Técnicos

O politizado Renzo Ulivieri luta a favor do futebol como um bem comum

Atualmente, os princípios do chamado “futebol moderno” comandam o esporte na Itália. A expressão, já batida, é muitas vezes associada ao saudosismo e a pessoas contrárias à evolução da modalidade, mas o fato é que o processo de modernização do futebol foi relativamente repentino e o descontrole do avanço de alguns setores – como o financeiro – lhe deu um tom completamente diferente em poucos anos. Times agora têm como donos empresários que muitas vezes nem são do mesmo país do clube, jogadores são vendidos por fortunas com frequência e ingressos se tornaram artigos de luxo que apenas aqueles com maior poder aquisitivo têm acesso. O treinador Renzo Ulivieri rejeitou a ideia de aceitar todas as mudanças sem diálogo e resolveu ser um agente de transformação, não apenas um porta-voz.

Nascido em uma modesta cidade na Toscana, Ulivieri começou a carreira como meio-campista nas categorias de base da Fiorentina em 1958, e depois de uma fracassada experiência no Cuoiopelli, quando foi rebaixado para a quarta divisão, resolveu encerrar sua jornada como atleta e começar sua trajetória como técnico já em 1965, aos 24 anos. Enquanto estava na Fiorentina, Renzo se formou em educação física, e resolveu perseguir seu sonho de ser treinador da Serie A o mais rápido possível. Na realidade, este sempre foi o seu maior objetivo e a atividade que mais fazia seus olhos brilharem.

Os 13 primeiros anos de Ulivieri como treinador se passaram na sua Toscana. Depois de treinar o próprio Cuoiopelli e outros times pequenos (San Miniato, Prato e Fucecchio) tanto no profissional quanto no juvenil, Renzo chegou ao Empoli em 1974, para a terceira divisão. O jovem técnico sabia que deveria percorrer um longo e educativo caminho, sem atalhos, visto que seu caso não era comum e sua bagagem futebolística era consideravelmente menor que a de seus concorrentes no mercado.

No início de sua carreira, o toscano comandou a Sampdoria, equipe em que trabalhou com jogadores como Liam Brady (Arquivo/UC Sampdoria)

Depois de resultados medianos e uma passagem no setor juvenil da Fiorentina, Ulivieri assumiu a Ternana, participante da Serie B de 1978-79. O treinador obteve resultados sólidos no time da Úmbria e, após o nono lugar na disputa da segundona, assumiu o Vicenza na temporada seguinte. Os lanerossi vinham em crise financeira e de um rebaixamento da elite, mas Renzo conseguiu montar um time competitivo. O acesso não ocorreu por causa de apenas três pontos, mas o quinto lugar e, principalmente, o desempenho de sua equipe foram suficientes para que ele pudesse alcançar um de seus objetivos na vida: treinar um time na Serie A, tal qual seu ídolo Nils Liedholm.

Em 1980, o toscano assumiu o Perugia, fazendo assim a sua estreia no mais alto escalão do futebol italiano. Segundo o próprio Ulivieri, ele sabia que seria uma batalha chegar até ali, mas teria de travar um outro combate para conseguir se manter – e, por isso mesmo, se submeteu a ficar várias temporadas em divisões inferiores. Infelizmente, a segunda luta foi perdida pelo técnico, que em fevereiro de 1981 foi demitido por falta de resultados positivos.

Voltando uma casa, Renzo assumiu a Sampdoria, que disputava a segunda divisão na época. O técnico chegou em outubro, já com o bonde andando, e desta vez, teve ótimo desempenho: de cara, alcançou a semifinal da Coppa Italia e foi vice-campeão da Serie B, subindo junto com o time em 1982. Contando com um Roberto Mancini recém-transformado em profissional, Ulivieri conseguiu deixar a Samp na primeira metade da tabela da Serie A em dois anos consecutivos, flertando com uma vaga na Copa Uefa em 1984 e conseguindo se manter na primeira divisão de forma competitiva.

Apesar do trabalho positivo em Gênova, o treinador não teve o contrato renovado pelo presidente Paolo Mantovani, que decidiu apostar no retorno do experiente Eugenio Bersellini. Ulivieri, então, ficou sem clube até, em outubro de 1984, decidir tomar um rumo pouco usual e assumir o Cagliari, na segunda divisão. Seria mais um trabalho para reerguer um outro time.

