Jogos históricos

Em 2015, a Roma bateu o Feyenoord, o racismo e o vandalismo na Liga Europa

Sem dúvidas, Roma e Feyenoord não tiveram um ano inesquecível em 2014-15. A Loba, porém, pode ao menos se contentar com um vice-campeonato da Serie A e uma vaga na Champions League, ao passo que os alvirrubros neerlandeses não obtiveram grandes resultados e ainda tiveram sua imagem manchada por ocorrências no duelo com os giallorossi, válido pela fase de 16 avos de final da Liga Europa: torcedores vandalizaram monumentos históricos da capital italiana, cometeram atos de racismo contra Gervinho e ainda interromperam o jogo de volta por conta de objetos atirados ao gramado. Um show de horrores, que teve como consequência iniciar uma improvável rivalidade entre as equipes.

Treinada por Rudi Garcia, a Roma vinha tentando rivalizar com a Juventus em nível nacional, devido ao péssimo momento que Inter e Milan atravessavam. Os giallorossi foram vice-campeões da Serie A em 2013-14 e ganharam vaga na Champions League, mas não tiveram sorte na competição. A Loba foi terceira colocada no complicado Grupo C, que tinha Bayern Munique e Manchester City, e terminou relegada à Liga Europa após ficar com a terceira posição na chave – apesar de ter chegado a levar 7 a 1 dos bávaros em pleno Olímpico, a equipe capitolina tinha a vantagem no confronto direto com o CSKA Moscou, time com o qual empatou em 5 pontos.

A Roma estrearia na segunda principal competição de clubes do continente na fase de 16 avos de final, contra o Feyenoord. Em seu primeiro ano em Roterdã, o técnico Fred Rutten, proveniente do Vitesse, sofria para dar um padrão ao time – que não se adaptara a saídas importantes, como as de Stefan De Vrij para a Lazio, Daryl Janmaat para o Newcastle, Bruno Martins Indi para o Porto e Graziano Pellè para o Southampton.

Vice-campeões nacionais na gestão de Ronald Koeman, os alvirrubros deslizavam na Eredivisie e disputavam na Liga Europa em virtude de uma precoce eliminação na Champions League: 5 a 2 para o Besiktas no placar agregado da terceira fase preliminar. No torneio menos badalado, o Feyenoord se recuperou ao superar o Zorya Luhansk nos playoffs (4 a 3) e ao liderar o Grupo G, que tinha o Sevilla, classificado em segundo lugar. Rijeka e Standard Liège ficaram pelo caminho.

Totti teve atuação apagada no jogo de ida contra o Feyenoord (AFP/Getty)

Em fevereiro de 2015, época do duelo entre as equipes, não havia um favorito destacado. Elenco por elenco, o da Roma era nitidamente superior ao do Feyenoord, mas nenhum dos lados vivia grande momento. Os holandeses se ressentiam de derrotas tolas para Heerenveen e Heracles Almelo, de modo que viam a terceira colocação de Eredivisie ameaçada. Já os italianos, embora na vice-liderança da Serie A, atravessavam uma sequência ainda mais nefasta, principalmente em casa. E o jogo de ida dos 16 avos de final da Liga Europa ocorreria justamente no Olímpico.

Atuando na Cidade Eterna, além de ter levado 7 a 1 do Bayern Munique e 2 a 0 do Manchester City, a Roma fora eliminada da Coppa Italia pela Fiorentina ao sofrer 2 a 0 da equipe violeta no início de fevereiro. Pior, desde 30 de novembro de 2014, quando fez 4 a 2 sobre a Inter pela Serie A, só havia conseguido uma vitória em oito compromissos em seus domínios – um mero 2 a 1 contra o Empoli, na prorrogação das oitavas do mata-mata nacional. A partida contra o Feyenoord poderia servir para que os comandados de Garcia se reconciliassem com a torcida giallorossa.

Horas antes do jogo contra o time holandês, o orgulho dos romanos voltou a ser ferido. Quem nasce na capital italiana costuma amar a sua terra natal e sua beleza arquitetônica milenar. Isso intensificou o furor causado pelo desrespeito que centenas de ultras do Feyenoord demonstraram por toda a história da Cidade Eterna.

Esses torcedores chegaram ao país na quarta e, por dois dias, inclusive após a partida, promoveram enorme arruaça, principalmente pelas ruas do centro de Roma. Os hooligans holandeses emporcalharam as vias públicas com lixo e urina, entraram em confronto com policiais e protagonizaram quebra-quebra, com destruição de patrimônio municipal. Nem mesmo monumentos tombados pela Unesco escaparam: datada do século XVII e recém-restaurada, a Fontana della Barcaccia, localizada na Piazza di Spagna, foi depredada e sofreu danos permanentes. No fim das contas, a reparação dos atos de vandalismo custou 5,2 milhões aos cofres da prefeitura. Apenas 28 pessoas foram detidas e, pelo prejuízo causado à fonte, seis ultras foram condenados a cerca de quatro anos de reclusão.

