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Miguel Montuori foi uma das estrelas da campanha do primeiro scudetto da Fiorentina

Em sua história, a Fiorentina contou com jogadores memoráveis em seus grandes momentos. O time que faturou o primeiro scudetto violeta, em 1956, é um grande exemplo disso, uma vez que foi formado por nomes como Julinho Botelho, Giuliano Sarti, Giuseppe Chiappella, Giuseppe Virgili, Ardico Magnini e o ítalo-argentino Miguel Montuori. O atacante sul-americano, que era um dos mais procurados pelos torcedores gigliati para dar autógrafos e tirar fotografias, teve uma trajetória marcada pelo pioneirismo e por certo azar.

Miguel Ángel veio ao mundo em 1932, na cidade portuária de Rosário, às margens do Rio Paraná, na Argentina. Os registros de seus primeiros anos de vida são um pouco confusos. É certo que o seu pai tinha origens napolitanas e que sua mãe tinha pele escura, mas algumas fontes divergem sobre a ascendência da genitora: para algumas, a procedência seria indígena; para outras, afro-americana. Essa dúvida gera informações conflitantes sobre fatos da carreira de Montuori, como veremos mais à frente.

O argentino iniciou a sua trajetória como atleta no Racing de Avellaneda, mas nunca conseguiu ter espaço em La Academia e, antes mesmo de estrear profissionalmente, rumou a um país vizinho: o Chile, em 1953. Foi pela Universidad Católica, clube em que ficou por um biênio, que Miguel começou a fazer sucesso no futebol. Na sua segunda temporada por Los Cruzados, venceu a Primeira Divisão Chilena de 1954, quando chegou perto do feito de um gol por jogo, ao marcar 24 vezes em 26 partidas no campeonato.

Foi na própria cidade de Santiago que Montuori conheceu o Padre Volpi. O sacerdote italiano, ligado à Universidad Católica, havia jogado futebol de forma amadora e era conhecido por ter um bom olhar para avaliar atletas, de modo a ser tido como um descobridor de talentos. Em 1955, o religioso contou ao então diretor esportivo da Fiorentina, Luciano Giachetti, sobre o talento que despontava em território sul-americano e a Viola fechou com o argentino.

Naquele mercado de verão europeu, o presidente Enrico Befani já havia buscado o brasileiro Julinho na América do Sul. Mas, ao contrário do craque da Portuguesa, que já brilhara na Copa do Mundo de 1954 e era cacifado por isso, Montuori era tratado como uma incógnita quando desembarcou na Itália. Os torcedores que confiaram fielmente nas palavras do padre, porém, rapidamente puderam tirar vantagem dos que desconfiavam da qualidade do argentino. O atacante, que também jogava como meia ofensivo, logo impressionou.

Numa época em que nomes próprios estrangeiros costumavam ser italianizados, Miguel Ángel foi rebatizado, quase que obrigatoriamente, como Michelangelo – como o notável pintor e escultor toscano do Renascimento. E, tal qual seu homônimo, Montuori elaborou obras de arte fascinantes na “renascença” da Fiorentina. Vestindo habitualmente a camisa 10, foi uma das estrelas da campanha do scudetto violeta em seu primeiro ano em Florença.

Montuori fez parte de um fantástico grupo, que contava com os já citados Julinho, Sarti, Chiappella, Virgili e Magnini, além de Sergio Cervato, Armando Segato e Maurilio Prini. Com uma campanha impecável, o time comandado por Fulvio Bernardini perdeu somente uma das 34 partidas daquele certame – e somente na última rodada, quando o título já estava garantido, num 3 a 1 para o Genoa. Com isso, o título foi conquistado de forma tranquila, com 12 pontos de vantagem sobre o Milan, segundo colocado.