Renzo teve duas passagens pelo Bologna, clube com o qual mais se identificou em sua carreira (Allsport)

Na Sardenha, Ulivieri teve seu pior momento na carreira: além de resultados ruins pelos rossoblù, teve seu envolvimento confirmado no Totonero-bis, escândalo de apostas ilegais ocorrido em 1986. O treinador foi declarado culpado e acabou suspenso do futebol até 1989. Em entrevista concedida em 2013, Renzo afirmou que o procedimento jurídico foi completamente alterado e vários depoimentos e testemunhos foram falsos. Ulivieri alega que nem foi ouvido como testemunha ou réu e mesmo assim foi condenado por manipular resultados.

Depois de um baque como este, o toscano teve que retroceder de divisão e recomeçar parte de sua jornada. Em 1989, após cumprir o gancho, Ulivieri assumiu o Modena, na Serie C1. Renzo conseguiu a promoção para o nível superior, manteve os canarinhos por lá e fez a mesma coisa com o Vicenza, até que assumiu o Bologna em 1994 e foi um dos grandes artífices de uma sequência histórica para os emilianos.

Em uma profunda crise, na Serie C1, o Bologna acabara de ser adquirido por Giuseppe Gazzoni Frascara, empresário local. Após não emplacar o acesso na primeira temporada, o presidente contratou Ulivieri, reconhecido por trabalhos sólidos nas divisões inferiores. E Renzo mostrou porquê. O treinador conseguiu duas promoções consecutivas e chegou a levar o time a um louvável sétimo lugar na Serie A de 1996-97, além de ter sido semifinalista da Coppa Italia em 1996 e 1997. Na campanha seguinte, entretanto, uma relação conturbadíssima com Roberto Baggio levou o treinador a entrar em rota de colisão com todos: diretoria, torcida e o próprio “Divin Codino”.

O toscano já não tinha solicitado a contratação de Baggio e fora obrigado a escalá-lo como titular, já que o craque tinha se transferido para o Bologna simplesmente com a finalidade de poder jogar o suficiente para poder ser convocado ao Mundial da França. O relacionamento não era dos mais amistosos, mas se deteriorou de vez quando Robi foi avisado de que seria reserva num jogo contra a Juventus, na penúltima rodada do primeiro turno.

Em suas duas experiências pelo Cagliari, Renzo enfrentou sérios problemas esportivos e extracampo (EMPICS/Getty)

O camisa 10 ficou completamente revoltado e fugiu da concentração antes da partida, que acabou em 3 a 1 para a Velha Senhora, em pleno Renato Dall’Ara. Para piorar a situação de Ulivieri, Baggio terminou a temporada com 22 gols marcados, sendo o terceiro principal artilheiro da Serie A e o melhor italiano do certame. Embora Robi tenha rumado à Inter depois da Copa do Mundo, a permanência de Renzo no clube rossoblù se tornou impossível.

Depois deste fim conturbado, Ulivieri teve passagens apagadas no Napoli e Cagliari, até assumir o prestigiado Parma. Renzo não conseguira tirar os azzurri da Serie B e havia comandado os sardos em campanha de rebaixamento para a segundona, mas era o homem certo no lugar certo naquele fevereiro de 2001. Experiente e desempregado, poderia substituir Arrigo Sacchi, que pediu demissão de forma inesperada, após três jogos, por causa de estresse – de fato, foi o último trabalho da lenda como treinador.

Ulivieri conseguiu domar as turbulências internas e, com 10 vitórias em 18 rodadas da Serie A, fez o Parma ficar na quarta posição, que levava o time para os playoffs da Liga dos Campeões. Naquela mesma temporada, também foi vice da Coppa Italia. No entanto, 2001-02 começou de maneira oposta: o time crociato foi eliminado pelo Lille sem ao menos chegar na fase de grupos da Champions League, e uma sequência de resultados ruins (uma vitória, cinco empates e duas derrotas) nas jornadas inaugurais do Italiano lhe levaram a pedir demissão.

