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Fúria, sangue e dois Baggios: o roteiro da Itália na vitória sobre a Espanha pela Copa de 1994

A imagem de Roberto Baggio isolando a sua cobrança de pênalti na final da Copa do Mundo de 1994, enquanto Galvão Bueno se esgoelava e abraçava o Rei Pelé faz parte do imaginário do torcedor brasileiro. Porém, antes de chegar à decisão com o Brasil, a Itália comandada pelo lendário Arrigo Sacchi e por gigantes do futebol mundial, como o próprio Robi, Franco Baresi e Paolo Maldini, viveu fortes emoções naquela campanha. Nas quartas, por exemplo, a Nazionale fez jogo tenso contra a Espanha.

Depois do terceiro lugar na Copa de 1990, a seleção italiana chegava aos Estados Unidos como uma das favoritas ao título mundial, apostando nas táticas vanguardistas de Sacchi. O técnico substituiu, em outubro de 1991, Azeglio Vicini, que não conseguiu classificar a Nazionale para a Euro 1992.

Apesar do favoritismo, a primeira fase foi extremamente difícil para os italianos, que foram sorteados numa chave com México, Irlanda e Noruega. No fim das contas, após derrota para os irlandeses, triunfo sobre os noruegueses e empate com os mexicanos, os azzurri se viram numa improvável igualdade quádrupla no Grupo E. Como todas as seleções ficaram com 4 pontos, a definição das vagas foi para os critérios de desempate, que levaram à classificação da Nazionale para as oitavas como uma das terceiras melhores colocadas.

A expressão de Tassotti na caça a Luis Enrique antecipava o que viria pela frente no jogo entre Itália e Espanha (Action Images)

Além de toda a dificuldade que viveu na fase de grupos, a seleção italiana perdeu, por lesão, Alberico Evani e Baresi, que só voltariam a ser utilizados na final da Copa. Nas oitavas, a adversária da Squadra Azzurra foi a perigosa Nigéria de Jay-Jay Okocha, Sunday Oliseh, Finidi George, Peter Rufai e Rashidi Yekini. Se até aquele momento Roberto Baggio não havia brilhado, foi a hora de o craque aparecer. A Nazionale tinha um a menos, por conta da expulsão de Gianfranco Zola, mas o Divin Codino comandou a virada sobre os africanos com um gol no fim do tempo normal e outro na prorrogação.

A adversária da Itália nas quartas foi a Espanha, que tinha campanha invicta até aquele momento da competição. A Fúria ficou na segunda colocação do Grupo C, após empates contra Alemanha e Coreia do Sul, e vitória sobre a Bolívia. Nas oitavas, um triunfo categórico de 3 a 0 sobre a Suíça.

Comandada por Javier Clemente, a Espanha tinha grandes jogadores em seu elenco. A base da equipe era o Barcelona de Johan Cruyff, campeão nacional e vice da Champions League após derrota para o Milan, que forneceu nove atletas para a lista de convocados – Andoni Zubizarreta, Albert Ferrer, Miguel Ángel Nadal, Sergi, Pep Guardiola, Andoni Goikoetxea, José Mari Bakero, Txiki Begiristain e Julio Salinas. Fernando Hierro, Rafael Alkorta e Luis Enrique, do Real Madrid, eram outros nomes importantes daquele elenco.

Na estratégia de Sacchi contra a Espanha, Benarrivo teve carta branca para progredir pelo lado esquerdo (Allsport)

Com muita confiança, os espanhóis vinham de uma medalha de ouro na Olimpíada de Barcelona, em 1992, e, inclusive, venceram a Itália no caminho do título – 1 a 0 nas quartas de final. A Fúria convovou cinco jogadores que haviam participado da conquista (os já citados Luis Enrique, Guardiola e Ferrer, além de Santiago Cañizares e Abelardo), enquanto os únicos integrantes do plantel azzurro remanescentes da delegação olímpica eram Demetrio Albertini e Dino Baggio. De qualquer forma, a partida representava a oportunidade da revanche italiana.

Itália e Espanha formam uma das grandes rivalidades europeias. O início do antagonismo futebolístico entre os países se deu nos Jogos Olímpicos de 1920, na Bélgica, com um triunfo da Fúria. Até o fechamento deste texto, considerando a totalidade de partidas, o número de vitórias é equilibrado: em 39 duelos, 12 espanholas contra 11 italianas. Porém, quando a análise é limitada a confrontos por Copa do Mundo e Eurocopa, temos um verdadeiro atropelo azzurro, com vantagem de cinco a dois para a Nazionale.

