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O alcoolismo impediu Fabián O’Neill de mostrar sua mágica na Juventus

Quando Zinédine Zidane menciona algum jogador como um dos mais talentosos que viu, é natural vir à mente o nome de ex-companheiros, como Ronaldo e Luís Figo, ou atletas treinados por ele, em especial Cristiano Ronaldo. Porém, as aspas do francês, em entrevista ao jornal Tuttosport, fazem referência a Fabián O’Neill, com quem dividiu vestiário na Juventus por pouco tempo, mas o suficiente para o idolatrar. Zizou se juntou aos uruguaios e aos torcedores do Cagliari, que se encantaram por El Mago. A magia do meia, no entanto, esbarrou na fragilidade humana, com declínio técnico e aposentadoria precoce, aos 30 anos.

Nascido em 1973, na cidade de Paso de Los Toros, localizada a 258 quilômetros de Montevidéu, capital do Uruguai, Fabián carrega o sobrenome do tataravô irlandês que imigrou para o país no século 19. Abandonado pelos pais, foi criado pela avó, a quem auxiliava nas despesas de casa, vendendo salsichas na porta de um bordel. Na época, aos 9 anos, ela já consumia bebidas alcoólicas. Algum tempo depois, a sua fonte de renda mudou drasticamente: aos 15, passou a atuar pelos juvenis do Nacional e, aos 18, foi alçado aos profissionais. Era 1992 e o meia deu uma pequena contribuição na campanha vitoriosa do campeonato nacional.

No ano seguinte, Fabián defendeu a seleção uruguaia na Copa do Mundo Sub-20, onde se destacou com dois gols no triunfo sobre Portugal. Em junho, voltou a vestir a camisa celeste no time principal, na Copa América. Uma lesão, contudo, limitou a participação do meia na competição a um jogo contra os Estados Unidos – que marcou, inclusive, sua estreia pela equipe charrua. Monitorado de perto por europeus, esticou a permanência no futebol sul-americano até 1995 e acertou a ida para a Itália, onde o alcoolismo ganharia outra dimensão em sua vida.

Em novembro de 1995, O’Neill acertou com o Cagliari, clube com conhecida tradição de abrigar talentos uruguaios. Meses antes, por exemplo, adquiriu seu compatriota Darío Silva, que fora seu rival no Peñarol e era agenciado pelo mesmo empresário. Na época, o time sardo tinha o comando de Giovanni Trapattoni, mas Fabián foi escanteado pelo treinador, que entendia que o meia ainda não havia se adaptado à nova realidade.

Contudo, Trapattoni se demitiu após a 22ª rodada, por divergências com o presidente Massimo Cellino, e a chegada de Bruno Giorgi abriu caminhos para O’Neill, que passou a ter mais minutos em campo. Com 17 jogos na temporada de estreia, teve um ótimo momento contra a Atalanta, ao anotar o único gol na vitória dos isolani na partida de ida das quartas de final da Coppa Italia – apesar disso, os casteddu levaram 4 a 2 na volta e foram eliminados. No mês de abril, também deixou sua marca pela primeira vez na Serie A, sobre o Vicenza.

Um início conturbado marcou a largada do Cagliari em 1996-97. Após seis rodadas da Serie A, Cellino demitiu o técnico uruguaio Gregorio Pérez e contratou Carlo Mazzone como substituto. Como o retrospecto sugere, decisões intempestivas geralmente refletem no resultado final. Apesar da contribuição da dupla formada por Roberto Muzzi e Sandro Tovalieri, que tiveram 22 gols somados, o time rossoblù encerrou a competição em 15º lugar, com os mesmos pontos de Piacenza e Perugia, e necessitava sair vencedor do spareggio para evitar o rebaixamento.

Apesar de talentoso, O’Neill jamais conseguiu ter sequência: sua melhor fase se deu com a camisa do Cagliari (Allsport)

Atrás no critério de pontos conquistados em confrontos diretos, o Perugia se juntou a Verona e Reggiana entre os rebaixados. O revés decisivo contra o Piacenza, na partida de desempate, sacramentou a queda do Cagliari e interrompeu uma sequência de sete temporadas consecutivas na Serie A. O’Neill praticamente dobrou seu tempo de jogo, mas não ficou em evidência, principalmente pelo contexto delicado do clube. Camisa 10 do time, ele somou 28 aparições e marcou duas vezes.

Responsável por dois acessos em sequência do Lecce, da Serie C à Serie A, Gian Piero Ventura foi escolhido para recolocar os isolani no topo do futebol italiano. Em uma trajetória regular do começo ao fim, o Cagliari alcançou a promoção em terceiro lugar na tabela, embalado por Muzzi e Silva. O’Neill não apresentou números semelhantes, mas foi titular em 23 partidas e participou diretamente da campanha como o meia articulador do time.

