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Em 1989, Milan e Atlético Nacional fizeram ‘o duelo dos chefões’

Copa Intercontinental colocou frente a frente Milan do controverso Berlusconi e Atlético Nacional, financiado pelo dinheiro do narcotraficante Pablo Escobar

1989. No final da década de 1980, um time mandava na Europa: o Milan treinado por Arrigo Sacchi e presidido por Silvio Berlusconi. Na América do Sul, a hegemonia dos clubes da Argentina, do Brasil e do Uruguai começava a ser incomodada pela ascensão do futebol da Colômbia. Naquele ano, o Atlético Nacional, da cidade de Medellín, conquistava a primeira Libertadores de um time cafetero na história. Na Copa Intercontinental, enfrentaria o Milan, em um dos primeiros duelos contemporâneos que serviriam como uma metáfora do futebol empresarial dos últimos anos, no qual, mais do que nunca, dinheiro de sobra constrói times campeões.

De um lado, o rossonero, o poder midiático e imobiliário. Em 1986, apenas três anos antes, o Milan vivia seu momento financeiro mais delicado: quebrado e sob o comando de Giussy Farina, fazia campanhas medíocres na Serie A. Envolvido duas vezes em escândalos de manipulação de resultados, o clube foi rebaixado duas vezes naquela década e precisava de alguém para mudar o panorama.

Em 1989, Berlusconi levava o Milan ao topo: na foto, em San Siro, está acompanhado do ex-primeiro-ministro Bettino Craxi, seu amigo (Fotogramma)

Essa pessoa foi Silvio Berlusconi, empresário de 49 anos que cresceu com o boom do milagre econômico italiano – iniciado após os chamados “anos de chumbo” – e se tornou um dos homens mais ricos da Itália. Berlusconi começou atuando em diversas áreas do ramo imobiliário e de construção civil, e assim virou um dos homens mais ricos do país.

O dono do grupo Fininvest já havia aberto canais de TV e era um magnata das comunicações. O sucesso econômico lhe rendeu a honra de Cavaliere da República Italiana – da qual se tornaria primeiro-ministro em 1994. No período em que comandou o Belpaese, se tornou o grande bilionário da Bota.

Contra o Atlético Nacional, o capitão Baresi aparecia como um dos pilares do Milan (Getty)

Seu projeto de poder incluiu a compra do Milan, em fevereiro de 1986. Os resultados da injeção de capitais foram praticamente imediatos. A base de pratas da casa, formada por Franco Baresi, Paolo Maldini, Alessandro Costacurta e Alberico Evani foi reforçada com Roberto Donadoni, Daniele Massaro e Giovanni Galli.

Um ano depois, o presidente contratou Marco van Basten e Ruud Gullit, levando o Diavolo ao scudetto aós nove anos de jejum. Já com Frank Rijkaard, a equipe rossonera faturou a Copa dos Campeões, que lhe deu o direito de jogar na Copa Intercontinental, conhecida também como Mundial Interclubes.

Além de Baresi, a defesa do Milan contava com Costacurta (Getty)

Do outro lado na disputa do mundial, o adversário dos rossoneri vestia o verde e o branco. O Atlético Nacional, como muitos clubes colombianos – e boa parte de empresas e instituições do país – naquela época, tinha parte de seus financiamentos oriundos do narcotráfico.

Sem ter onde colocar tanta “plata”, Pablo Escobar, chefe do Cartel de Medellín, precisava disfarçar a origem dos seus lucros, e por isso investiu no esporte. O capo usava tanto o Atlético quanto o rival Independiente como formas de lavar o dinheiro proveniente do tráfico de cocaína – uma amostra de que não se importava com quais cores apoiava é de que mandava matar árbitros a torto e a direito, algo que fez a temporada de 1989 ser cancelada.

Homem mais poderoso da Colômbia, Escobar “mediu forças” com Berlusconi através do futebol (Prensa Libre)

Isso fortaleceu o campeonato, pois os atletas passaram a receber maiores salários, o que os deixava mais motivados em campo e o que também atraiu jogadores de outros países sul-americanos. A Colômbia era lugar de crescer na carreira – sem trocadilhos, por favor. Em um documentário, “Los dos Escobar”, o técnico do Nacional, Francisco Maturana, admitiu isto.

Escobar também construiu mais de 50 campos, quadras e estádios no país, especialmente no departamento de Antioquia, do qual Medellín é capital. Foi uma espécie de contribuição indireta com o Atlético Nacional, pois nesses campos alguns ícones verdolagas que integraram o plantel vencedor da Libertadores se formaram. Longe – mas nem tanto – do tráfico de drogas, jogadores como Leonel Álvarez, Chonto Herrera e Alexis García deram seus primeiros passos. De fato, tudo o que Escobar fazia no futebol era de forma indireta, pois nunca foi sócio de nenhuma das equipes de Medellín, embora vários diretores das equipes fossem de sua inteira confiança – no Nacional, membros da família Botero Moreno.

