Em 2015, a Calciopédia fez um detalhado estudo para se aprofundar em um dos maiores problemas do futebol italiano: as falências de suas equipes. A questão – claramente – é crônica, sistêmica e requer uma observação bem mais abrangente do panorama, com um exame não apenas das finanças, mas também do modo como as ligas são organizadas e quais as características dos donos das equipes.
A saúde financeira dos clubes voltou à tona no final dessa temporada por causa da possibilidade de bancarrota do Palermo e pela iminente punição da Uefa ao Milan, que caiu na malha fina do Fair Play Financeiro. Dono da agremiação rossonera, o fundo Elliot, representado pelo presidente Paolo Scaroni (foto), tenta reverter problemas gerados por gestões anteriores.
No nosso primeiro texto, chegamos a algumas conclusões apavorantes. Como, por exemplo, a de que dois terços dos clubes que jogaram a Serie A entre os anos de 1980 e 2015 já faliram. Além disso, vimos que o mecenato foi chave para a derrocada financeira dos times, que a federação e a liga italiana eram omissas na fiscalização contábil e que as divisões inferiores foram sucateadas.
Desde a publicação do dossiê, quatro anos atrás, muito mudou no esporte. Tivemos a revelação do maior escândalo de corrupção da história do futebol, com os presidentes da Fifa e Uefa banidos da modalidade, e a derrota da Itália para a Suécia na repescagem das Eliminatórias da Copa do Mundo, que deixou a Nazionale fora de um Mundial depois de 60 anos. Iremos estudar e rever tudo que aconteceu neste quadriênio, visto que, parafraseando Zygmunt Bauman, não são as crises que mudam o futebol, e sim nossa reação a elas.
A terceirona ainda definha e o cenário não é animador
No pouco distante ano de 2015, afirmamos o seguinte: “dos 63 clubes que participaram de ao menos uma edição da Serie A, 40 faliram pelo menos uma vez nos últimos 35 anos”. Hoje, este número já aumentou. Cesena, Vicenza e Modena jogam este número para 43, e vários outros clubes menores, que nunca passaram pela elite, também entraram em bancarrota neste período – nos últimos 15 anos, somando todas as divisões, o número passa de 150 processos de falência. Entre os citados no nosso texto anterior, o Bari faliu novamente num espaço de menos de cinco anos e o Avellino atravessou o mesmo processo uma década depois da bancarrota anterior. Já o Palermo, que foi rebaixado à terceirona por fraude contábil, passou perto de fechar as portas.
Nosso primeiro dossiê trouxe todos os motivos para este cenário desolador, apontando os vários culpados e os motivos que levaram às falências. Porém, duas questões importantes foram mencionadas e, na época, por serem muito recentes, não puderam ser tratadas de forma minuciosa: a reforma da Lega Pro, atual Serie C, e o Fair Play Financeiro.
A terceirona italiana é uma catástrofe do ponto de vista organizacional e é difícil decidir por onde começar a criticá-la. Desde 2013 foram registradas inacreditáveis 37 falências na Serie C – de 42 totais no futebol profissional italiano –, o que criou um caos completo na categoria. FIGC, CONI e Covisoc são cúmplices deste crime contra a divisão, que é mais sensível a crises econômicas, menos internacional e menos financeira, mas que poderia gerar craques.
No nível de entrada do futebol profissional italiano não existe futuro e nem mesmo presente, já que times são penalizados e até excluídos no meio do campeonato, em uma completa agonia estrutural. Ao mesmo tempo que a concorrência e os custos aumentam (entre 2014 e 2017, o preço de um jogador dobrou nas divisões de elite europeias), os times não conseguem arrecadar e atrair dinheiro ou investimento. Afinal, um formato que já é confuso e deveras inchado para se tornar um bom produto a ser vendido encontra percalços primários: o campeonato tem 60 participantes divididos em três grupos regionalizados, mas isso fica apenas na teoria, já que a competição normalmente começa com duas ou três equipes já falidas e excluídas.
Times devendo salários, sofrendo com greves de jogadores e dirigentes irresponsáveis reagindo a um sistema que lhes incentiva a ter este comportamento são acontecimentos habituais na terceira divisão. A reforma da Lega Pro, como já tínhamos previsto, é um completo absurdo. Gerou um campeonato inchado, pouco regionalizado e não mudou em nada a saúde financeira dos clubes que ali jogam. Fica difícil pensar no sucesso de um sistema que olha de cima para baixo e que ignora completamente a importância do futebol em nível local, que tem o potencial de gerar grandes jogadores e movimentar as ligas superiores.
