carta de despedida nesta terça-feira (Ansa)
Por volta das 11 horas (horário de Brasília) de ontem, o então patrono e presidente de honra da Fiorentina, Diego della Valle, anunciava o fim de seu tempo à frente do clube. Fato que parecia impensável se considerada a paixão que ele e seu irmão, Andrea della Valle, dedicavam ao clube ao longo dos últimos oito anos. Mas que ganhou corpo por uma série de razões de importâncias distintas.
É possível dizer que o estopim para a decisão de Diego della Valle tenha sido um fato “menos importante”. Na última semana, ele e Cesare Prandelli, treinador estimado que está há cinco anos no comando técnico do clube, entraram em atrito. O patrono ficou irritado com os fortes rumores que colocavam Prandelli como o técnico preferido para a próxima temporada pela Juventus – o clube mais odiado pelos torcedores da equipe de Florença. A ponto de della Valle dar um ultimato a seu treinador, por meio do diário La Gazzetta dello Sport: “Os contratos devem ser respeitados. Diga claramente se vai ou não para a Juventus”. Para Prandelli, as palavras “soaram como uma dispensa”, declaração também dada através da imprensa.
Na partida da última rodada (Fiorentina 4-1 Udinese), Prandelli encontrou o público do Artemio Franchi a seu favor. Conforme apurou o Corriere dello Sport em um dos grandes furos do jornalismo esportivo italiano nos últimos anos, della Valle interpretou o carinho dos torcedores como uma clara demonstração de oposição à diretoria. Oposição que já estaria sendo demonstrada desde a cessão de Felipe Melo à Juve: grande parte da torcida mostrava certa animosidade e acusava a família de não reinvestir os 20 milhões de euros recebidos pela operação. Pela primeira vez desde a chegada dos della Valle, o mercado viola era julgado ineficiente.
Mas por trás destes fatos existe uma razão mais importante para a decisão de Diego della Valle, esta importantíssima: o projeto da Cittadella Viola. Desde sua chegada à sociedade, os irmãos della Valle pregavam que o clube só seria viável se fosse auto-sustentável, e a construção da Cittadella Viola seria o grande transformador de sua realidade. A idéia era construir uma pequena cidade dentro de Florença, na qual tudo girasse em torno da Fiorentina, esportiva e comercialmente, com um novo estádio, hotéis, lojas, galerias de arte e de fotografias.
O projeto foi aclamado pelos empreendedores locais, que vislumbraram uma bem-feitoria que iria muito além do panorama esportivo, com a possibilidade de fomentação do turismo e atração de investimentos externos para a cidade. Para a prefeitura de Florença, porém, as coisas não estavam tão bem definidas. Os irmãos declaravam que o dinheiro para a compra do terreno sairia de seus próprio esforços. Mas a área que eles desejavam individualizar era uma, e a que a prefeitura disponibilizava, outra. Além disso, por ser a Cittadella Viola um projeto que mudaria significativamente parte de Florença, tornando-se parte integrante da cidade, os della Valle esperavam que a prefeitura local agilizasse negociações e trâmites burocráticos para viabilizar a construção. Sem sucesso.
Este nó jamais foi desfeito, e o projeto, que ainda pode decolar a qualquer momento, não saiu do papel. Este pode ter sido o misterioso motivo pelo qual o então presidente da Fiorentina, Andrea della Valle, tenha se demitido do cargo, em setembro de 2009, ainda que tenha se mantido em seus quadros societários. Na época, ele declarou que foi um ato para “agitar” o ambiente do clube. E se foi isso que fez com que o clube conquistasse a vaga na Liga dos Campeões, jamais saberemos.
Desenhou-se, enfim, um grande quadro, que misturou a frieza da política e dos negócios com a paixão esportiva por um clube, uma história e uma cidade. Variáveis distintas que, pelo menos na Itália, o futebol moderno ainda não consegue conjugar em harmonia. Num futebol de origens citadinas, como o italiano, em que os clubes nascem para representar cidades, as premissas básicas para sua constituição como empresas são inerentes à sua própria formação: a cidade em que nasce lhe dá procedência de marca; o público da cidade, seus torcedores em potencial, garante-lhe mercado; e os campeonatos em que participar, sejam de categorias mais ou menos importantes, dão a exata noção de concorrência. Uma empresa comum não precisaria de mais do que isso para se orientar ao lucro.
