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Ruud Gullit ajudou Milan e Samp a atingirem períodos mais ricos de suas histórias

O ano de 1974 era da seleção holandesa. Os torcedores viam aqueles jogadores trajando um uniforme laranja e jogando um futebol diferente desde a abertura da Copa, contra o Uruguai. À época, o filho de um holandês com uma imigrante do Suriname tinha 12 anos e via o mecanismo da equipe montada por Rinus Michels. Ruud Gullit – nascido Ruud Dil, com o sobrenome de sua mãe – cresceu ao lado de Johan Cryuff, fez história em seu país, na Itália, na Inglaterra, ganhou Bola de Ouro e virou sinônimo de engajamento político.

O gosto pelo futebol veio cedo. Aos 11 anos, Ruud já atuava pelo Meer Boys. Os insultos racistas que sofria na escola eram amenizados quando voltava para casa. Para ele, os dias não eram dias se não jogasse bola na ruas da zona oeste de Amsterdã com Frank Rijkaard.

Ele passou pelo DWS, onde entrou no raio das seleções de base holandesas, antes de parar no Haarlem por conta de uma rixa com o Ajax. Um dos treinadores das camadas de baixo dos Godenzonen queria contratá-lo, mas foi arrogante com o jovem atleta, por conta de suas origens. Assim, o jogador pediu ao seu pai para usar o sobrenome em sua camisa de jogo, ao invés de Dil, porque “não era um nome de jogador de futebol”.

No Haarlem, Gullit começou a ter destaque em nível nacional: foi o mais jovem jogador a estrear na Eredivisie, aos 16 anos, e foi eleito o melhor jogador da segunda divisão do país no ano seguinte, com apenas 18. Gullit fez 14 gols nesta temporada e repetiu a marca na seguinte, quando levou o clube à quarta posição do campeonato holandês, melhor em sua história e única vez que a equipe se classificou para uma competição europeia. Lá, Gullit também fez o que considera o seu melhor gol na carreira, contra o Utrecht, quando passou por quatro marcadores e pelo goleiro antes de marcar.

Gullit marcou época no Milan e no Marassi (imago)

Três temporadas depois, seu segundo clube foi o tradicional Feyenoord, que o contratou porque os treinadores de Arsenal e Ipswich Town acharam que pagariam muito por uma aposta arriscada. Nos três anos que passou na equipe de Rotterdam, Gullit teve o prazer de conviver com Johan Cruyff, que fazia sua última temporada em 1983-84, o que proporcionou que o jovem aprendesse muito com o camisa 14 e ajudasse a levar o time ao título da Copa da Holanda – na qual foi artilheiro, com 9 gols – e à dobradinha, com o título da Eredivisie. Gullit marcou 15 gols, 13 a menos que o artilheiro Marco van Basten, com o qual dividia vestiários na seleção holandesa e dividiria na Itália, anos depois. Em 1984, Gullit foi eleito jogador holandês do ano.

O conhecimento aprendido com Cruyff foi mais uma lição para Gullit, adaptável ao conceito de Futebol Total. Por sua força física e técnica, o jogador conseguia fazer diversas funções em campo: começou como líbero, mas jogou também como meia, trequartista e segundo atacante. Tudo o que aprendeu com Cruyff, levou para o PSV, onde foi bicampeão nacional, nos dois anos em que passou no clube, jogando em todas as partidas.

Máquina de fazer gols, marcou 53 gols em um ano e recebeu uma série de honrarias, como a Chuteira de Ouro holandesa, a Bola de Ouro da France Football e o prêmio de Melhor do Mundo pela Fifa, os dois últimos em 1987, recebidos quando já havia sido contratado pelo Milan. No discurso de agradecimento ao prêmio mundial, Gullit dedicou o prêmio a Nelson Mandela, fato que causou estranheza à imprensa. O ato, entretanto, abriu um sorriso num momento conturbado na vida de Mandela, que, naquele ano, estava preso.