Nome do confronto com o Feyenoord, Gervinho marcou na ida e na volta (AFP/Getty)

Se os ânimos estavam acirrados do lado de fora do estádio, no Olímpico o jogo transcorreu sem grandes percalços – mas não promoveu a paz entre a torcida da Roma e a equipe; pelo contrário, os jogadores saíram de campo vaiados. Garcia escalou um time misto e a dona da casa mostrou sua habitual inconstância: produziu bastante e poderia ter vencido o Feyenoord, porém cometeu erros defensivos e ficou apenas no empate. Na verdade, chegou até a levar sustos no final e a ficar um passo de sofrer a virada alvirrubra.

Aos 22 minutos, Gervinho abriu o placar de forma maravilhosa, ao completar, de letra, um cruzamento rasteiro de Vasilis Torosidis. O jogo corria de forma tranquilo para a Roma, mas a equipe começou a empilhar chances perdidas, principalmente com o próprio autor do gol. Na retaguarda, Kostas Manolas vivia noite imprecisa. No fim das contas, a soma desses fatores impedia que o time de Garcia conseguisse controlar a partida, de fato.

A Roma deixou o Feyenoord vivo e o adversário agradeceu na segunda etapa. Aos 55 minutos, Lex Immers cabeceou com força no ângulo e o goleiro Lukasz Skorupski foi buscar; a bola tocou na trave e, no rebote, Colin Kazim-Richards, impedido, deixou tudo igual. Com o gol do atacante que, anos mais tarde, atuaria no Corinthians, o time holandês foi para cima: comandado pelo meia Jordy Clasie, ganhou terreno, embora com poucos chutes disparados. No fim das contas, a Loba se ressentiu de atuações apagadas de Daniele De Rossi e Francesco Totti e a partida terminou mesmo empatada.

O jogo de volta ocorreu na semana seguinte e, novamente, a torcida do Feyenoord não permitiu que apenas a bola e o campo falassem. Embora nenhum incidente tenha ocorrido com apoiadores da Roma que viajaram aos Países Baixos, os ultras locais resolveram tocar o terror no próprio estádio De Kuip. Eles cometeram ato de racismo contra Gervinho, ao atirarem uma banana inflável em sua direção, e lançaram toda sorte de objetos ao gramado, o que levou à interrupção da partida por alguns minutos.

Com Ljajic, a Roma começou a construir sua vitória num De Kuip em ebulição (AFP/Getty)

Em Roterdã, traços do melhor Totti foram vistos, para a sorte da Roma. Na primeira etapa, o craque aproveitou a pressão alta de Miralem Pjanic e quase marcou de cavadinha – a bola passou por Kenneth Vermeer e raspou a trave holandesa. O capitão giallorosso também fez a pelota explodir no poste num chute rasteiro, em cobrança de falta ensaiada. Do outro lado, Jens Toornstra arrematou com perigo e obrigou Skorupski a defender em dois tempos.

Até ali, tudo corria bem. Só que alguns torcedores do Feyenoord resolveram desvirtuar um símbolo de Het Legionen, a massa apoiadora alvirrubra: é comum que a torcida leve bananas infláveis ao estádio para animar o espetáculo nas arquibancadas, mas atirá-la em direção a um atleta negro da equipe adversária é uma outra coisa. É racismo.

O episódio acabou inflamando a Roma, que intensificou a blitz após a injúria a Gervinho. Depois de uma sequência de cruzamentos na área e de arremates da altura da meia-lua, Torosidis levantou a bola no segundo pau e Adem Ljajic apareceu para completar com bela chapada. Na comemoração, o sérvio saudou o colega que acabara de ser racialmente ofendido.

Na segunda etapa, o tempo rapidamente fechou. Aos 54 minutos, Mitchell Te Vrede, que substituiu o lesionado Kazim-Richards, recebeu o cartão vermelho direto por falta dura sobre Manolas. O árbitro Clément Turpin até poderia ser acusado de rigor excessivo do árbitro, mas o que se viu foi uma balbúrdia: isqueiros, sinalizadores e outros objetos foram lançados sobre os jogadores romanistas e o trio de arbitragem, levando à interrupção da partida por motivos de segurança. Os profissionais envolvidos no jogo precisaram se abrigar nos vestiários.