Dono da camisa 10, Montuori se tornou um dos grandes artilheiros da história violeta (Torrini)

Nesta edição da Serie A, Montuori marcou 13 gols em 32 jogos, sendo o vice-artilheiro do time – atrás somente de Giuseppe Virgili, que anotou 20 vezes naquele campeonato. Dos tentos guardados por Miguel, destacaram-se a tripletta na vitória por 4 a 2 diante do Novara, que viria a ser rebaixado, e as dobradinhas ante Napoli e Torino, que asseguraram duas vitórias. O argentino também compareceu às redes nos triunfos sobre Milan, no primeiro turno, e Juventus, nas duas partes do certame.

Com 1,73m, Michelangelo tinha uma poderosa perna direita, que lhe servia em fortes finalizações e em dribles que poucos eram capazes de efetuar dentro das quatro linhas. Por todas essas qualidades e pelas exibições magníficas pela Viola, seria inevitável não ser chamado à seleção nacional. No caso, a italiana, já que a Argentina não convocava jogadores que militavam no exterior e as origens napolitanas de Monutori lhe permitiam ter acesso à dupla nacionalidade.

É aí que a ascendência de Montuori, por parte de sua mãe, volta à baila. Para alguns, o sul-americano foi o segundo jogador negro a atuar no futebol italiano – após o atacante uruguaio Roberto La Paz, que vestiu as camisas de Frattese e Napoli – e, certamente, o primeiro a representar a seleção. Porém, se Miguel for considerado indígena, como alguns lhe chamavam na Velha Bota, o pioneirismo cairia por terra: Enrique Guaita, campeão mundial pela Nazionale, em 1934, também era um argentino descendente de povos originários.

O que é fato é que Montuori se tornou o primeiro jogador oriundo – ou seja, um descendente de italiano nascido em outro país – a utilizar a braçadeira de capitão da Squadra Azzurra. O atacante de pele escura fez 12 partidas pela Itália, com dois gols marcados, e usou a faixa em duelos realizados em 1959 e 1960. Miguel estreara em fevereiro de 1956, ainda durante a campanha do scudetto violeta, o que mostra que rendeu em alto nível por um bom tempo.

Depois de conquistar o primeiro título pela Fiorentina, Montuori ainda levantou mais seis troféus pela equipe toscana – e sete outros vice-campeonatos. Em 1957, a Viola disputou a Copa dos Campeões, passando pelos suecos do Norrköping, os suíços do Grasshoppers e os sérvios do Estrela Vermelha até chegarem à final contra o Real Madrid. Alfredo Di Stéfano, em um pênalti controverso, e Paco Gento fizeram os gols que decretaram o segundo lugar para o time de Bernardini. Miguel foi fundamental nessa campanha, onde atuou em todos os sete jogos e anotou um tento.

Aliás, aquela derrota inaugurou uma longa jornada de desilusões. Apesar de ter um time espetacular, a Fiorentina amargou quatro vice-campeonatos consecutivos na Serie A, ficando duas vezes atrás de Milan e Juventus, respectivamente. Como se não bastasse, acumulou também dois segundos lugares na Coppa Italia, com derrotas para Lazio (1958) e Juve (1960).

Enquanto ficava no quase em grandes torneios, a Fiorentina levantou troféus menores, como a Copa Grasshoppers (1957), a Copa da Amizade Ítalo-Francesa (1959 e 1960) e a Copa dos Alpes (1961). Michelangelo continuava a se apresentar em alto nível e chegou a ter o seu ápice em 1958-59, quando fez 22 gols em 27 jogos no Campeonato Italiano. Além de uma tripletta na vitória por 4 a 0 sobre o Bari, Montuori guardou uma doppietta em cinco oportunidades – contra Vicenza, Alessandria, Genoa, Torino e Inter.

