contestação, após derrota por 1 a 0 para a Atalanta no final do primeiro turno, Orrico pediu demissão. A Beneamata terminou na oitava posição do campeonato e não conseguiu se classificar para as copas continentais após 17 anos.
O insucesso do técnico à frente da Inter foi atribuído exclusivamente a questões táticas. Porém, outros fatores pesaram para a sua saída. O primeiro deles foi a alta expectativa depositada sobre o treinador e a sombra que pairava em Milão após as temporadas de sucesso sob as ordens de Trapattoni. Orrico não se ajudou muito quando declarou que era “precursor de Sacchi”: terminou sendo ainda mais pressionado. E, como os resultados não eram bons, preferiu não prosseguir tentando transmitir as suas ideias para o elenco interista.
A segunda razão pela queda precoce se relaciona às desconfianças iniciais da torcida e da própria mídia especializada quanto à figura do treinador. Desde a chegada de Orrico, questionava-se a aposta de Pellegrini por um técnico sem trabalhos expressivos na elite do Italiano. Além disso, a fuga ao pragmatismo fez com que as críticas aumentassem. Sem resultados, as hipóteses dos que não acreditavam no sucesso do toscano se concretizaram.
Ademais, Orrico era uma figura ímpar, que sempre expressava suas opiniões de maneira direta, e incomodava jornalistas acostumados a respostas prontas e padronizadas. O treinador sempre se mostrou como um alvo para a parcela da imprensa esportiva que busca assuntos rasos e artificiais ou polêmicas para estampar manchetes: quando os seus representantes encontraram alguém que ia além dos aspectos meramente técnicos, passaram a odiá-lo. Um de seus poucos admiradores nas redações era Gianni Brera, com quem chegou a ter jantares regados a conversas sobre futebol e Grignolino, um célebre vinho piemontês.
A terceira razão pode estar relacionada às posições políticas do treinador. Declaradamente comunista, Orrico afirmou, décadas após a sua demissão, que chegou a haver um atrito nos bastidores porque as suas visões e as dos diretores não eram convergentes. Em entrevista à Gazzetta dello Sport, o toscano contou que, certa feita, o presidente Pellegrini e o vice Giuseppe Prisco o encontraram durante a leitura de Il Manifesto, jornal fundado por um grupo de esquerda. Para ele não havia mal algum em ler o periódico, mas os cartolas lhe disseram que não era desejável que um técnico da Inter consumisse esse tipo de noticiário.
Corrado, prontamente, rebateu: “devo, então, me associar à P2?”, ironizou, citando a loja maçônica que, anos antes, havia sido descoberta como uma associação criminosa que chegava a armar atentados para combater a militância de esquerda na Itália e até em outras partes do mundo. Depois de tentar descontrair, Orrico ainda argumentou que, dentre todos os jornais que ele lia, esse era o melhor e mais crítico. Também afirmou que gostava muito da editoria de cultura da publicação.
Apesar da brevíssima passagem pela capital da Lombardia, o treinador tirou lições sobre o futebol na elite do país. Em entrevistas após deixar o comando do clube, o toscano comentou que nunca teve oportunidades de impor suas ideias de maneira integral – ainda que a gaiola com cobertura que ele pediu para instalar na Pinetina esteja lá até hoje. As opiniões que ele tinha sempre esbarravam em algum jogador famoso ou dirigente que tentava impor barreiras às suas propostas. Para Orrico, as únicas premissas que continuam em voga na Serie A são a do lucro e a dos resultados.
Totalmente oposto ao futebol resultadista em sua essência, Corrado considera que o verdadeiro laboratório da modalidade na Itália são as séries B e C, nas quais os treinadores podem vir a ter mais voz e chances de colocar em prática as suas teorias de jogo – ambientes de menor pressão, com relações mais diretas e distantes do glamour da grande mídia, das câmeras e das empresas. Nessas categorias, para o técnico, existe mais espaço para fazer, desfazer e inventar, sobretudo quando há disponibilidade dos jogadores.
Ao encerrar seu breve ciclo em Milão, Orrico nunca mais teve um trabalho de relevo: como se houvesse perdido a confiança em sua capacidade, acumulou passagens rápidas por mais 10 clubes antes de se aposentar. Em 1992, voltou para a Lucchese e foi demitido no meio do trabalho, na Serie B; dois anos depois, teve sua sexta experiência na Carrarese, que comandou ao lado de Rino Lavezzini. Em seguida, ocupou os bancos de Avellino, Siena e Alessandria: pelos grigi, em 1998, amargou o rebaixamento para a quarta divisão.
Por incrível que pareça, após a queda, Orrico retornou à Serie A após uma ausência de oito anos. O Empoli, da Toscana, apostou na superstição para tentar se salvar da queda: em fevereiro de 1999, Corrado substituiu Mauro Sandreani, mas somou apenas uma vitória em 13 rodadas e conduziu o time a um descenso categórico. Os azzurri terminaram o campeonato na lanterna, com apenas 20 pontos, 13 a menos que o Vicenza, penúltimo colocado, e 19 abaixo do Perugia, primeiro fora da zona da degola.
Com a carreira na elite definitivamente enterrada, Corrado Orrico ainda treinou a Lucchese pela terceira vez e a Carrarese pela sétima, além de ter acumulado passagens-relâmpago por Treviso e Massese. Em 2008-09, chegou a ter um brilhareco pelo Prato: classificou o time para os playoffs de acesso à terceirona. Depois disso, o toscano ficou quatro anos parado e, quando se imaginava que tinha deixado o esporte, acertou com o oitavo clube da sua região: assumiu o Gavorrano na reta final da Lega Pro Seconda Divisione, mas não evitou a sua queda para a Serie D. Ali, sim, se aposentou.
Homem vertical, culto, coerente e nunca previsível, Orrico passou a utilizar estas características fora dos campos, ao se tornar um comentarista da Sky Sport. Durante sua carreira como treinador, porém, foi tratado como marginal e nunca foi compreendido inteiramente. Crítico do pragmatismo presente no futebol, o toscano pode ser considerado uma autêntica mosca branca no mundo da bola. Por tal temperamento, infelizmente foi mais uma vítima da bomba que costuma explodir no colo dos revolucionários descontentes com todo um sistema engessado.
Corrado Orrico
Nascimento: 16 de abril de 1940, em Massa, Itália
Posição: meio-campista
Clubes como jogador: Sarzanese (1959-69)
Títulos como jogador: Seconda Categoria (1963) e Prima Categoria (1966)
Clubes como treinador: Sarzanese (1966-69), Carrarese (1969, 1975-79, 1980-83, 1984-86, 1987-88, 1994-95 e 2006-07), Camaiore (1972-74), Massesse (1974 e 2003), Udinese (1979-80), Vicenza (1980), Brescia (1983-84), Prato (1986-87 e 2008-09), Lucchese (1988-91, 1992-93 e 1999-2000), Inter (1991-92), Avellino (1995-96), Siena (1996-97), Alessandria (1997-98), Empoli (1999), Treviso (2002) e Gavorrano (2013)
Títulos como treinador: Serie D (1978), Serie C2 (1982 e 1988) e Coppa Italia da Serie C (1983 e 1990)