Em 1994, a Itália também triunfou. Mas o jogo realizado em Foxborough, cidade próxima a Boston, no nordeste dos Estados Unidos, seria um dos mais disputados da história do confronto – e colocou em evidência o árbitro húngaro Sándor Puhl, que apitaria a final dias depois.

Com um chute de rara felicidade, Dino Baggio abriu o placar (Allsport)

Como um todo, a partida foi muito disputada. Montada no 4-4-2, a Itália se organizava com um meio-campo combativo e buscava as suas principais escapadas pelo lado esquerdo, onde Antonio Benarrivo e Roberto Donadoni tinham liberdade de avançar – o outro flanco era fechado por Mauro Tassotti e Antonio Conte, de características mais defensivas. Logo aos 13 minutos, num contragolpe veloz puxado por Daniele Massaro, Robi Baggio teve a chance de abrir o placar, mas Ferrer travou a finalização do atacante, que ia pegando Zubizarreta no contrapé. A Espanha chegou a assustar em um chute de fora da área de Sergi, mas quem acabou abrindo o placar foi a equipe azzurra.

Dino Baggio abriu na esquerda com Donadoni, que lhe devolveu a bola na entrada da área. O meia da Juventus só teve o tempo de ajeitar e soltar uma bomba com a parte externa do pé direito, tirando a pelota do alcance de Zubizarreta e acertando o ângulo espanhol. Era a injeção de força que a equipe precisava para dar prosseguimento à sua estratégia.

O empate espanhol, porém, quase saiu no minuto seguinte, quando José Luis Caminero cabeceou entre os zagueiros italianos, aproveitando bom cruzamento de Goikoetxea. Gianluca Pagliuca voou para segurar a bola, mas o lance mostrou o quanto o gol azzurro chegou em boa hora. Afinal, a diferença de condicionamento físico entre as duas seleções começava a ficar evidente.

A Itália precisou da consistência de seus dois Baggios para passar pela Espanha nas quartas de final (Allsport)

A metade inicial da primeira etapa foi de muita dedicação dos jogadores da Nazionale ao plano de sufocar e encaixotar os meio-campistas da Fúria, mas o fato é que os hispânicos tinham gozado de três dias a mais de descanso. Sendo assim, uma desgastada Itália tratou de diminuir o ritmo e acionar, de forma mais veloz e vertical, Massaro e Robi Baggio. A não ser por uma perigosa cobrança de falta do camisa 10 azzurro, o jogo permaneceu sem grandes chances até o intervalo.

No segundo tempo, a partida ficou bastante disputada no meio-campo, e a Itália precisou fazer um número elevado de faltas para conter o adversário. Mas, antes dos 60 minutos, o sistema defensivo italiano deu pane completa e a Espanha chegou ao empate com Caminero. Sergi recebeu com liberdade pela esquerda, avançou com a bola e tentou abrir para Luis Enrique. Alessandro Costacurta antecipou, mas pisou na pelota e a devolveu para o próprio Sergi invadir a área e tocar para Jorge Otero. Depois da furada do lateral, a sobra ficou com o meia do Atlético de Madrid, que finalizou e ainda contou com desvio em Benarrivo para matar Pagliuca.

A Itália sentiu o gol e, poucos minutos depois, Pagliuca precisou fazer grande defesa em chute de média distância de Goikoetxea. No lance seguinte, Luis Enrique ganhou dividida com Conte dentro da área e foi derrubado pelo volante, mas o juiz não marcou nada. O cansaço dos azzurri era notório e Sacchi fez a sua segunda substituição na partida – no intervalo, já tinha sacado Albertini e colocado o atacante Giuseppe Signori para fazer a ala esquerda do meio-campo, puxando Donadoni para o centro. Aos 66, Nicola Berti entrou no lugar de Conte, que sentiu cãibras nas pernas.

