Houve um tempo em que contratar estrangeiros era raridade no futebol europeu: isso ocorria antes de a Lei Bosman permitir que jogadores comunitários pudessem transitar livremente pelos clubes de países membros da União Europeia. Na Itália não era diferente e, durante a década de 1980, quando havia a limitação de dois gringos por time, as agremiações se viravam como podiam. Uma solução comum era efetuar aquisições casadas, de atletas provenientes da mesma nação. Foi o que fez o Bari, em 1985, ao assinar com os ingleses Gordon Cowans e Paul Rideout.
Entre o fim da década de 1970 e a primeira metade dos anos 1980, o futebol inglês, em nível de clubes, viveu um grande momento e rivalizou com o italiano. Nesse período, Liverpool, Nottingham Forest e Aston Villa venceram a Copa dos Campeões, Ipswich e Tottenham faturaram a Copa Uefa e o Everton ganhou a Recopa – Manchester United e Arsenal não levantaram taças, mas também emplacaram boas campanhas continentais.
Ao mesmo tempo, jogadores que atuavam no Campeonato Inglês acabaram aportando na Serie A, a liga mais forte do mundo. O irlandês Liam Brady, que trocou o Arsenal pela Juventus, em 1980, foi o primeiro da lista, e terminou seguido pelos escoceses Joe Jordan (Milan) e Graeme Souness (Sampdoria), e os ingleses Trevor Francis (Samp), Luther Blissett, Ray Wilkins e Mark Hateley – todos estes adquiridos pelo Diavolo. Seguindo os passos dos rossoneri, o Bari também montou uma pequena colônia britânica no salto da Bota.
Em 1985, Cowans e Rideout foram adquiridos numa mesma transação junto ao Aston Villa, pelo valor aproximado de 1,5 bilhão de velhas liras. Os britânicos, vale destacar, seriam os primeiros estrangeiros do Bari desde a reabertura das fronteiras italianas, ocorrida em 1980. Gordon, que era meio-campista, era o mais experiente da dupla, com quase 27 anos, ao passo que Paul ainda não completara 21.
Nascido no norte da Inglaterra, perto da fronteira com a Escócia, Cowans desenvolveu uma carreira lapidar pelos Villains desde sua estreia como profissional, em 1976. Meio-campista ambidestro, hábil em ditar o ritmo do seu time e articular jogadas, o prata da casa acumulou honras com a camisa azul e grená, se tornando um ídolo em Birmingham. Além de ter sido eleito como melhor jovem jogador do país, em 1979, ajudou os leões a faturarem diversos títulos: a Copa da Liga Inglesa, em 1977, o Campeonato Inglês e a Charity Shield, em 1981 e, por fim, a Copa dos Campeões e a Supercopa Uefa, em 1982.
Com Gordon em campo, o time de Birmingham encerrou um jejum de 71 anos sem títulos da elite inglesa e levantou a orelhuda, a principal taça de sua história. Cowans, que fez quase 300 partidas em sua primeira década de Aston Villa, ainda contribuiu de forma sensível do ponto de vista individual: Sid, como era conhecido pelos torcedores, marcou um gol e forneceu uma assistência na conquista da Supercopa Uefa, sobre o Barcelona. O ótimo desempenho lhe rendeu a estreia na seleção da Inglaterra, em 1983, mas uma fratura na perna, que lhe afastou do esporte por toda a temporada 1983-84, impediu que tivesse continuidade na equipe nacional.
Rideout, por sua vez, era um garoto nascido no sul da Inglaterra. Paul saiu de Bournemouth para representar o Swindon Town e estreou pelos Robins com apenas 15 anos. Nas divisões inferiores do país, se destacou como um garoto prodígio e, após marcar 20 gols na quarta categoria, foi adquirido pelo Aston Villa, em 1983.
Na elite, Rideout ajudou os leões a ficarem duas vezes no meio de tabela e, com 14 tentos no campeonato de 1984-85, se consolidou como um dos principais jovens talentos ingleses – sendo, inclusive, convocado para a seleção sub-21. Era um típico centroavante britânico: não muito técnico, mas brigador e eficaz no posicionamento.
Esses currículos foram analisados minuciosamente por Vincenzo Matarrese, presidente do Bari. A sua família havia assumido o leme do clube no fim da década de 1970 e, depois de muita luta nas divisões inferiores, conseguiu levá-lo à elite após uma ausência de 15 anos, com direito a duplo acesso e um elenco repleto de pratas da casa. Em 1985, então, por conta das chegadas de Cowans e Rideout, o “Bari dos bareses” se tornou o “Bari dos ingleses”. Um time muito mais modesto do que o “Milan dos holandeses” e a “Inter dos alemães”, que seriam montados algumas temporadas depois, mas que também teve o seu lugar na história do futebol italiano.
