Numa garagem de Brescia, um garotinho dava seus primeiros toques na bola e tentava imitar Omar Sívori e suas cobranças de falta magistrais, sempre com a perna esquerda. E o pequeno Evaristo estava mesmo predestinado a seguir a profissão do ídolo, o fazendo de forma precoce no time de sua cidade. Naquela época, Beccalossi nem imaginaria que se tornaria um dos grandes jogadores dos anos 1980, com um talento natural, que sobressaía mesmo que ele não fosse muito afeito a treinamentos e preferisse passar o tempo fora dos gramados fumando e se divertindo. Muito menos ele pensaria que chegaria a ser comparado com Pelé.
Com apenas 16 anos, já estreava no time principal do Brescia, em 1972, como meia. Na década de 70, os rondinelle viveram anos turbulentos, mas mesmo com as dificuldades, foi justamente a época em que dois de seus principais jogadores passaram por lá: além de Beccalossi, o atacante Alessandro Altobelli. Apesar da experiência entre os profissionais, Becca seguiu no time Primavera e foi campeão italiano da categoria em 1974-75.
Na temporada seguinte, Antonio Angelillo, então treinador do Rimini na Serie C, foi contratado e os garotos Beccalossi e Altobelli passaram a dar as caras no time titular. O ex-interista, ídolo em Milão, foi o primeiro a começar a entrosar a dupla, que conduziu o time à melhor colocação na década. O Brescia chegou a ficar com a quinta posição da Serie B, apenas a dois pontos da promoção à Serie A. O acesso não chegou com o dueto, mas foi o bastante para chamar atenção da Inter.
Depois de um decepcionante 16º lugar na temporada seguinte, Altobelli seguiu para Milão em 1977 e Beccalossi fez o mesmo caminho no ano seguinte. Sob o comando do pragmático Eugenio Bersellini, “o sargento de ferro”, apelidado por causa dos métodos de treinamento duros, a dupla começou a adquirir maturidade e o talento passou a ser melhor explorado.
Enquanto o atacante alto e magro começou a ser tornar o prolífico artilheiro que conhecemos hoje, Becca, então regista, passou a atuar mais à frente, como trequartista. Assim, expandiu sua área de jogo e se tornou um meio-campista completo. Com a humildade que sempre teve em campo, era solidário e aplicado como Bersellini orientava e passou a ser peça-chave no meio-campo em losango do treinador, então uma novidade em campos italianos.
Suportado pelo trio de técnicos defensores daquele time, e se valendo também da mobilidade dos atacantes Carlo Muraro e Altobelli, Beccalossi passou a usar melhor seus dribles e também a fazer gols, entrando bastante na área e cobrando pênaltis e faltas, como o ídolo Sívori. Em 1979-80, enfim o primeiro título de sua carreira como profissional foi conquistado. E não qualquer título: foi o 12º scudetto interista, que chegou depois de nove anos na fila, numa incrível ascensão após início lento na Serie A. Beccalossi foi o vice-artilheiro da Beneamata na campanha, marcando sete gols.
Sempre destaque, Becca foi protagonista do Derby della Madonnina de 28 de outubro de 1979. Era a 7ª rodada o Milan havia conquistado o scudetto na temporada anterior e não perdia para a Inter havia cinco anos, desde 1974. Chovia muito e, com o campo encharcado, muita gente questionava se Beccalossi, um jogador tão técnico, renderia bem com um campo tão pesado. Pois bem, o habilidoso meia decidiu a partida e quebrou o tabu.
Beccalossi marcou uma doppietta que até hoje é lembrada, primeiro por causa de um golaço – fotocopiado por Jérémy Ménez, em dérbi de 2014 –, e depois por uma frase que virou lenda. “Me chamo Evaristo, desculpa se insisto”, teria dito o meia a Enrico Albertosi, após o segundo gol. O mais provável é que a frase tenha sido cunhada por um torcedor ao final da partida e repercutida pelo jornalista Beppe Viola. Fato é que a frase virou letra de música do cantor Mauro Minelli e foi utilizada pelos interistas para tirar sarro dos rivais rossoneri por anos. Veja os gols da partida abaixo.