É inútil, porém, pensarmos em lucro ou mesmo subsistência no futebol italiano quando o que está em voga nas sociedades futebolísticas é o mero colaboracionismo patronal: os clubes que são constituídos como empresas cotadas na Bolsa raramente dão lucro a seus acionistas, mas dependem deles e de seus investimentos para sobreviverem. Trata-se mais de um mecenato esportivo do que da valorização de um verdadeiro ativo também estratégico.
A Cittadella Viola e o plano contínuo de investimentos, em tese, iriam nadar contra esta corrente. Mas todos sabemos que provocar mudanças tão drásticas num meio conservador como o futebol italiano não é das coisas mais fáceis: o simples fato de tirar a Fiorentina do Artemio Franchi para fazê-la jogar num estádio de propriedade, dentro de sua própria cidade (a Cittadella, não Florença), geraria um prejuízo incalculável para o governo local, seja pela perda da renda pelo uso do estádio municipal, seja por um risco de dissociação de clube e cidade… A criação de uma nova procedência que constituiria a Fiorentina como um fim em si próprio, e não uma bandeira de Florença para a Europa e o mundo.
Conjecturas políticas e especulatórias podem, ainda, não ter posto fim ao sonho de um projeto do gênero, mas esgotaram a paciência de Diego della Valle, para quem a paixão não pôde resistir a um flagrante mau negócio (de milhões não investidos e não lucrados, diga-se). E, neste panorama, bastou um pequeno mal entendido para que tudo ruísse. Em sua carta de despedida aos torcedores, ele foi claro ao dizer que eram inaceitáveis as manipulações de “quem quer jogar a torcida contra a sociedade”, e pediu para que os torcedores estejam atentos às pessoas que usavam seu amor ao clube para justificar desejos e atos pessoais. Depois disso, passou o bastão para seu irmão, Andrea, presidente demissionário e ainda sócio do clube.
Diego della Valle levou a cidade de Florença a estado de total comoção com a simples menção de sua saída, anteontem, e chocou todo o ambiente com sua real desistência. Talvez o final triste do filme da Fiorentina de Vittorio Cecchi Gori, morta esportiva e financeiramente, passou pela cabeça de seus milhares de seguidores. Não seria para menos, afinal a squadra viola voltou a ser grande nas mãos dos della Valle. Adquirida em 2002 após o rebaixamento à Serie B e a falência, o clube conseguiu manter atividade ininterrupta, ainda que para isso tenha pagado o preço de ser inscrito no modesto campeonato da extinta Serie C2 (quarta divisão) e ter seu nome mudado para Florentia Viola, pois perdera os direitos sobre a marca. A ambição dos irmãos fez com que o processo de renascimento do clube se acelerasse: a Florentia Viola venceu a C2, recuperou seu nome original, teve aceito um pedido de repescagem para a Serie B e acabou para a Serie A, tudo isso em apenas duas temporadas.
Os della Valle também recolocaram a Fiorentina no mapa europeu. Ao todo, foram três classificações para a Liga dos Campeões (uma delas anulada, após punição por envolvimento de seus proprietários no Calciopoli) e uma para a antiga Copa da Uefa. Hoje, os viola buscam uma vaga na Liga Europa, que pode vir via campeonato ou Coppa Italia, competição na qual o clube disputa as semifinais. De acordo com o diretor esportivo do clube, o ótimo Pantaleo Corvino, a propriedade continua forte, com Andrea Della Valle no comando, a confirmação de Prandelli como técnico do clube (que veio apenas depois da saída do patrono Diego) e a equipe concentrada na busca de seus objetivos. Pode ser. Mas é outra crise societária que escancara o retrógrado ambiente do futebol italiano.