Cowans e Rideout certamente não eram super craques, mas agregariam muito a um time como o Bari, que tinha a permanência na Serie A como seu objetivo. Por isso, os ingleses foram recebidos com pompa e entusiasmo pelos torcedores no aeroporto de Palese. Os fanáticos pelos biancorossi seguravam cartazes com frases em inglês e dizeres bastante enfáticos – como “bem-vindos, vocês já estão em nossos corações”. Em seguida, os britânicos se instalaram num bairro próximo ao campo de pouso, à beira-mar, e passaram a conhecer a cultura da Apúlia e os preceitos do técnico Bruno Bolchi.
Os dois ingleses estrearam pelo Bari num jogo da primeira fase da Coppa Italia, contra o Campobasso, terminado em vitória dos apulianos por 1 a 0. Na partida seguinte, pela mesma competição, eles vivenciaram situações bem distintas: enquanto Rideout marcou o gol do empate por 1 a 1 com o Ascoli, Cowans sofreu séria lesão no tornozelo e teve de ficar de molho por dois meses.
Enquanto Sid se recuperava, Rideout pode honrar o pomposo apelido que tinha: Bullet ou “bala”, em português. O Bari foi eliminado da Coppa Italia e perdeu para Milan e Sampdoria nas primeiras rodadas da Serie A, mas reagiu na sequência – e graças a Paul. O inglês anotou uma doppietta sobre a Roma na vitória por 2 a 0, pela terceira jornada do campeonato, e voltou a balançar as redes nos empates com Como e Pisa. O oitavo compromisso dos galletti pelo Italiano serviria para inaugurar a história do Dérbi da Apúlia na elite. E, contra o Lecce, que quase foi o seu destino no verão, o britânico guardou um dos tentos do triunfo por 2 a 0.
Rideout tinha, portanto, cinco gols nas oito primeiras rodadas da Serie A – e, como salientamos, tentos importantes. Porém, a sua fonte secou de forma abrupta e, dali em diante, Bullet só voltaria a marcar uma vez, novamente ante o Como, pela 19ª rodada. Irônica, a torcida do Bari começou a fazer trocadilhos com seu nome: ele virou Ridòt (corruptela de “ridotto” ou “reduzido”, em português), por conta do rendimento diminuto, ou Piangeout, porque seu futebol era “da piangere”. De chorar, sendo bem claro.
Nem mesmo o retorno de Cowans, no final de outubro, modificou a situação do Bari – não obstante suas atuações tenham lhe rendido convocações para a seleção inglesa, que se preparava para a Copa do Mundo de 1986. Para a torcida biancorossa, Sid virou El Cid, em alusão ao guerreiro medieval do Reino de Castela que lutou contra os mouros na Península Ibérica, no século XI. Isso porque Gordon era um combatente em campo, que procurava sempre as melhores decisões. O resto do time, porém, não lhe acompanhava.
Apesar da boa forma de Cowans, os galletti não mantiveram o bom início de temporada e terminaram a Serie A segurando o pior ataque, com míseros 18 gols marcados. O time apuliano venceu somente cinco partidas, não resistiu à má fase e, ocupando a penúltima colocação, foi rebaixado para a segundona ao lado do Pisa e do Lecce, seu arquirrival.
Com a queda para a Serie B, era de se imaginar que Cowans e Rideout decidiriam deixar o Bari. Porém, não foi isso que ocorreu: os dois se ambientaram bem à Apúlia e optaram por permanecer no clube, na expectativa de devolvê-lo à elite.
Sob a batuta de Enrico Catuzzi, que substituiu Bolchi, os ingleses tiveram muito destaque individual em 1986-87. El Cid atuou nas 43 partidas dos galletti na temporada, com quatro gols marcados, e Bullet balançou as redes 10 vezes, com direito a uma tripletta sobre a Sambenedettese e uma doppietta num espaço de apenas um minuto sobre o Arezzo – uma das mais rápidas da história do futebol italiano. O resto do time, porém, não acompanhou o desempenho dos britânicos e o Bari concluiu o campeonato na modesta nona posição.
No verão europeu de 1987, o presidente Matarrese decidiu escutar eventuais propostas pelos atletas estrangeiros. Apesar disso, os ingleses não queriam arredar o pé do sul da Itália e se mostravam dispostos a levar o Bari à Serie A. Cowans e Rideout permaneceram, mas não entregaram o suficiente em 1987-88: o meia perdeu só duas partidas em toda a temporada, mas não marcou gols; já o centroavante colecionou prestações irregulares e só balançou as redes sete vezes. O time de Catuzzi ficou na sétima colocação e deixou a torcida insatisfeita por mais um ano de insucesso.
