No últimos dias de maio de 2016, uma era acabava: após 13 anos de trabalho, o técnico Mircea Lucescu anunciava que deixaria o Shakhtar Donetsk para assinar com o Zenit, da Rússia. O romeno ficou conhecido por montar uma legião brasileira no leste da Ucrânia e transformar o estilo praticado pelo time, mas o que muita gente não lembra é que Lucescu passou boa parte de sua carreira no futebol italiano.
Bem antes de se tornar um treinador de nível mundial, Lucescu construiu longa história como jogador. Como ponta-direita, ele se tornou um dos mais importantes atletas romenos de seu tempo e da história do país, seja em nível de clubes seja em nível de seleção. Vestindo a camisa do Dinamo Bucareste, time que rivaliza com o Steaua pelo posto de mais popular da Romênia, Lucescu faturou sete ligas nacionais e ganhou vaga como titular absoluto do selecionado nacional. O ponto alto de sua carreira foi a participação na Copa do Mundo de 1970, na qual capitaneou a Tricolorii em uma campanha que teve uma vitória e duas derrotas – uma delas para o Brasil.
Lucescu sempre foi conhecido por ser um homem educado e culto, com espírito de liderança – ostentar a braçadeira de capitão da Romênia mostra isso. Antes mesmo de encerrar sua carreira como jogador de futebol, Mircea começou a atuar como treinador do Corvinul Hunedoara, da segundona do país balcânico. Não demorou para que ele logo recebesse o cargo de comissário técnico da seleção nacional, que ocupou entre 1981 e 1986.
À frente da Romênia, Lucescu conseguiu uma classificação à Euro 1984, em uma época na qual somente uma seleção por grupo ganhava vaga – inclusive, a Tricolorii caiu na chave da Itália, que foi eliminada fragorosamente. Os romenos não avançaram na competição continental, mas o técnico ajudou a montar a base que foi ao Mundial em 1990 e deu as primeiras oportunidades ao mito Gheorghe Hagi.
Após o trabalho na Romênia, Lucescu voltou para o Dinamo Bucareste, onde conquistou duas copas locais, três vice-campeonatos da primeira divisão e um título romeno. Foi o último passo para que o Mister iniciasse sua carreira internacional: assinou com o Pisa, time ioiô da Itália na década de 1980. Em 1990, a equipe toscana voltava à Serie A e apostava no ofensivo treinador balcânico.
Na cidade da torre inclinada, Lucescu tinha a sua disposição alguns bons jogadores, como os argentinos Diego Simeone e José Chamot, o dinamarquês Henrik Larsen e os italianos Alessandro Calori e Michele Padovano. Os nerazzurri começaram o campeonato com duas vitórias, mas depois acumularam resultados ruins, como um duplo 4 a 0 para a rival Fiorentina, um 6 a 3 diante da Inter e um 5 a 1 sofrido contra a Juventus. Já na zona de rebaixamento, o romeno acabou sendo demitido pelo presidente Romeo Anconetani e deixou o comando dos pisanos em março de 1991.
Mircea Lucescu, no entanto, permaneceu na Itália e assinou com o Brescia, então na Serie B. A equipe não era das mais fortes – tinha apenas os laterais Edoardo Bortolotti e Daniele Carnasciali e o atacante Maurizio Ganz como jogadores relevantes –, mas subiu para a elite com folga. Em 1992, o empresário Gino Corioni se tornou presidente do Brescia e decidiu investir na equipe, dando ao romeno um grande número de reforços.
Lucescu pediu e quatro de seus compatriotas foram contratados – três deles velhos conhecidos do treinador. A principal contratação foi a do craque Hagi, mas o Brescia também acertou com os volantes Dorin Mateut e Ioan Sabau, além do atacante Florin Radociuiu. Hagi jogou em quase todas as partidas da Serie A e Raducioiu marcou 13 gols, sendo um dos principais goleadores da temporada, mas a Leoenssa acabou o campeonato 1992-93 na 16ª posição, com 30 pontos. Fiorentina e Udinese alcançaram a mesma pontuação e a definição de dois rebaixados passou pelos confrontos diretos – critério que definiu a queda viola – e por uma partida de desempate entre brescianos e friulanos. Após a derrota por 3 a 1 para os bianconeri, a queda dos andorinhas foi definida.
Em 1993-94, o Brescia de Lucescu perdeu parte de sua colônia romena: Mateut e Raducioiu saíram para Reggiana e Milan, respectivamente. Hagi continuava como o principal jogador do time e ajudou as andorinhas a conquistar um suado retorno imediato para a elite. A segunda divisão italiana era muito forte na época e tinha jogadores como Gabriel Batistuta, Stefan Effenberg, Francesco Baiano (os três da Fiorentina), Igor Protti (Bari), Oliver Bierhoff (Ascoli), Giuseppe Galderisi (Padova), Enrico Chiesa (Modena), Andrea Carnevale, Stefano Borgonovo, Ubaldo Righetti (trio do Pescara), Dario Hübner (Cesena), Filippo Inzaghi, Gianluca Pessotto e Damiano Tommasi (do Verona).
Naquela temporada, os brescianos também conquistaram a Copa Anglo-Italiana, disputada entre times das segundas divisões de Inglaterra e Itália. Os comandados de Lucescu passaram invictos pela fase de grupos e penaram nas semifinais, diante do Pescara e, na final, disputada em Wembley, venceram o Notts County por 1 a 0. Este foi o único troféu internacional da história dos andorinhas.