Naquela temporada, a empatia entre Altobelli e Beccalossi foi aumentada. O principal momento da dupla aconteceu com a tripletta do atacante sobre a Juventus, nos 4 a 0 de 11 de novembro do mesmo ano. Beccalossi foi responsável por assistência na partida, que ainda teve uma raríssima falha de Gaetano Scirea. Eram os gêmeos do gol, a dupla perfeita, com dribles, movimentação, gols e alegria para a torcida interista, órfãos de ídolos desde as aposentadorias de Sandro Mazzola e Giacinto Facchetti.
Numa época em que o futebol italiano foi se tornando bastante competitivo e então o maior da Europa, a falta de investimento e fracasso de algumas negociações de Ivanoe Fraizzoli não permitiu à Inter dar o passo seguinte. Com isso, o time era muito dependente de Beccalossi e Altobelli, e mesmo com estes correspondendo, o time não teve a força suficiente para superar a Juventus de Giovanni Trapattoni e Michel Platini (saiba mais) ou a Roma de Nils Liedholm e Paulo Roberto Falcão (saiba mais) nos anos seguintes.
Os nerazzurri chegaram a ser semifinalistas da Copa dos Campeões de 1980-81, mas caíram para o Real Madrid. Grande parte da eliminação se deveu ao desfalque de Beccalossi no jogo de ida na Espanha – os merengues passaram com o 2 a 1 no placar agregado. Naquela temporada, após o insucesso em contratar um entre Platini e Falcão, os nerazzurri tiveram como única novidade a chegada do austríaco Herbert Prohaska, o primeiro estrangeiro a desembarcar na Itália depois de mais de uma década sem a possibilidade de contratação de não-italianos. Porém, nem ele nem o meia Roberto Mozzini, que substituiu Becca no Santiago Bernabéu, conseguiram evitar a derrota.
O início da temporada seguinte, 1981-82, foi inesquecível para Beccalossi. Na preparação para a campanha que se iniciava, o então empresário de telecomunicações Silvio Berlusconi criou o Mundialito de Clubes, torneio amistoso que reuniria diversos times campeões mundiais até o momento. A Inter acabaria vencendo a disputa contra Feyenoord, Milan, Peñarol e Santos, e Beccalossi seria eleito o melhor jogador do torneio. Dirigentes do Santos cobriram o jogador da Beneamata de elogios, e disseram que ele seria um dos poucos craques que poderiam honrar a camisa 10 vestida pelo Rei Pelé. Um elogio que fez com que Becca chamasse mais a atenção de clubes ao redor do globo.
Ele, porém, continuou na Inter. Na sequência da temporada, depois de muitas reviravoltas, o time acabou campeão da Coppa Italia, sempre com Becca e Altobelli protagonistas. Mas as campanhas europeias e no campeonato não convenciam, e assim algumas coisas começaram a mudar na Pinetina. Bersellini saiu, Rino Marchesi foi contratado, e teve seus pedidos de contratações atendidos. Chegaram o alemão Hansi Müller e o brasileiro Juary, além do italiano Fulvio Collovati, que assumiu a titularidade na defesa ao lado de jogadores jovens e em processo de consolidação, como Giuseppe Bergomi, Riccardo Ferri e Walter Zenga. Evaristo, apesar da humildade, nem sempre era fácil de gerir e chegou a ter problemas com Bersellini, mas foi com o novo contratado Müller que as coisas começaram a piorar.
O bresciano não reagiu bem à concorrência. Primeiro, deixou de ser “o cara” e jogou menos minutos, ainda que continuasse sendo titular e ocupando um posto importante. Problemas como esse minaram suas oportunidades na seleção, já considerando que anteriormente, mesmo em grande momento, jamais foi lembrado por Enzo Bearzot.
Beccalossi nunca teve um temperamento muito fácil de lidar e sempre foi considerado um talento bruto, inato. Dentro de campo, agia com instinto e improviso, criando jogadas inusitadas – era chamado, por alguns, de “A Luz”. Tinha como fortes o drible, o ótimo controle de bola e os passes açucarados, além das conclusões de média distância. Gabriele Oriali, seu companheiro de anos na Inter, deu uma declaração curiosa sobre o colega: “Até hoje não sabemos se Beccalossi era destro ou canhoto. Era muito habilidoso com as duas pernas”, disse. Ambidestro, era quase imarcável.
