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Davide Moscardelli, o ‘ogro acrobata’ de gols quase impossíveis

Ogros não têm asas, mas até podem voar. Quem provou isso foi Davide Moscardelli, uma espécie de “Dodô italiano”: com ele, gols acrobáticos eram algo comum. Os bonitos, graças a uma enorme capacidade de finalização de fora da área, também. O corpulento atacante disputou somente quatro temporadas da Serie A, mas teve momentos inesquecíveis. Com seu cabelo comprido, uma barba quase sempre longa e um carisma gigantesco, ele mostrou que não é preciso ganhar títulos e atuar em grandes equipes para se tornar um ícone.

Embora tenha vivido e jogado toda a sua vida na Itália, Moscardelli nasceu na Bélgica, em uma cidade chamada Mons. Situado na região da Valônia, o município faz fronteira com o norte da França e foi o seu berço porque, em 1980, seu pai, um ex-praça da Força Aérea Italiana, estava em missão na região. Logo após o seu nascimento, quando ele tinha menos de um ano e estava bem longe de ostentar a sua barba no estilo lenhador, sua família retornou para Roma.

Entretanto, o carinho de Moscardelli pela Bélgica permanece. Em suas redes sociais é possível encontrar as seguintes frases: “Born in Belgium. Made in Italy”. No bom português: “Nascido na Bélgica. Feito na Itália”. E, de fato, Davide foi feito na Itália: foi no país que deu seus primeiros passos rumo ao futebol profissional.

O esporte já se fazia presente em sua família, uma vez que seu irmão mais velho atuou como atacante em times amadores dos arredores de Roma. E foi por ali também que Moscardelli, torcedor fanático da Loba, teve seu primeiro contato com um clube de futebol, em 1997. Neste ano, o Maccarese abriu as portas para que ele pudesse iniciar sua carreira como atleta. A equipe diletante, sediada na região metropolitana da capital, pode ver o jovem Davide atuar com sua camisa durante quatro temporadas.

Após essa primeira experiência no mundo do futebol, Moscardelli rumou para o lado leste de Roma para atuar pelo Guidonia, da sexta divisão. Com 19 gols, levou o time para  Serie D e chamou a atenção da Sangiovannese, que promoveu a sua profissionalização – o clube da Toscana disputava a Serie C2. O jovem Davide superou as expectativas e teve uma média de um tento a cada dois jogos pela equipe, que ficou perto do acesso à terceira categoria.

Sem dúvidas, Moscardelli era um destaque nas divisões inferiores. Tanto é que chegou a ser apelidado como Battigol (com um “t” a mais), por ser artilheiro, ter Gabriel Batistuta como ídolo e, tal qual o argentino, ostentar um cavanhaque – na época, ainda não usava barba. Suas atuações e seus 15 gols pela Sangiovannese chamaram a atenção da Triestina, que havia sido promovida à segundona um ano antes e lhe abriu as portas da Serie B, competição que disputaria por seis temporadas seguidas.

O atacante chegou à elite apenas com 30 anos, quando Pioli o levou ao Chievo (Getty)

Ambidestro, com boa técnica, finalizações precisas e um misto de destreza e velocidade raras em alguém corpulento e de 1,85m, Moscardelli se tornou Moscagol na Serie B. De cara, o atacante marcou 16 vezes na razoável campanha da Triestina e, no ano seguinte, anotou sete tentos para ajudar os alabardati a se salvarem do descenso. Após o fim do contrato, Davide jogou duas temporadas no Rimini, mas foi apenas uma boa opção de banco – como alternativa ao brasileiro Jeda e a Alessandro Matri, balançou as redes nove vezes em 2006-07.

Moscardelli reencontrou o protagonismo pelo Cesena, com 15 gols marcados em 2007-08. Apesar do rebaixamento dos bianconeri, acertou com o Piacenza de Stefano Pioli, onde manteve o bom nível. O belgo-romano defendeu os lupi por duas temporadas e só em 2010, aos 30 anos, recebeu sua primeira oportunidade na Serie A. O acesso ao último degrau da pirâmide do futebol italiano se deu a pedido de Pioli, que comandava o Chievo e sentia que precisava de um atacante como Moscagol.