Em 2006, ele revelou ao programa La Caja Negra, da TV Ciudad, de Montevidéu, um episódio na partida do acesso contra o Chievo, em que a paridade bastava aos sardos. Segundo o meia, a peleja havia sido arranjada para que alguns jogadores e criminosos se beneficiassem através de apostas esportivas. Dono da braçadeira, O’Neill contou que negociou a igualdade com o capitão adversário. “O jogo estava 1 a 1 e tudo corria dentro do previsto, mas, nos últimos minutos, houve um gol do Cagliari. Eu era o capitão. E quando voltamos eu disse a eles: o que estamos fazendo? As zagas abriram e o gol (de empate) saiu. Parecia um filme, mas tinha que ser 2 a 2”, explicou. Em outra oportunidade, o uruguaio disse que não sabia da combinação. Os relatos, porém, apresentam versões contraditórias ou situações sem lastro em fatos, de modo que a sua veracidade não pode ser aferida.

De qualquer forma, amadurecido na volta do Cagliari à Serie A, o uruguaio ganhou as companhias dos compatriotas Nelson Abeijón e Diego López, ambos provenientes do Racing Santander, e relembrou os tempos em que lhe chamavam de El Mago em seu país natal: em 31 jogos, anotou cinco gols. Uma das atuações memoráveis de O’Neill pelo time da Sardenha ocorreu justamente na temporada 1998-99, diante da Salernitana. Contudo, não por causa de um golaço inesquecível ou de uma tripletta.

Marcado de perto por um jovem Gennaro Gattuso, o camisa 10 rossoblù efetuou três rolinhos no volante durante os 90 minutos. Em 2017, ele relembrou um diálogo no mínimo inusitado entre os dois. No campo, Rino falou: “Você tem que parar de zombar de mim. Você tem que parar agora ou eu vou te matar”, disse, segundo o uruguaio. O’Neill retrucou: “Escute, cara, você está ficando envergonhado na frente de todos esses torcedores, então talvez seja mais sensato se você parar de me marcar, não acha?”, contou.

No fim das contas, a Sardenha garantiu a permanência de seu representante na Serie A graças aos gols de Muzzi e Patrick Mboma, bem abastecidos por Fabián. Apesar do objetivo alcançado, Ventura entrou em acordo para sair do Cagliari e comandar a Sampdoria em 1999. O substituto escolhido foi o uruguaio Óscar Tabárez, conhecido da casa desde que treinou o time em 1994-95. À primeira vista, a alternativa seria positiva para os charruas do plantel, mas a relação do maestro com O’Neill passou longe de ser amistosa.

Até mesmo durante seus melhores anos no Cagliari, o meia uruguaio conviveu com os efeitos do alcoolismo (Allsport)

Em entrevista à rádio Las Voces del Fútbol, em 2020, o ex-jogador mostrou ressentimento com Tabárez. “Eu não gosto dele, porque ele me mandou embora do Cagliari. Uma vez, por uma brincadeira em campo, fui expulso do treino. Então peguei um táxi para o aeroporto e voltei para o Uruguai. Ele não sabe nada sobre futebol, é apenas um professor de escola”, disparou. De qualquer forma, a animosidade não se prolongou por muito tempo, já que o vulcânico Cellino demitiu o treinador após um empate e três derrotas nas quatro primeiras rodadas da Serie A.

Renzo Ulivieri assumiu o cargo, mas as semelhanças com o rebaixamento anterior, em especial pelas decisões do presidente, estavam imiscuídas na campanha. Na Coppa Italia, por outro lado, os isolani eliminaram Roma e Parma, mas caíram para a Inter nas semifinais. O’Neill fez a diferença na caminhada surpreendente dos rossoblù, com três gols e uma assistência. No entanto, o impacto na Serie A foi mínimo e suas atuações não surtiram grande efeito: os sardos terminaram o campeonato na 17ª colocação, à frente apenas do Piacenza, e pegaram o elevador pela segunda vez em quatro anos.

Desse modo, cinco temporadas depois, o ciclo de O’Neill no Cagliari chegaria ao fim, depois de 136 aparições e 16 gols. Aos 27, ele acertou com a Juventus, onde teria uma passagem sem brilho e apenas com um único admirador: Zidane. Talvez não precisasse de mais do que isso, é verdade. Questionado pelo jornalista argentino Mariano López Blasco, da revista Don Julio, como passou nos exames médicos, o uruguaio respondeu com mais uma de suas anedotas. “Eu tinha colesterol alto e me disseram: ‘você deveria estar morto, não jogando futebol’. Eu nunca parei de beber”, ressaltou.

