Na melhor das hipóteses, a Juventus terminaria a temporada com a conquista da Liga dos Campeões em Madri. Seria o fim do jejum de duas décadas; aquele título que lhe foi negado por Barcelona e Real Madrid durante o caminho avassalador enquanto time dominante na Itália. Nesse cenário, a figura de Cristiano Ronaldo: o superastro vencendo a competição pela sexta vez e igualando madridista Francisco Gento. Recorde da redenção.
Temos dificuldade de lidar com jogadores sendo pessoas com problemas. Um jogo ruim ou é um incômodo físico, ou um treinamento mal-feito. Um gol contra é ruindade. Um pênalti perdido é falta de vergonha na cara. Como se o esportista não fosse alguém que sofresse com o que lhe acontece fora de campo – uma mentira descarada para cegar a complexidade das ações. A história de reabilitação está fadada a tornar-se realidade porque não sabemos lidar muito bem com ídolos falhos tampouco a mídia consegue se responsabilizar pela toxicidade da discussão.
Ronaldo se fechou em seu mundo após o caso de estupro contra a modelo Kathryn Mayorga ser reaberto e os documentos vazarem através da imprensa alemã. Que os advogados trabalhem, pois. Na Itália, os jornais tardaram para noticiar o fato numa mistura condescendente de machismo e patriotismo – a informação, por maior que fosse, não era apuração local.
As bolhas são criadas igualmente do lado de fora, pelos torcedores, fãs ou qualquer vivente que acompanhe o esporte. No primeiro momento, a acusação se volta contra a vítima. Mulher, então, é colocada à prova em todos os momentos: interesseira; vagabunda; não se presta ao respeito; duvido muito, o acusado é rico. Ao passo que, na etapa seguinte, a história fica resguardada à bondade do acusado e à habilidade de separar a vida pessoal da profissional.
Paul Pogba e Kylian Mbappe costumam fazer doações para comunidades parisienses. Jamie Carragher e Juan Mata também. O Instituto Neymar já ajudou mais de 4 mil jovens. A ajuda de Derrick Rose às crianças de Chicago também é notável. Eles não mereceriam o perdão caso algo ruim acontecesse?
Se o futebol é fruto de seu tempo, e se há coisas ruins em seu tempo, como o esportista está a salvo de acusações sérias? Uma lesão ou uma vitória afetam a narrativa final na busca pelo campeonato. Violência doméstica ou sexual, ao usar o mesmo filtro, acaba categorizando outros obstáculos que um jogador tem de vencer em prol do sucesso.
Dos citados acima, Rose é um caso à parte porque essa é uma discussão real e atual nos Estados Unidos. Cirurgias nos joelhos, lesões atrás de lesões, fadado à aposentadoria prematura e o armador do Minnesota Timberwolves voltou a jogar tão bem como na temporada em que foi MVP, em 2011. A diferença é que ele está na justiça há três anos pela acusação de estuprar uma ex-namorada. Quinze dias depois que marcou 50 pontos, recorde da carreira, e deu um toco para vencer o Utah Jazz no último segundo, viu a mulher apelar à decisão de inocência dele e dos outros dois amigos.
O analista do Wolves, Jim Peterson, disse ao fim do jogo: “não sou juiz, não sou o júri. Na minha avaliação, ele não foi condenado… mas o que ele é, é joga com intensidade. Ele é um jogador de basquete valente”. Os companheiros de Robinho e Dudu e as diretorias de Atlético-MG e Grêmio tampouco se pronunciaram sobre os casos de violência nos quais os jogadores se envolveram. Entre razões desportivas e éticas, cada um no seu, o esquecimento tende a ser o caminho confortável por envolver idolatria – ainda mais, como foi o caso de Dudu, ao se tornar bicampeão brasileiro pelo Palmeiras.
O compromisso de quem conta a história – o pai para o filho, entre amigos ou alguém na minha posição – precisa ser ao menos uma tentativa de compreender o jogador como uma figura complexa. A gente mal chega ao direito ao esquecimento por uma cegueira projetada. Ao invadir a bolha, a história é descartada. Permitimo-nos um padrão de comportamento muitas vezes diferente do nosso e algumas vezes vil, desprezível como aceitação de pessoas que gostamos.
Falando de Ronaldo, não há a necessidade de usar o aposto “acusado de estupro” toda vez que mencioná-lo ao mesmo tempo que os resultados do atleta têm de ser avaliados como parte de um processo judicial em andamento. Temos de levar a discussão sobre a qualidade moral de um atleta, de um ídolo mais a sério. O jogador é capaz de fazer coisas boas e ruins assim como todos nós, portanto, qual ou quais são as qualidades que devemos carregar? Uma vitória épica conduz o indivíduo à redenção sem escalas?
Vamos evoluir somente quando compreendermos o que e quando falar sobre os jogadores sem o desconforto do que fica somente no campo. Continuando do jeito que está, a vítima permanecerá vítima e nós perduramos o universo tóxico. Se nós dispensamos a preocupação no dia a dia, por que fingimos nos preocupar em momentos específicos?
Publicado originalmente em janeiro de 2019 no ESPN FC.