Com um domínio desconcertante, Robi Baggio limpou Zubizarreta e mandou a Itália para as semifinais (Allsport)

Em cobrança de lateral, a seleção italiana voltou a assustar após finalização de Berti, que obrigou Zubizarreta a colocar para escanteio. Faltando quase 10 minutos para acabar o jogo, foi a vez de Massaro reclamar com o juiz ao ser derrubado por Abelardo dentro da área. Na sequência, Pagliuca precisou sair nos pés de Salinas, que recebeu belo lançamento nas costas da retaguarda azzurra, que jogava adiantada. No rebote, Costacurta – que, inexplicavelmente, havia parado no lance – fez um desarme brilhante para afastar a bola. A pressão espanhola continuou e, em outro chute de média distância, Hierro obrigou o arqueiro a efetuar outra grande defesa.

Aos 87 minutos, a Itália teve liberdade para sair jogando e, finalmente, encontrou o alívio. No meio-campo, Donadoni achou Berti, que levantou a cabeça e lançou Signori nas costas da defesa. A bola ficou entre o atacante da Lazio e Nadal, que saiu para fazer a cobertura, mas não conseguiu: Beppe se antecipou e ajeitou para Roberto Baggio sair na cara do goleiro. Robi recebeu na área, driblou Zubizarreta no primeiro toque na pelota e chutou entre a trave e Abelardo para fazer o segundo gol da Squadra Azzurra.

Nos acréscimos, a Espanha cobrou dois escanteios na esperança de empatar, porém Pagliuca saiu muito bem do gol e acabou com as esperanças do freguês ibérico. Mas ainda havia uma brecha para que ocorresse um lance que marcou a partida – e a Copa do Mundo. No terceiro minuto do tempo extra, Luis Enrique e Tassotti se enrolaram num cruzamento na área e o italiano, nervoso ao tentar se desvencilhar do adversário, desferiu uma cotovelada no espanhol, quebrando-lhe o nariz. Porém, Puhl não viu o acontecido e nada assinalou.

Luis Enrique mostra o resultado da cotovelada de Tassotti ao árbitro Puhl: perdão ao italiano aconteceu mais de uma década depois (Getty)

Revoltado, o espanhol passou a apontar para sua face e sua camisa branca ensanguentadas, exigindo que o árbitro tomasse alguma providência – enquanto os médicos tentavam contê-lo e estancar o ferimento. Foi apenas a posteriori, quando a Fifa analisou as imagens de televisão, que o italiano foi punido. O lateral-direito do Milan recebeu um gancho de oito jogos, mas nunca precisou cumprir a suspensão. Afinal, tinha 34 anos e não mais atuaria pela Nazionale.

Após esse erro gravíssimo da arbitragem, o jogo teve pouco a oferecer – e Luis Enrique, mesmo ferido, seguiu em campo para um último esforço desesperado da Espanha. O fato é que o atacante ficou tão revoltado pela cotovelada que só perdoou Tassotti em 2011, quando ele treinava a Roma e o italiano era auxiliar de Massimiliano Allegri no Milan. Num duelo entre as equipes, após entrevistas coletivas que apaziguaram o ambiente, os dois chegaram a se cumprimentar com um aperto de mão em frente às câmeras.

Voltando a 1994, a Itália ainda venceu a Bulgária de Hristo Stoichkov nas semifinais. por 2 a 1, graças a uma doppietta do craque Roberto Baggio. No entanto, a Squadra Azzurra acabou sucumbindo nos pênaltis para o Brasil de Romário. Infelizmente, os grandes jogos de Robi no mata-mata acabaram apagados pelo erro nos pênaltis. Mas o fato é que, sem o melhor jogador do mundo à época, a Nazionale provavelmente não teria chegado tão longe.

Itália 2-1 Espanha

Itália: Pagliuca; Tassotti, Costacurta, Maldini, Benarrivo; Conte (Berti), D. Baggio, Albertini (Signori), Donadoni; R. Baggio, Massaro. Técnico: Arrigo Sacchi.
Espanha: Zubizarreta; Ferrer, Abelardo, Nadal, Alkorta, Otero; Goikoetxea Caminero, Sergi (Salinas); Bakero (Hierro); Luis Enrique. Técnico: Javier Clemente.
Gols: D. Baggio (25’) e R. Baggio (87’); Caminero (58’)
Árbitro: Sándor Puhl (Hungria)
Local e data: estádio Foxboro, Foxborough (Estados Unidos), em 9 de julho de 1994

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