O ano seguinte foi bastante triste para os lombardos, que caíram para a Serie B mais uma vez, conquistando apenas duas vitórias e somando apenas 12 pontos – recorde negativo na história do torneio, mantido até hoje. Lucescu ficou no comando do time até a 20ª rodada, conquistando apenas uma vitória neste período. O romeno até voltou ao clube para a disputa da Serie B, em 1995-96, mas foi demitido após uma campanha opaca. Ainda assim, Lucescu é o técnico que mais tempo ocupou o cargo no Brescia e um dos mais importantes da história do clube.
O mister romeno também treinou outros dois times italianos por um curto período. Em 1996-97 Lucescu foi demitido da Reggiana (que seria rebaixada) depois de apenas 10 rodadas, e em 1998-99 substituiu Gigi Simoni na Inter: assumiu na 12ª rodada e foi demitido na 26ª, em uma mostra de como a equipe nerazzurra estava turbulenta naqueles tempos.
Antes de chegar ao Shakthar Donetsk, em 2004, Mircea Lucescu conquistou três títulos no futebol romeno quando comandava o Rapid Bucareste, terceira força do país balcânico. Em 2000, o romeno foi contratado pelo Galatasaray, clube no qual os compatriotas Gica Hagi e Gica Popescu eram ídolos e também foi campeão nacional – além de ter ganhado uma Supercopa Uefa – na ocasião, Lucescu comandou os brasileiros Taffarel, Capone e Mário Jardel. Na Turquia, o treinador romeno também venceu a Süper Lig com o Besiktas, em 2003.
Após alcançar sucesso internacional com os clubes turcos, Mircea Lucescu recebeu proposta do Shakhtar, em uma época em que começava a circular dinheiro no futebol ucraniano. Ele simplesmente revolucionou o esporte na antiga república soviética e alçou o time laranja e preto de patamar, tanto em nível nacional quanto internacional. Isto aconteceu não somente por conta de resultados, mas por causa do envolvente e ofensivo futebol praticado pela equipe.
Sob o comando do Mister, a equipe de Donetsk faturou 21 dos 32 títulos que tinha até então, incluindo oito troféus da Premier League ucraniana e um da Copa Uefa – sem contar outros bons resultados em nível continental, como quando foi semifinalista da Liga Europa (2016) e alcançou as quartas (2011) e oitavas (2013 e 2015) da Liga dos Campeões. Neste período, vários ótimos jogadores passaram pelas mãos do treinador, que os valorizou: casos de Anatoliy Tymoshchuk, Darijo Srna, Henrikh Mkhitaryan e os brasileiros Taison, Marlos, Luiz Adriano, Brandão, Jadson, Fred, Fernandinho, Alex Teixeira, Willian, Douglas Costa, entre outros. Nada mal para quem teve sucesso no futebol italiano apenas pelo modesto Brescia.
Quando acertou com o Zenit, Lucescu já tinha deixado um outro legado importante: Razvan, seu filho, também trilhava uma boa carreira como técnico, e já comandara até a seleção romena. Pelo time de São Petersburgo, porém, Mircea não teria sucesso: faturou a Supercopa da Rússia, mas não classificou os azuis para a Champions League e foi demitido um ano depois.
Em seguida, Lucescu substituiu Fatih Terim na seleção da Turquia e também não fez um bom trabalho, chegando a ser rebaixado para a Liga C da Nations League da Uefa. Depois disso, acabou pulando o muro na Ucrânia e topou treinar o Dynamo Kyiv, maior rival do Shakhtar Donetsk. Inicialmente, protestos da torcida quase levaram à sua demissão, mas o romeno persistiu, ganhou três títulos e permaneceu no cargo até 2023, quando se demitiu justamente após uma derrota para os mineiros. Em agosto de 2024, 38 anos depois de sua primeira passagem, reassumiu a Romênia, uma das surpresas da Euro encerrada pouco antes, com foco na classificação para a Copa de 2026.
Mircea Lucescu
Nascimento: 29 de julho de 1945, em Bucareste, Romênia
Posição: meia-atacante
Clubes em que atuou: Dinamo Bucareste (1963-65, 1967-77 e 1989-90), Stiinta Bucareste (1965-67) e Corvinul Hunedoara (1977-82)
Títulos como jogador: Campeonato Romeno (1964, 1965, 1971, 1973, 1975, 1977 e 1990), Copa da Romênia (1968) e Segunda Divisão Romena (1980)
Carreira como treinador: Corvinul Hunedoara (1979-80), Romênia (1981-86 e 2024), Dinamo Bucareste (1985-90), Pisa (1990-91), Brescia (1991-96), Reggiana (1996-97), Dinamo Bucareste (1997-98 e 1999-2000), Inter (1998-99), Galatasaray (2000-02), Besiktas (2002-04), Shakthar Donetsk (2004-16) e Zenit (2016-17), Turquia (2017-29) e Dynamo Kyiv (2020-23)
Títulos como treinador: Segunda Divisão Romena (1980), Copa da Romênia (1986, 1990 e 1998), Campeonato Romeno (1990 e 1999), Serie B (1992), Copa Anglo-Italiana (1994), Supercopa da Romênia (1999), Supercopa Uefa (2000), Campeonato Turco (2002 e 2003), Copa da Ucrânia (2004, 2008, 2011, 2012, 2013, 2016 e 2021), Campeonato Ucraniano (2005, 2006, 2008, 2010, 2011, 2012, 2013, 2014 e 2021), Supercopa da Ucrânia (2005, 2008, 2010, 2012, 2013, 2014, 2015 e 2020), Copa Uefa (2009) e Supercopa da Rússia (2016)
Seleção romena: 70 jogos e 9 gols