Mecanismos de controle e projetos a longo prazo contra dirigentes irresponsáveis
Como discutido aqui, no último texto sobre o relatório da Uefa, o Fair Play Financeiro (FFP) foi um conceito criado e aprovado uma década atrás, com o principal intuito de melhorar a conjuntura financeira contemporânea do futebol europeu. Podemos considerar que controle de dívidas, investimentos a longo prazo e uma luta contra a falência foram os principais objetivos da iniciativa da associação, que também cumpre o papel de exemplo para que os países possam aplicar regras adaptadas localmente. Em 2018, um novo ciclo se iniciou, focando em mais transparência, harmonização das regras contábeis entre times de diferentes nações e incentivos ao futebol juvenil e feminino.
No ano em que o nosso primeiro dossiê foi lançado, Inter e Roma foram punidas e o FFP não era aplicado na Itália de forma exemplar, com vista grossa das instituições do país. Em 2016, a FIGC anunciou o FFP Serie A: ou seja, além das regras europeias, os clubes italianos deverão seguir regras específicas de sua própria federação. As normas valem a partir da temporada atual, 2018-19. Além disso, o presidente da FIGC, Gabriele Gravina, também anunciou a adoção de novas regras de licenciamento dos clubes, que terão suas inscrições nas competições avaliadas seis meses antes do início de cada torneio.
A movimentação da FIGC foi uma reação – bem atrasada – ao caso do Parma, que deveria gerar medidas à altura da gravidade do que aconteceu com o time emiliano. Finalmente a federação acordou e percebeu que, do jeito que estava, não teria como existir um cenário sustentável para o futebol do país – uma vez que os números mostram que a Itália tem os times mais endividados da Europa.
Todos os clubes deverão alcançar um balanço em que o prejuízo de um ano não pode passar de 25% do faturamento médio no triênio. Exemplificando: um time que teve faturamento médio de 100 milhões de euros entre 2016 e 2019 não poderá ter prejuízo além de 25 milhões de euros. Além disso, as agremiações estão submetidas a outras medidas técnicas sobre indicadores de endividamento e custo do plantel. Ao final do texto, mostraremos qual foi o resultado destas movimentações da FIGC e se elas foram suficientes para demonstrar comprometimento e seriedade.
Vimos que o caso do Parma gerou uma tardia repercussão no alto escalão do futebol italiano. Um de seus efeitos foi a tomada de ações com o intuito de criar um cenário mais sustentável a longo prazo, cujo resultado só poderemos mensurar nos próximos anos. Mas o maior desastre das últimas décadas ainda estava por vir, e reverbera da noite de 13 de novembro de 2017 até hoje.
Depois de uma vergonhosa eliminação para a Suécia e a confirmação da ausência na Copa do Mundo depois de 60 anos, o editorial da Gazzetta dello Sport no dia seguinte foi carregado de críticas e ataques. As palavras eram direcionadas ao técnico, ao presidente da federação, a uma Serie A cheia de estrangeiros e à falta de investimento nas categorias de base: todos esses elementos foram considerados significativos nesta página funesta da história da modalidade no país.
Desta vez não foi o Parma ou outro clube que veio à falência, foi o futebol italiano. Um dos principais culpados, Carlo Tavecchio, demitiu Gian Piero Ventura – que relutou e não queria deixar o cargo até receber o valor da multa rescisória – e depois se demitiu da presidência da FIGC, como um verdadeiro vilão. De cabeça alta, com a mesma postura do treinador, acusando vários de seus críticos de complô e “pilhagem política”. Não bastasse a vergonha no campo, fora dele os dirigentes também repetiram a performance, gerando um cenário desolador e uma ferida que ainda está aberta.
Hoje o cenário é melhor, até porque nada seria pior do que o fundo do poço. A eliminação foi um tremendo nocaute, que gerou brigas políticas, um grande período de incerteza e indecisão por parte de vários componentes do alto escalão. A Itália vai dando engatinhando de volta à elite e consegue colher frutos do resto das ações entre 2015 e 2017, como a implantação do VAR e do FFP doméstico, que ocorreram num cenário financeiro mais brando.
Entretanto, os crônicos problemas nos estádios, as torcidas organizadas com cânticos racistas, as falências que continuam assolando as divisões inferiores e a falta de investimento de excelência nas divisões de base foram no máximo discutidos nos últimos 18 meses, sem algum plano de ação. A facílima eliminatória para a Euro 2020 começará mês que vem e outra eliminação seria uma tragédia.
Tratamos aqui de vários temas envolvendo governança, normas e cenário geral, mas não podemos esquecer a falta de responsabilidade, seriedade e profissionalismo de certos dirigentes italianos quando se trata de finanças. Não é raro encontrarmos cartolas esbanjadores, que pretendem colocar o seu time em um patamar superior apenas com um grande aporte de dinheiro – certas vezes na forma de empréstimos – e que, assim, submetem a sua agremiação a uma situação perigosa: qualquer outro resultado esportivo que não seja o almejado acaba colocando as finanças do clube em estado crítico.