Ao chegar à primeira divisão, Moscardelli concretizava o seu maior sonho – ao menos aquele realizável, já que o atacante considerava jogar na Roma, seu time do coração, algo impossível. A história ficou ainda mais bonita quando, aos 14 minutos da rodada inaugural da Serie A, em sua estreia, Davide anotou o gol que deu início à vitória do Chievo por 2 a 1 sobre o Catania.

O jogador confessou que, após o momento mágico do gol, até lhe escorreu uma lágrima. Moscardelli tatuou em seu braço a data da partida para lembrar eternamente dos segundos de êxtase que viveu naquele dia. É uma das tantas tatuagens que ele fez na região. “Tenho um rosário que representa minha mãe, que é muito religiosa; um pergaminho da Força Aérea, para meu pai e meu irmão, que são militares; uma imagem da minha esposa; a data de minha estreia na Serie A; um dado, que é meu apelido; uma caneca da cerveja, porque ela não pode faltar; a bandeira da Itália e a da Bélgica”, contou à Gazzetta dello Sport.

Depois do gol no debute, Moscardelli repetiu a dose na segunda rodada, na vitória por 3 a 1 sobre o Genoa. Assim, se consolidou como titular do time de Pioli, ao lado de Sergio Pellissier, e voltou a deixar a sua marca contra Inter e Roma – diante da Loba, chegou a se emocionar. Depois, foi a vez de anotar um belo tento sobre o Napoli e (novamente) chorar por desperdiçar uma claríssima chance de guardar mais um. O Chievo venceu aquela partida por 2 a 0, mas Battigol nunca teve o prazer de assinar uma doppietta na elite.

Moscardelli era mesmo emotivo em campo. Em fevereiro de 2011, ao estrear no Olímpico, num duelo contra a Lazio, sentiu o peso do jogo. “Fui traído pelas minhas emoções. Joguei mal porque fiquei pensando na sensação de atuar pela primeira vez no estádio da minha cidade, com amigos e familiares nas arquibancadas”, confessou ao Goal.

Moscardelli não teve tantas oportunidades pelo Bologna, seu último clube na elite italiana (Iguana Press/Getty)

Naquela mesma arena, quando atuava pelo Guidonia, Dado teve uma experiência única: comemorar o scudetto, após a vitória da Roma sobre o Parma na última rodada da Serie A 2000-01. “Naquele dia eu joguei às 11 da manhã. O horário foi perfeito, porque depois do jogo meu pai me levou ao estádio e eu pude ver a partida com amigos. Vivi aquele dia ao máximo: comemorei nas ruas até o fim da festa. Por sorte eu era jovem, agora não conseguiria mais”, contou, em tom de brincadeira, ao site Voce Giallorossa.

Uma década depois da festa no Olímpico, Moscagol comemorou o fato de ter, com seus seis tentos, ajudado o Chievo a faturar a 11ª posição da Serie A e ter evitado mais um rebaixamento. Além disso, ele também se casou com sua atual esposa, Guendalina Tobia, com quem tem dois filhos.

O atacante começou a temporada 2011-12 como titular do Chievo, que vira Pioli rumar ao Palermo e o substituíra com Domenico Di Carlo. No entanto, com o passar das rodadas, Moscardelli perdeu muito espaço para Alberto Paloschi e Cyril Théréau e virou opção de banco. Dado permaneceu nessa condição até janeiro de 2013, quando uma mudança de ares reativou sua carreira: após 73 jogos e 11 gols pelos clivensi, Davide acertou com o Bologna.

O responsável por dar uma nova chance a Moscardelli não poderia ser outro que não Pioli, que comandava o Bologna desde o início da temporada 2012-13. Battigol recebeu a camisa 9 e foi utilizado como alternativa a Alberto Gilardino nos meses finais da campanha, que os rossoblù concluíram na 13ª posição. Para a época seguinte, herdou a 10, anteriormente vestida pelo próprio Gila, e que pertecera a Roberto Baggio e Giuseppe Signori. No entanto, já veterano e com poucos minutos em campo, o atacante não conseguiu contribuir o suficiente e os felsinei caíram para a segunda divisão.

Dado caminhava para o fim da carreira. Contudo, algo nele começou a atrair novamente a atenção dos outros: sua enorme barba. O estilo do atacante certamente não podia ser encontrado em qualquer lugar, muito menos em clubes de futebol. Seus pelos faciais lhe conferiram alguma notoriedade fora do esporte e também fora da Itália. Em 2014, por exemplo, Moscardelli foi garoto propaganda de uma campanha contra a homofobia. A iniciativa foi promovida pela casa de apostas irlandesa Paddy Power, atuante na Velha Bota, pela fundação Candido Cannavò e pelas associações dos direitos homossexuais Arcigay e Arcilesbica. Realmente, Battigol era um jogador fora da curva.