O jogador rastafári foi levado ao Milan por 13,5 milhões de liras, constituindo recorde, à época, para na história rossonera. A contratação de Silvio Berlusconi, que começava a incrementar seu investimento no clube, no segundo ano de sua presidência, visava suprir a saída de Ray Wilkins, vendido ao Paris Saint-Germain. Além de Gullit, foram contratados naquela temporada Carlo Ancelotti, Marco van Basten e Roberto Donadoni. Para adequar as peças que tinha à disposição, Arrigo Sacchi, inicialmente, colocou Gullit – rapidamente apelidado de Simba por sua cabeleira – à direita do ataque formado por Pietro Paolo Virdis e Marco van Basten.

Gullit foi um dos atacantes mais notáveis que o Milan já teve (imago)

Entretanto, a lesão de van Basten centralizou o posicionamento do meia, que marcou nove gols em sua primeira temporada em Milão, ajudando os rossoneri a vencerem o primeiro campeonato nacional em nove anos, justo sobre o Napoli de Maradona – uma conquista mais saborosa, segundo o holandês. Ele, em entrevista concedida em 2010, diz que se lembra perfeitamente das sessões de futevôlei que começavam 45 minutos antes de cada treinamento. O aperfeiçoamento em chutes sem-pulo e o domínio de bola no peito, suas características, foram frutos de treinos com requintes de brincadeira.

Gullit foi titular na seleção comandada por Rinus Michels na Eurocopa de 1988, conquistada pela Holanda, com grande exibição de van Basten. O capitão da Oranje, entretanto, teve parte de sua história no Milan interrompida por uma lesão nos ligamentos do joelho direito, em 1989, que lhe restringiu a duas partidas na temporada e quase lhe custou a participação na Copa de 1990. Bicampeão com a equipe milanista, quase invencível, da Copa dos Campeões, em 1988-89 e 1989-90, e da Supercopa Europeia e do Mundial Interclubes, em 1989 e 1990, jogou mais um ano sob tutela de Sacchi.

A mudança técnica para Fabio Capello não tirou o status de titular inquestionável do trequartista ao lado de Donadoni, Rijkaard e Evani. Até mesmo George Best tirou o chapéu para o rastafári: “ele tem todos os atributos. Ele é um jogador melhor que o Maradona. Você simplesmente não consegue derrubá-lo. Foi a mesma coisa com Pelé, Beckenbauer e Cruyff”. Sua grande fase, assim como a de seus companheiros holandeses do Milan, porém, não fizeram a seleção chegar ao título da Euro 1992, vencida pela Dinamarca dos irmãos Laudrup, que a eliminou nas semifinais.

Porém, nem os dois scudetti vencidos e duas Supercoppas Italianas após a chegada do treinador friulano foram capazes de fazer com que Gullit permanecesse em Milão até o fim de sua carreira. Nem mesmo a “Gullitmania”, que faziam os tifosi usarem perucas nas partidas em homenagem a Gullit, fizeram o jogador permanecer em Milanello. O holandês perdeu espaço com Capello após as chegadas de Dejan Savicevic, Zvonimir Boban, Jean-Pierre Papin e Gianluigi Lentini, apesar do ótimo futebol apresentado, e mudou-se para a Sampdoria, por empréstimo.

Em Milão, foram tempos de Gullitmania (Interleaning)

Era outro ambiente para Gullit, naquele outono de 1993. Sven-Göran Eriksson se tornou seu amigo, havia respeito mútuo e o time jogava um futebol “no stress”. O título da Coppa Italia carimbou a temporada impressionante do cabeludo: foi artilheiro da equipe com 15 gols, três a mais que o atacante Roberto Mancini. Ele voltou ao Milan em 1994, mas jogou apenas oito vezes antes de retornar à Gênova. Pela Laranja Mecânica, seu péssimo relacionamento com Dick Advocaat o fizeram abandonar a seleção pouco antes da Copa de 1994, já nos treinamentos preparatórios para o torneio.