O ritual de O’Neill antes das partidas se diferenciava dos que os demais jogadores praticavam. “Quando ia entrar no ônibus para seguir com a delegação aos jogos, os cozinheiros me reservavam duas taças de vinho. Eu as pegava rapidamente, subia e arrotava na cara de alguém. [Alessandro] Del Piero, [Gianluigi] Buffon e todos os monstros me perguntavam: ‘você bebeu vinho, Fabián?’ ‘Claro! O que eu vou tomar? Leite, como você?’, eu dizia a eles”, afirmou.

De fato, por todo o comportamento extracampo, que não coadunava com o chamado “estilo Juve”, e até mesmo pelo desleixo com o preparo físico, advindo do alcoolismo e que, como consequência, lhe impedia de atuar com frequência pelo Cagliari, surpreendia a decisão da diretoria bianconera pela contratação do jogador uruguaio. No fim das contas, O’Neill disputou somente 20 partidas em um ano e meio pela Velha Senhora, sendo oito delas como titular – parte disso se devia ao fato de que Zidane era o titular da posição. Zerado em gols ou assistências, ao menos pode incluir em seu currículo o título da Serie A 2001-02. Ainda que, quando a equipe de Turim tenha se sagrado campeã, ele não mais integrasse o elenco.

No início de 2002, a Juventus cedeu O’Neill ao Perugia em troca da chegada de Davide Baiocco. Fabián não desencantou em sua militância pelos grifoni e se despediu após nove partidas e um oitavo lugar na Serie A. Serse Cosmi, que o treinou na Úmbria, afirmou certa vez que o uruguaio era o jogador mais técnico que havia comandado. Porém, sem qualquer comprometimento.

O’Neill teve curta passagem pela Juventus, onde impressionou o craque Zidane, titular da posição (EMPICS/Getty)

O’Neill rescindiu o seu contrato com o Perugia durante o verão europeu de 2002 e ficou sem clube por alguns meses. Nesse meio tempo, foi convocado para representar o Uruguai na Copa do Mundo daquele ano e, lesionado, não entrou em campo. Em agosto, acertou sua volta ao Cagliari, mas se despediu da Sardenha em outubro, antes mesmo de sequer reestrear pelo time.

Na sequência, o meia voltou ao Nacional, seu time de coração, antes de firmar a aposentadoria aos 29 anos. Com barriga avantajada e pernas pesadas, O’Neill mostrou os últimos lampejos de talento contra o Santos de Diego, Ricardo Oliveira e companhia na Copa Libertadores. O Peixe abriu dois gols de vantagem na Vila Belmiro, mas o camisa 13 iniciou a reação que culminaria no empate.

Após pendurar as chuteiras, o ex-jogador revelou que perdeu uma fortuna equivalente a 14 milhões de reais. Porém, diz não ter se arrependido. “Quero seguir assim, não quero estar do lado dos ricos. Nunca quis, o rico era eu. Por sorte, ficaram alguns princípios. Pouquinhos, mas ficaram. Em Paso de los Toros, ficaram alguns princípios. Gente que vê que eu estou mal e me estende a mão”.

Embora tenha vivido de favores por muito tempo, O’Neill recebeu incentivos e abriu novos negócios, como uma fazenda de criação de ovelhas, mas não teve sucesso. Sua biografia, chamada “Até a Última Gota” – adquirida por Zidane – foi lançada em 2013 e se tornou best-seller no Uruguai, mas ele afirmou que não recebeu um centavo das vendas. Do conteúdo, rechaçou apenas um trecho. “A única mentira do livro, porque o resto é verdadeiro, é esta frase: ‘Tenho 39 anos e bebo há 30. É hora de parar’. Hora de parar? Vou beber até morrer”, disse ao jornalista López Blasco.

E não estava blefando. O’Neill veio a falecer de cirrose crônica, aos 49 anos, em 25 de dezembro de 2022. Marina, uma das suas filhas, relata que ele, no auge da dependência química, já não transmitia o mesmo brilho e alegria. Ídolo no Uruguai e na Itália, Fabián foi alimentado pelo entusiasmo dos torcedores, causado por ele próprio. Imperfeito como era, não soube lidar com a adrenalina do jogo e, depois da aposentadoria, não conseguiu viver sem ela. “Você não tem medo de nada?”, perguntaram-lhe. “Da morte. É a única coisa. Eu não quero morrer ainda. A vida é divina”, respondeu.

Fabián Alberto O’Neill Domínguez
Nascimento: 14 de outubro de 1973, em Paso de los Toros, Uruguai
Morte: 25 de dezembro de 2022, em Montevidéu, Uruguai
Posição: meia-atacante
Clubes: Nacional (1992-95 e 2002-03), Cagliari (1995-2000 e 2002), Juventus (2000-02) e Perugia (2002)
Títulos: Campeonato Uruguaio (1992) e Serie A (2002)
Seleção uruguaia: 19 jogos e 2 gols

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