A barba de lenhador, aliás, era uma espécie de amuleto para o habilidoso jogador, que confessou que tinha medo de se barbear e não ser reconhecido por seu filho. Claro que se tratava de uma brincadeira, como tantas que o bem-humorado Moscardelli costumava fazer em seus tempos de atleta. Tal qual quando afirmou que só toparia raspar os seus pelos faciais se atuasse em uma partida pela Roma. A Loba está no seu coração e também em sua pele: em 2019, ele fez uma tatuagem em homenagem a Daniele De Rossi, acima de outra que retrata o Coliseu.

Já com uma barba viking, Moscardelli se tornou capitão e ídolo do Pisa (Getty)

Mas Moscardelli também passou a gerar burburinho pelo que fazia em campo – embora, a partir de 2014, jamais voltasse a atuar na Serie A. Aliás, Battigol passou quase todo o restante de sua carreira nos gramados da terceira divisão, nos quais mostrou a discrepância técnica entre o seu futebol e o dos adversários. Primeiro, de 2014 a 2016, anotou 28 tentos em 68 aparições pelo Lecce. Os giallorossi, contudo, por pouco não subiram para a segundona.

Na sequência, Davide rumou para a Toscana, região em que defendeu os dois últimos clubes da carreira. O primeiro deles foi o Arezzo, que representou por duas temporadas, com 30 gols em 67 aparições. Em 2016-17, Moscardelli fez os amaranto competirem pela promoção e, na época seguinte, salvou do rebaixamento um time que fora penalizado, por problemas financeiros, em 13 pontos.

Depois, foi a vez de virar ídolo no Pisa, que capitaneou rumo ao acesso à Serie B, em 2019. Ao fim de mais uma campanha positiva na segundona, na qual os nerazzurri brigaram na parte alta da tabela, Dado terminou a sua passagem pela agremiação com 57 partidas e 17 tentos anotados. Aos 40 anos, também anunciou a sua aposentadoria e a sua contratação como membro da comissão técnica dos pisanos.

Mas e o tal burburinho que Moscardelli continuou a gerar? Bom, basta fazer uma busca no YouTube para verificar a quantidade de vídeos com os melhores lances do atacante. Na terceira divisão, ele voltou a marcar golaços em profusão – o que não conseguiu fazer com tanta frequência na elite. Bicicleta? Tem no repertório. Voleio? Tem. Sem pulo? Tem. Falta no ângulo? Tem. Arrancada, dribles e cavadinhas? Tem também. Dado anotou 219 vezes na carreira e não há dúvida de que o seu percentual de lindos gols é superior à média de um jogador comum.

Por que, então, Moscardelli não teve tanto sucesso na elite? Sem dúvida, Battigol foi um dos jogadores mais autênticos a atuar nos gramados italianos. Não apenas por seus cabelos longos e pela barba comprida, mas por não ter a ambição desmedida de chegar no topo: ele comandou o ataque de diversos clubes nas divisões inferiores e se contentou em ser um “bomber di provincia”, ou melhor, o herói das províncias mais estiloso do futebol da Velha Bota. Achou suficiente levar uma vida pacata com sua família e compartilhar, em seus perfis em redes sociais, fotos de sua barba, de copos de cerveja artesanal e de churrascos.

Um injustiçado da Bola de Ouro ou muito bom para ganhar a Bola de Ouro, como brincam os títulos de seus vídeos de skills no YouTube? Não importa. Moscardelli nunca se omitiu de ser o que desejava por onde passou. E seus golaços nas divisões profissionais da Itália falam por ele.

Davide Moscardelli
Nascimento: 3 de fevereiro de 1980, em Mons, Bélgica
Posição: atacante
Clubes: Maccarese (1997-2001), Guidonia (2001-02), Sangiovannese (2002-03), Triestina (2003-05), Rimini (2005-07), Cesena (2007-08), Piacenza (2008-10), Chievo (2010-13), Bologna (2013-14), Lecce (2014-16), Arezzo (2016-18) e Pisa (2018-20)

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