O argentino Montuori se adaptou a Florença e se tornou um dos maiores jogadores da história da Fiorentina (LaPresse)

Em 1960-61, a Fiorentina voltou a conquistar títulos expressivos: deu o troco sobre a Lazio na Coppa Italia e também faturou a Recopa Europeia, competição que reunia os vencedores das copas de cada país. A Viola entrou na competição porque a Juventus, que vencera o mata-mata nacional um ano antes, também fora vitoriosa na Serie A e disputou a Copa dos Campeões, e saiu dela com um grande feito: ao bater o Rangers, se tornou o primeiro time italiano a vencer uma competição Uefa. No entanto, Montuori não entrou em campo nas competições.

O ítalo-argentino se tornara capitão da equipe naquela temporada, devido à aposentadoria de Chiappella, mas teve alguns problemas físicos em seu decorrer. Montuori jogava e marcava menos do que estava acostumado na Serie A – no total, atuou em 16 partidas e fez dois gols. Para tentar recuperar a forma, chegou a treinar com o time reserva da Fiorentina e, num duelo com o Perugia, foi vítima de um lance que interrompeu precocemente a sua carreira.

Em abril de 1961, em um amistoso contra o Perugia, Montuori levou uma forte bolada no rosto, que ocasionou o descolamento de sua retina e fez com que sua visão ficasse prejudicada. Depois de algumas cirurgias e muito tempo de repouso, o ítalo-argentino teve de lidar com a consequência direta do acontecido: a sua precoce aposentadoria dos gramados, aos 28 anos, quando ainda tinha bastante lenha para queimar. O azar parecia mesmo pairar sobre o eterno camisa 10 da Viola, que passou a conviver com muitos problemas de saúde: foi acometido de uma úlcera, uma hérnia de disco e um aneurisma cerebral.

Mesmo tendo encerrado a carreira prematuramente, Montuori se aposentou como o maior artilheiro da história da Fiorentina, com 84 gols marcados. Com o tempo, foi ultrapassado somente por Kurt Hamrin e Gabriel Batistuta. Em 2016, sua trajetória foi eternizada no Hall da Fama do clube.

Depois de ter pendurado as chuteiras, Montuori tentou equilibrar os problemas de saúde com a ocupação de treinador de times juvenis e amadores da Toscana. Já com problemas financeiros, chegou a retornar para o Chile para continuar a carreira como técnico, mas não obteve sucesso.

Dois de seus quatro filhos voltaram a morar na Itália e, depois, o próprio Miguel se reinstalou em Florença com sua esposa Teresa. Em 1988, quando o casal foi conhecer os netos, acabou sendo surpreendido pelos colegas que Montuori teve na Fiorentina: sabendo das dificuldades financeiras pelas quais a família passava, os ex-jogadores lhes presenteou com uma casa mobiliada. Em retribuição aos seus feitos pela Viola, o ítalo-argentino também recebeu um emprego numa biblioteca pública e virou técnico de uma escolinha no bairro de L’Isolotto, onde ajudou a revelar Francesco Flachi. Em 1998, já adoecido, faleceu aos 65 anos.

A história conta que Montuori pode entrar facilmente em qualquer seleção de todos os tempos da Fiorentina, já que integra o panteão dos maiores que passaram pela equipe. A combinação entre técnica, criatividade e instinto para marcar gols do argentino era única, tal qual o talento do seu homônimo Michelangelo. Infelizmente, esta luz se apagou precocemente, assim como a da sua existência.

Miguel Ángel Montuori
Nascimento: 24 de setembro de 1932, em Rosário, Argentina
Falecimento: 4 de junho de 1998, em Florença, Itália
Posição: atacante e meia-atacante
Clubes: Racing (1951-53), Universidad Católica (1953-55) e Fiorentina (1955-61)
Títulos: Campeonato Chileno (1954), Serie A (1956), Copa Grasshoppers (1957), Copa da Amizade Ítalo-Francesa (1959 e 1960), Copa dos Alpes (1961), Coppa Italia (1961) e Recopa Europeia (1961)
Seleção italiana: 12 jogos e 2 gols

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