A desilusão dos torcedores causou protestos contra o presidente Matarrese, que decidiu fazer uma pequena revolução no Bari. Com isso, Cowans e Rideout finalmente deixaram a Apúlia. Sid encerrou sua trajetória com a camisa biancorossa com1 106 aparições e quatro gols marcados, enquanto Bullet anotou 24 tentos em 114 partidas.
O saldo da passagem dos ingleses pelos galletti é consenso entre os bareses: poderiam ter rendido mais, embora não tenham sido completas decepções. A prova de que os jogadores britânicos não deixaram um trauma no Bari e no presidente Matarrese é David Platt. Adquirido junto ao Aston Villa, ele aportou na Apúlia em 1991 – ou seja, poucos anos depois das saídas de Cowans e Rideout. O meia-atacante, inclusive, vestiu a camisa biancorossa por somente uma temporada e se tornou ídolo do clube.
Cowans e Rideout, por sua vez, tiveram ainda longas carreiras pela frente: se aposentariam em 1997 e 2002, respectivamente. El Cid voltou ao Aston Villa e teve um período de sucesso, chegando a tornar a representar a seleção inglesa, em 1990. Gordon ainda teve bons momentos no Blackburn e vestiu as camisas de Wolverhampton, Sheffield United, Bradford, Stockport e Burnley, até pendurar as chuteiras aos 39 anos.
Rideout, por sua vez, se tornou um andarilho – e não apenas pela Grã-Bretanha. O atacante teve desempenho mediano pelo Southampton e ainda representou Swindon Town e Notts County antes de parar no Glasgow Rangers. Na Escócia, ganhou dois títulos, mas na condição de coadjuvante. Paul se reencontrou no Everton, clube que defendeu por cinco temporadas. Em 1994-95, além de ter marcado 16 gols e ter sido artilheiro dos Toffees, foi o nome da campanha de permanência na Premier League e o responsável por anotar o tento que valeu ao time de Liverpool o título da Copa da Inglaterra, conquistado sobre o favoritíssimo Manchester United, que empilhava taças desde 1989.
Na parte final de sua carreira, Rideout explorou a China e os Estados Unidos. No país asiático, vestiu as camisas de Qianwei Huandao, Chongqing Longxin e Shenzhen; na Major League Soccer, representou o Kansas City Wizards. Aos 37 anos, Bullet pendurou as chuteiras em sua terra natal, pelo Tranmere Rovers.
Depois da aposentadoria, os dois se envolveram com a formação de jovens atletas. Rideout se mudou para os Estados Unidos, no intuito de trabalhar a serviço do Kansas City, e se estabeleceu no Missouri. Cowans, por sua vez, continuou a se dedicar a seu amado Aston Villa, que representou 508 vezes como jogador, sendo o terceiro na lista de aparições pelos azuis e grenás. Gordon foi técnico das categorias de base, auxiliar de Gérard Houllier na equipe principal e até mesmo diretor dos Villains. Contudo, desde 2020, o ex-meia se afastou ligeiramente do esporte e vem se tratando da Doença de Alzheimer, que lhe atingiu precocemente, aos 61 anos.
Gordon Sidney Cowans
Nascimento: 27 de outubro de 1958, em West Cornforth, Inglaterra
Posição: meio-campista
Clubes: Aston Villa (1976-85, 1988-91 e 1993-94), Bari (1985-88), Blackburn (1991-93), Wolverhampton (1994-95), Sheffield United (1995-96), Bradford (1996-97), Stockport (1997) e Burnley (1997)
Títulos: Copa da Liga Inglesa (1977 e 1994), Campeonato Inglês (1981), Charity Shield (1981), Copa dos Campeões (1982) e Supercopa Uefa (1982)
Seleção inglesa: 10 jogos e 2 gols
Paul David Rideout
Nascimento: 14 de agosto de 1964, em Bournemouth, Inglaterra
Posição: atacante
Clubes: Swindon Town (1980-83 e 1991), Aston Villa (1983-85), Bari (1985-88), Southampton (1988-91 e 1991), Notts County (1991), Glasgow Rangers (1992), Everton (1992-97), Qianwei Huandao (1997), Kansas City Wizards (1998), Chongqing Longxin (1999), Shenzhen (2000) e Tranmere Rovers (2000-02)
Títulos: Campeonato Escocês (1992), Copa da Escócia (1992), Copa da Inglaterra (1995) e Charity Shield (1995)