O assédio na Itália voltou a fazer com que Gullit se sentisse espremido. Ele achava que todo esse amor dos torcedores o aprisionavam. “Uma vez, estava jantando em um restaurante e o dono perguntou se eu podia lhe fazer um favor. ‘Pode ir lá fora por um segundo?’. Eu respondi que gostaria de permanecer sentado, e comendo. Ele insistiu. Fui à porta do restaurante, acenei e sorri aos torcedores, e voltei para dentro. Isso não aconteceu apenas uma vez. Era repetitivo”.

Farto de todas essas exigências do futebol italiano e querendo escapar da confusão causada pelo fim de seu casamento com Cristina Pensa, não foi preciso tanta persuasão do Chelsea para tirá-lo da Sampdoria – de graça. Gullit achou seu lugar em Londres. Os fãs o louvavam, mas com respeito e sutileza. Ele podia ir ao Piccadilly Circus ou Soho sem incômodos. Dentro de campo, Glenn Hoddle recuou seu posicionamento para o centro do meio-campo. O entrosamento com seus companheiros, como Gianfranco Zola e Gianluca Vialli, foi rápido e o holandês foi nomeado, ao fim da temporada, como o 2º melhor jogador do ano.

Nos Blues, Gullit acumulou as funções de jogador e treinador, na temporada seguinte, após a saída de Hoddle para a seleção inglesa, e conquistou o título da Copa da Inglaterra, sagrando-se primeiro treinador estrangeiro a vencer em solo britânico. Em 1997-98, Gullit não jogou e ficava apenas comandando a equipe, com bons resultados: o time encontrava-se na segunda colocação da Premier League e estava nas quartas de final da Copa da Inglaterra e da Copa da Liga Inglesa. Mesmo assim, acabou demitido por uma rixa com Ken Bates, dirigente do clube.

Holandês também passou pela Sampdoria, pela qual levantou um troféu (Wikipedia)

Cinco meses depois, acertou com o Newcastle para provar ao Chelsea que o errou em demiti-lo. Gullit adorou o time, a cidade e os torcedores. Mas ele errou em apenas uma coisa: deixou Alan Shearer no banco de reservas em um dérbi contra o Sunderland. Após a derrota, não deu outra: demissão.

Ruud Gullit ficou anos sem comandar um clube e retornou à função apenas em 2004, para treinar o Feyenoord, que concluiu o campeonato em uma decepcionante 4ª colocação. Dois anos depois, assumiu o Los Angeles Galaxy, mais uma vez sem sucesso e com relações difíceis com os jogadores, como Landon Donovan e Abel Xavier.

De cabelos cortados e barba aparada, tornou-se jornalista e era presidente do Comitê Organizador da candidatura de Holanda e Bélgica à sede da Copa do Mundo de 2018. Hoje, treina o Terek Grozny, da conturbada região chechena da Rússia.

Ruud Gullit
Nascimento: 1º de setembro de 1962, em Amsterdã (Holanda)
Posição: líbero, meia, meia-atacante
Clubes como jogador: Haarlem (1979-82), Feyenoord (1982-85), PSV (1985-87), Milan (1987-1993 e 1994), Sampdoria (1993-94 e 1994-95), Chelsea (1995-98)
Títulos como jogador: Segunda divisão holandesa (1981), Eredivisie (1984, 86 e 87), Copa da Holanda (1984), Serie A (1988, 92 e 93), Supercoppa Italiana (1988, 92 e 94), Copa dos Campeões (1989 e 90), Supercopa da Uefa (1989 e 90), Mundial de Clubes (1989 e 90), Coppa Italia (1994), Eurocopa (1988)
Clubes como treinador: Chelsea (1996-98), Newcastle (1998-99), Feyenoord (2004-05), Los Angeles Galaxy (2007-08), Terek Grozny (2011-)
Títulos como treinador: Copa da Inglaterra (1997)
Seleção holandesa: 66 jogos e 17 gols

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