Na Holanda, a violência dos ultras do Feyenoord obrigou os atletas e o trio de arbitragem a se refugiarem nos vestiários (imago/Pro Shots)

Depois de quase 20 minutos de paralisação, jogo foi retomado. A defesa da Roma, contudo, pareceu ter ficado nos vestiários e deu uma bobeira logo de cara: o atacante Elvis Manu, recém-entrado, aproveitou e empatou a partida, ao arrancar e concluir na saída de Skorupski. Na celebração, mais um atleta do Feyenoord foi expulso – Erwin Mulder, arqueiro reserva – e o destempero alvirrubro foi novamente evidenciado.

A Roma, por sua vez, tinha a mente no lugar, além de Torosidis e Gervinho muito atentos no duelo. E, após o reinício da peleja, a dupla foi novamente decisiva. O grego efetuou cruzamento rasteiro e o marfinense se antecipou à zaga adversária para anotar o gol da vitória dos visitantes e, de quebra, dar uma resposta apropriada aos racistas.

O triunfo da Roma fez parte de um dia histórico para o futebol da Itália. Em uma semana de 100% de aproveitamento dos times do país em competições europeias, pela primeira vez cinco equipes da Bota avançaram às oitavas da Liga Europa – mesmo nos tempos de Copa Uefa, quando chegou a dominar a competição, isso não havia sido alcançado. Anteriormente, só uma nação colocara tantos representantes nesta fase do torneio: a Alemanha foi soberana na Copa Uefa 1979-80 e ainda garantiu os quatro semifinalistas da edição.

No entanto, a alegria da Itália e da Roma não perdurou. Nas oitavas, somente duas equipes italianas avançaram: a Inter perdeu para o Wolfsburg, o Torino foi derrotado pelo Zenit e a própria Loba foi eliminada pela Fiorentina, que se classificou juntamente com o Napoli. Ambos foram até as semifinais, fase em que caíram frente a Sevilla e Dnipro, respectivamente. Para espanto geral, os espanhóis faturaram seu quarto título da competição.

Decisivo, Gervinho calou o racismo de alguns torcedores do Feyenoord (imago/Pro Shots)

Para a Roma, restou a disputa da Serie A – e mais um vice-campeonato. O Feyenoord, por sua vez, deu sequência a seu ano tenebroso e sequer foi capaz de se classificar para uma competição europeia. Assim, o trabalho de Rutten foi encerrado e o vitorioso ciclo de Giovanni van Bronckhorst teve início logo depois. Além disso, o clube holandês foi punido pela Uefa, devido ao comportamento inadequado de sua torcida no duelo de volta contra a Loba e desembolsou míseros 50 mil euros.

Por fim, os acontecimentos da eliminatória entre Roma e Feyenoord ganharam vida própria e perduraram ao longo dos anos. Os ultras dos dois times passaram a nutrir rivalidade e, quando italianos e holandeses se encontraram na final da Conference League 2021-22, em Tirana, na Albânia, houve confrontos – que resultaram em 60 prisões. Em campo, a Loba venceu e faturou seu primeiro título de um torneio Uefa. Quis o destino que, no ano seguinte, o sorteio da Liga Europa colocasse as duas forças frente a frente novamente. Mas, dessa vez, as autoridades não quiseram pagar para ver: a presença das torcidas visitantes foi vetada tanto na Cidade Eterna quanto em Roterdã.

Roma 1-1 Feyenoord

Roma: Skorupski; Torosidis, Yanga-Mbiwa, Manolas, Holebas; Nainggolan, De Rossi (Keita), Pjanic (Nainggolan); Gervinho, Totti (Doumbia), Verde (Florenzi). Técnico: Rudi Garcia.
Feyenoord: Vermeer; Wilkshire (Karsdorp), Boulahrouz, Kongolo, Nelom; Clasie, El Ahmadi; Toornstra, Immers, Vilhena; Kazim-Richards. Técnico: Fred Rutten.
Gols: Gervinho (22′); Kazim-Richards (55′)
Árbitro: Ovidiu Hategan (Romênia)
Local e data: estádio Olímpico, Roma (Itália), em 19 de fevereiro de 2015

Feyenoord 1-2 Roma

Feyenoord: Vermeer; Boulahrouz (Manu), Van Beek, Kongolo, Nelom; Clasie, El Ahmadi; Karsdorp, Toornstra, Vilhena (Achahbar); Kazim-Richards (Te Vrede). Técnico: Fred Rutten.
Roma: Skorupski; Torosidis, Yanga-Mbiwa, Manolas, Holebas; Keita, De Rossi, Pjanic (Nainggolan); Gervinho, Totti (Paredes), Ljajic (Iturbe). Técnico: Rudi Garcia.
Gols: Manu (57′); Ljajic (45 + 1′) e Gervinho (60′)
Cartões vermelhos: Mulder e Te Vrede
Árbitro: Clément Turpin (França)
Local e data: estádio De Kuip, Roterdã (Países Baixos), em 26 de fevereiro de 2015

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