Entre 2002 e 2008, Ulivieri teve o seu canto do cisne como técnico de times masculinos. O toscano treinou Torino, Padova, Bologna e Reggina, sem alcançar resultados expressivos, até mudar de ares e focar na parte política do futebol.

No início dos anos 2000, o treinador passou pelo Parma (Allsport)

Inscrito no Partido Comunista Italiano nos anos 1960, Renzo passou por alguns partidos de esquerda e centro-esquerda em sua trajetória – que acabou confluindo no retorno ao PCI e listas eleitorais ligadas a ele. Ulivieri nunca ocupou cargos públicos, mas sempre fez questão de não desassociar futebol e política. Em sua visão, é dever de cada cidadão ter uma opinião política, discutir e debater ideias, mesmo que seja uma atividade que incomode, gere conflitos e embates. Essa bagagem trouxe a Ulivieri uma visão diferenciada do esporte na Itália. Ele conseguiu ver o que poucos conseguiram.

Sobre os recentes casos de racismo nas competições esportivas, o ex-treinador toscano declarou que o problema não está no futebol, e sim na sociedade italiana como um todo, que não estuda, não conhece a história e não está educando os mais jovens, deixando o racismo penetrar nas raízes da comunidade. Assim, o futebol nada mais seria como um espelho levemente modificado do tecido social, com a paixão e emoção exacerbadas. Porém, o problema continua sendo de todos os italianos, e não apenas de uma parcela. Um discurso vastamente usado para justificar absurdos, como se existissem “casos isolados” – acontecimentos que, veja só, já somam dezenas.

De certa forma, o engajamento de Ulivieri na promoção do futebol feminino faz parte de sua forma de ver o mundo. Em 2014, por exemplo, ele decidiu treinar a Scalese gratuitamente. Depois de comandar na Serie B o time de San Miniato, cidade em que nasceu, ele acertou com o Pontedera, outra equipe toscana – esta, militante na Serie C. Em 2018-19, as grenás bateram na trave pelo acesso; em 2019-20, lideravam sua chave até a suspensão da temporada por conta da pandemia do novo coronavírus.

Fora dos gramados, Ulivieri também desempenha funções importantes. Desde que deixou a Reggina, em 2008, Renzo é o presidente da Associação Italiana de Treinadores de Futebol (AIAC), que tem ações consideráveis em defesa de treinadores de divisões inferiores.

Para defender a sua categoria, Ulivieri chegou a se acorrentar à sede da FIGC (LaPresse)

Em 2011, inclusive, Ulivieri se acorrentou aos portões da sede da Federação Italiana de Futebol, a FIGC, e ameaçou fazer greve de fome em protesto pela dispensa da obrigatoriedade de uma formação específica aos técnicos de categorias semiprofissionais. O dirigente acabou ganhando a batalha, uma vez que hoje em dia há cursos para todas as modalidades de futebol e qualquer equipe participante de torneios da FIGC precisa ter um treinador certificado por sua escola, em Coverciano. Escola na qual, inclusive, Renzo é um dos professores.

O longevo técnico toscano resolveu se posicionar entre o saudosismo e o avanço descontrolado; nada será feito por extremos ou contra o desenvolvimento do futebol italiano. Como na política, precisamos achar saídas comuns, democraticamente, para aliar o poder financeiro à essência do futebol, que é o povo. No final das contas, este esporte é feito por quem o ama, e poucos hoje em dia estão lembrados disso. Ainda bem que existe alguém como Renzo Ulivieri.

Renzo Ulivieri
Nascimento: 2 de fevereiro de 1941, em San Miniato, Itália
Carreira como treinador: San Miniato (1965-66), Fucecchio (1966-67 e 1971-72), Cuoiopelli (1967-68), Prato (sub-19; 1968-70), Empoli (1974-76), Fiorentina (sub-19; 1976-78), Ternana (1978-79), Vicenza (1979-80 e 1991-94), Perugia (1980-81), Sampdoria (1981-84), Cagliari (1984-86 e 1999-2000), Modena (1989-91), Bologna (1994-98 e 2005-07), Napoli (1998-99), Parma (2001), Torino (2002-03), Padova (2004-05), Reggina (2007-08), Scalese (feminino; 2014-15) e Pontedera (feminino; 2015-hoje)
Títulos: Serie C1 (1990 e 1995) e Serie B (1996)

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