Rijkaard, no Milan, e Álvarez, no Atlético Nacional, eram destaques no meio-campo de seus times (Tomikoshi)

Muitos jogadores das equipes de Medellín tinham algum tipo de proximidade com El Patrón Escobar, uma vez que ele se envolvia muito com o futebol. Antes de sua prisão, o elenco do Nacional foi à Hacienda Nápoles, moradia do traficante, para receber o bicho pela vitória na Libertadores e baterem uma bolinha com ele. Faustino Asprilla, ex-Nacional, declarou, certa feita, que os jogadores da seleção colombiana também foram obrigados a visitar o homem mais poderoso da Colômbia em sua prisão particular, La Catedral, em 1991. O exótico goleiro verdolaga, René Higuita, era de fato amigo do traficante, e foi o único flagrado em uma visita irregular ao cárcere de Escobar.

Voltemos a 1989. Na Europa, já se sabia que os times recebiam dinheiro do narcotráfico e a partida entre Milan e Atlético Nacional era vista como alguns como uma forma de combate ao futebol “ilícito”. Para alguns, o Diavolo representava o bem contra o mal.

Van Basten acabou passando em branco no embate com Higuita (Tomikoshi)

Em Tóquio, Milan e Nacional fizeram uma partida disputadíssima, que só foi decidida nos minutos finais da prorrogação. O jogo foi bastante tático e fechado. Eram os italianos que dominavam as ações, mas Higuita, que jogava avançado, não se deixava intimidar por van Basten – a ponto até de fazer suas costumeiras brincadeiras.

Quando tentava atacar, a defesa rossonera colocava em prática seus famosos “achiques”: a marcação adiantada, somada à diminuição do campo em três quartos, que deixava os atacantes Arboleda e Tréllez em constantes impedimentos e dificultava o trabalho dos meias. No finalzinho da prorrogação, van Basten sofreu falta na meia-lua. A cobrança ensaiada acabou no gol de Evani, que substituíra Massaro, e o Milan chegou ao topo do mundo.

Van Basten tentou de todos os jeitos, mas só Evani vazou o goleirão colombiano (Tomikoshi)

Após a derrota em Tóquio, o Nacional não voltou a chamar tanta atenção na Europa. Ao mesmo tempo, a guerra contra o tráfico se intensificou e o cerco a Escobar se fechou. Após fugir da prisão em 1992, o chefe do Cartel de Medellín foi assassinado, em dezembro do ano seguinte. A escalada de violência na Colômbia continuou, e após um gol contra na Copa do Mundo de 1994, o zagueiro Andrés Escobar – nenhum parentesco com Pablo – foi assassinado.

Durante os anos seguintes o futebol cafetero tentou “se limpar” do passado ligado à cocaína – e o Nacional foi vice da Libertadores em 1995. Recentemente, os verdolagas voltaram a estar em evidência internacional, graças ao trabalho do técnico Juan Carlos Osorio, atualmente no São Paulo, e por boas campanhas na Libertadores e na Copa Sul-Americana (vice, em 2014).

Ainda garoto, Maldini pode celebrar o seu primeiro título mundial (Tomikoshi)

Já o Milan, após o primeiro título mundial do time de Sacchi, continuou vivendo momentos de ouro, que duraram, com breves interrupções, até metade dos anos 2000. Berlusconi, envolvido até o pescoço em problemas políticos, legais, sexuais e outras negociatas, foi perdendo seu prestígio com o passar dos anos, e contou com foro privilegiado, por ser político, e prescrições de processos para não ir para a cadeia na Itália.

Com seu declínio – hoje o Cavaliere é “apenas” o sétimo mais rico da Itália, segundo a Forbes –, Berlusconi se viu com a necessidade de tentar resolver todas as suas questões pessoais, e afastou-se um pouco do clube. Assim, o Milan entrou em um período de decadência, que tenta superar atualmente. Como? Com dinheiro do tailandês Bee Taechaubol. Sempre ele, o dinheiro.

Milan 1-0 Atlético Nacional

Torneio: Copa Intercontinental
Local: Estádio Nacional, Tóquio (Japão)
Árbitro: Erik Fredriksson
Milan: Galli; Tassotti, Costacurta, Baresi, Maldini; Donadoni, Rijkaard, Ancelotti, Fuser (Evani); van Basten, Massaro (Simone). Técnico: Arrigo Sacchi.
Atlético Nacional: Higuita; Herrera, Gómez, Andrés Escobar, Cassiani; Álvarez, García, Pérez; Tréllez, Arboleda (Usuriaga), Arango (Restrepo). Técnico: Francisco Maturana.
Gol: Evani (Milan), aos 118

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