No entanto, Beccalossi não era um jogador que corria muito, e nem gostava de se doar demais para a equipe. Apesar de tímido e gentil, não se enturmava muito com os companheiros, e fora dos campos abusava dos descuidos com o corpo. Longe de ser um atleta, era um “boleiro”. Em suma, não se empenhava e se valia apenas pelo que sabia de futebol. Bearzot não o via como adequado a seu sistema de jogo e nunca cogitou levá-lo para a Squadra Azzurra.
Sob o comando do tímido Rino Marchesi, que não soube como exatamente gerir o vestiário, o time ainda teve resultados bons no campeonato, porém não o bastante para mais uma mudança. Luigi Radice foi contratado numa temporada movimentada para a Beneamata, que teve início ruim, passou pela saída de Ivanoe Fraizzoli e pela chegada definitiva de Ernesto Pellegrini na presidência no clube.
Determinado em mudar o time de patamar, e novamente após um um ano sem sal, Pellegrini promoveu mudanças drásticas para a temporada 1984-85, e entre elas passaram a saída de Beccalossi e de seu desafeto Müller, que abriram espaço para nomes como Franco Causio, Liam Brady e Karl-Heinz Rummenigge. Emprestado à Sampdoria, Becca não encontrou espaço justo com Bersellini, seu antigo treinador, e atuou apenas nove vezes, ficando atrás na preferência do técnico frente a jogadores como Graeme Souness, Fausto Salsano, Roberto Mancini e Trevor Francis. Mesmo como coadjuvante, conquistou sua segunda Coppa Italia.
A partir de então, sua carreira foi uma decadência só, algo que aconteceu muito cedo para os padrões atuais ou da época – ele tinha apenas 29 anos. Comprado pelo Monza em 1985, foi jogar a Serie B e o clube lombardo acabou rebaixado pra Serie C. Então voltou para casa, Brescia, onde, já na casa dos 30 anos, jogou por mais duas temporadas (uma delas, a primeira, na Serie A) e colecionou novo rebaixamento, dessa vez para a segunda divisão. Em 1988-89, em mais um ano na segundona, Beccalossi teve sua última atuação em uma equipe profissional, atuando pelo pequeno Barletta.
De forma deprimente, jogou os últimos dois anos na semiamadora Serie D, por Pordenone e Breno. Um fim nada brilhante e não condizente com todo o talento que Becca exibiu nos gramados de Brescia e Milão. Mas entre polêmicas e a ausência histórica na seleção italiana, nunca perdeu a idolatria e admiração dos nerazzurri. Ainda hoje é uma referência quando se fala da camisa 10 interista, mesmo que depois dele tenham-na vestido Liam Brady, Lothar Matthäus, Dennis Bergkamp, Ronaldo, Roberto Baggio, Adriano e Wesley Sneijder.
Com o fim da carreira, fez de tudo um pouco. Foi anunciante comercial de uma multinacional japonesa do ramo televisivo ao lado do ex-companheiro Nazzareno Canuti, e depois se envolveu com a televisão e comentários esportivos, onde ainda de vez em quando dá as caras nas redes 7 Gold e Mediaset. Sempre envolvido de alguma forma com o meio artístico, por seu caráter transgressor, inspirou diversas músicas e uma peça teatral, além de ter sido citado no aclamado filme “Eccezzziunale… veramente” e ter estrelado um videoclipe. Também se envolveu com a política: em 2013, nas eleições regionais de Lombardia, Beccalossi não teve número expressivo de votos e não foi eleito para o Conselho Regional.
No futebol, foi consultor de mercado do Taranto e presidente do Lecco por um biênio, depois de breve experiência como supervisor técnico e diretor do setor juvenil dos blucelesti. Beccalossi ainda passou a trabalhar com jovens, sendo chefe de delegação das seleções sub-20 e sub-19 da Itália. Além disso, voltou a se aproximar da Inter, aparecendo no canal de TV da agremiação e auxiliando no projeto Inter Forever. Apropriado para quem continua no coração dos torcedores nerazzurri.
Veja os 10 gols mais bonitos de Beccalossi com a camisa da Inter.
Evaristo Beccalossi
Nascimento: 12 de maio de 1956, em Brescia, Itália
Posição: meio-campista
Clubes: Brescia (1972-78 e 1986-88), Inter (1978-84), Sampdoria (1984-85), Monza (1985-86), Barletta (1988-89), Pordenone (1989-90) e Breno (1990-91)
Títulos: Campeonato Primavera (1975), Serie A (1980), Coppa Italia (1982 e 1985) e Mundialito (1981)