O Fair Play Financeiro foi criado exatamente para reduzir a ocorrência deste mal, mas não consegue extingui-lo por completo. Que o diga o Milan, que está na mira da Uefa exatamente no momento em que a Inter, punida anteriormente, arrumou suas contas e pode deixar o settlement agreement da entidade – que a impedia de agir mais livremente no mercado de transferências e aplicava outras sanções, como a redução do número de jogadores inscritos nas competições europeias.
Mesmo com incontáveis estudos, consultorias, opiniões de especialistas, dados e conhecimento, vários dirigentes e torcedores juram de pés juntos que o caminho para o sucesso sempre será gastar dinheiro em compra de jogadores, como se o êxito apenas fosse mensurado por títulos e taças fossem como um tíquete bem caro: “pagou, levou”. O que estamos vendo atualmente com a Atalanta é uma esplêndida aula de gestão e inovação: todo time na Europa deveria aprender com os orobici.
A Dea, comandada pelo presidente Antonio Percassi (ex-jogador do clube) tem um projeto bem definido, faz pesado investimento nas categorias de base e contratou um técnico visionário, com ideias, princípios e que desenvolveu o DNA do seu elenco. Sabemos que o time bergamasco não será campeão italiano, mas foi para a final da Coppa Italia e poderá ser um dos quatro primeiros colocados na Serie A, conquistando uma vaga para a fase de grupos da Liga dos Campeões. Sucesso absoluto para Gasperini e companhia.
A partir do momento que o futebol deixar de ser enxergado na perspectiva de render resultados imediatos e começar a ter planejamentos para os próximos cinco anos, por exemplo, os times passarão a adequar suas expectativas da forma correta – sem largar seus ideais e criando uma identidade, eles começarão a ter mais possibilidades de sucesso. O maior fracasso da Atalanta não seria um vice-campeonato da copa e um quinto lugar na Serie A; seria demitir Gasperini em junho e trazer, numa hipótese fantasiosa, José Mourinho, por exemplo.
Além de destruir as finanças do modesto clube, por conta dos altos salários de um treinador desse nível, seus conceitos não trazem semelhança alguma com os praticados pelos nerazzurri hoje. Usar a narrativa de que o português – ou qualquer outro técnico gabaritado e vencedor – aproximaria o time títulos seria um argumento completamente falacioso, porque nem o Manchester City de Guardiola é campeão de tudo que joga.
Os clubes precisam ter autocontrole, projetos de médio e longo prazo, aproveitar que o FFP não considera investir nas categorias de base e na infraestrutura como um gasto e, principalmente, reconhecer seu próprio patamar e posição no cenário italiano no curto prazo, para criar um projeto de ascensão sustentável, que seja duradouro e não “fogo de palha”. A Roma, por exemplo, atualmente é um time de Liga dos Campeões e deve se comportar como tal. Não deve contratar Ventura nem Guardiola para treinar seu time, não deve contratar Caputo nem Neymar para ser o craque. Todos sabemos que futebol não é ciência exata. Por isso mesmo, na hora do planejamento as equipes deveriam diminuir seus riscos, e não aumentá-los – seja em termos esportivos ou financeiros.
A robustez financeira começa a se tornar um conceito respeitado e não pode ser mais deixado de lado pelos clubes italianos, mesmo que só na elite. A Uefa tem certo mérito por colocar medidas restritivas obrigatórias em nível continental, de forma que crie um level playing field – ou seja, oportunidades e regras iguais para todos.
Prejuízos anuais vêm diminuindo e, com o passar dos anos, as dívidas também devem começar a ser atenuadas para um patamar aceitável por causa do FFP Serie A – portanto, continuaremos atentos. Por outro lado, a gestão da Serie C é um completo fracasso e não conseguimos enxergar um cenário positivo. O campeonato não consegue se organizar e todas as instituições responsáveis parecem não querer resolver este grave problema. O futebol profissional não é feito apenas pela Serie A e esperamos que o novo comando da FIGC tenha pulso firme e seriedade para resolver este endêmico problema de vez. Atualmente, o cenário parece controlado nos times da elite, mas ratificamos: a elite é só a ponta do iceberg.
Sensacional o texto, acompanho as séries inferiores do futebol italiano desde o final dos anos 1990 e o cenário é desolador, pouco importa o que ocorre em campo, o dia mais esperado é o 30 de junho (dia final das inscrições), os dias de recursos do Covisoc e o dia de repescagem.
Espetacular a matéria. Para fans das divisões inferiores . Esse tipos e conteúdo ajuda a intender o que acontece com os clubes de tanta tradição na Itália . Que hoje não figuram nem na série B italiana.