Jogadores Técnicos

Cestmír Vycpálek sobreviveu ao horror do nazismo para triunfar com a Juventus

Nas primeiras décadas do século XX, a Europa viveu momentos nada agradáveis: a primeira Grande Guerra deixou o continente envolto em tensão e na iminência de um novo confronto. Durante esse período conturbado, Cestmír Vycpálek nasceu em Praga, capital da Checoslováquia, criada após a dissolução do Império Austro-Húngaro e espremida entre o que seriam a Alemanha nazista e a União Soviética.

Desde pequeno, o garoto encantava com a bola e chamava a atenção quando jogava com amigos no parque Stromovka, no distrito de Letná – onde se encontra o antigo bairro judeu da capital checa. Premysl, seu pai, desejava vê-lo atuar pelo Slavia Praga, seu clube do coração. Assim, levava o pequeno Cesto ao estádio todos os domingos, para que se inteirasse do esporte – contrariando os planos de Jarmila, sua esposa, que queria que o rebento terminasse os estudos.

Cestmír, porém, agradou o pai e a mãe: se dividiu entre a escola e as categorias de base do Novomestsky, sem dificuldades para conciliar as duas atividades. Aos 17 anos, estava graduado em administração e pronto para estrear com o time principal do Slavia, que já havia lhe notado. Jogando no lado direito do meio-campo, teve algumas participações na campanha do título checoslovaco de 1940, em sua primeira temporada como profissional.

Como jogador e técnico, Vycpálek teve importância por Juventus, Palermo e Parma (Arquivo/Juventus FC)

Àquela altura, a Checoslováquia já havia sido anexada pela Alemanha – a invasão do território ocorrera em março de 1939. O regime ditatorial de Adolf Hitler perseguia, prendia e exterminava judeus, ciganos, comunistas, homossexuais e outros “inimigos do estado”, mas era hábil em manter uma sensação de superficial e aparente normalidade nas regiões que não faziam parte de um front de batalha, como era o caso do território checoslovaco. Por isso, o campeonato de futebol local continuou a ser disputado e Cesto se dividiu, nos anos da ocupação nazista, entre títulos pelo Slavia Praga e empréstimos a equipes menores, como Zidenice (atual Zbrojovka Brno) e Nitra.

O panorama checoslovaco mudou drasticamente em 1944. Os nazistas haviam começado a perder a guerra no ano anterior, quando foram derrotados pelos soviéticos na Batalha de Stalingrado. A partir de então, com o avanço do Exército Vermelho na Frente Oriental e a retomada de territórios como Ucrânia e Belarus, Hitler decidiu acelerar os seus planos genocidas: intensificou prisões e passou a confinar também os habitantes dos países ocupados que não eram de origem germânica. Assim, Vycpálek acabou capturado e deportado para o campo de concentração de Dachau, na Baviera.

Cesto relatou a sua experiência no livro “De Dachau ao tricolor”, biografia escrita por Stefano Bedeschi e publicada apenas na Itália. “Eu era um esqueleto vivo com uma jaqueta listrada, que agarrava o arame farpado do campo de concentração. Só quem passou por essas experiências pode entender o que é o valor da vida e não pode mais se chocar com mais nada”, afirmou. Vycpálek passou oito meses em condições extremas, sendo submetido a trabalhos forçados, à fome e à violência nazista. Pilhas com centenas de corpos em decomposição apodreciam a céu aberto até que os Aliados chegaram para resgatar os sobreviventes. Oficialmente, quase 32 mil pessoas foram assassinadas ali.

Cesto começou como técnico nas divisões inferiores e obteve sucesso (Archivio Farabola)

Mesmo muito debilitado, o futebolista conseguiu sobreviver ao horror. Surpreendentemente, Cesto foi capaz de recuperar a forma física para o Campeonato Checoslovaco de 1945-46, disputado ao fim da Segunda Guerra Mundial, no qual formou uma dupla interessante com Július Korostelev.

Os dois chamaram a atenção da Juventus e, em 1946, se tornaram os primeiros estrangeiros a assinarem pelo clube após o conflito. A estreia de Vycpálek ocorreu logo num clássico contra o Milan, no qual a Velha Senhora perdia por 3 a 1 e viria a empatar com um gol do reforço. Pela Juve, se destacou por características como técnica, controle de bola, visão de jogo, inteligência tática e finalizações de média distância.

Vycpálek jogou apenas uma temporada com a camisa bianconera e, após 27 partidas, cinco gols e um vice-campeonato italiano, decidiu se transferir para o Palermo, na Serie B. Foi na Sicília que mais se destacou como jogador: foi o primeiro estrangeiro a ser capitão rosanero e a marcar uma tripletta – feito só repetido por Javier Pastore, em 2010, contra o Catania –, além de ter conseguido um título da segundona e ajudado na manutenção da equipe na primeira divisão pelos quatro anos seguintes. Em cinco temporadas, Cesto teve três ex-juventinos como técnicos: Virginio Rosetta, Giovanni Varglien e Gipo Viani.

Cesto assumiu o comando da Velha Senhora em 1971 (Arquivo/Juventus)

Em 1952, o checoslovaco trocou os mares sicilianos pela Emília-Romanha. Vycpálek acertou com o Parma, time pelo qual conseguiu o título da terceirona e uma trajetória sólida na Serie B, em seus últimos anos como jogador. Durante seu derradeiro biênio como atleta, Cestmír ainda acumulou a função de técnico dos crociati, estreando na carreira que seguiria dali para frente – na própria Itália. Ao invés de voltar para Praga, Cesto resolveu permanecer na Bota, já que havia se estabelecido no paradisíaco bairro de Mondello, em Palermo, e o seu país estava sob controle soviético.

O próprio Palermo foi o clube que deu a Vycpálek a sua segunda oportunidade de trabalho. O checoslovaco levou o time para a Serie A, em 1959, mas não manteve o bom nível na elite e acabou demitido na 30ª rodada, pouco antes de as águias confirmarem o rebaixamento. Cesto, então, desceu alguns degraus: rumou às divisões inferiores, onde treinou Siracusa, Marzotto Valdagno, Juventina Palermo e Mazara, e também teve um retorno ao Palermo, mas para treinar as categorias de base.

Durante esse período, em 1968, ocorreu a Primavera de Praga, a qual foi sucedida por uma forte reação da União Soviética, que invadiu a Checoslováquia para manter a sua influência no país. A família de Kvetuse, sua irmã, acabou emigrando e foi recebida de abraços abertos em Palermo por Cestmír, sua esposa Hana e os filhos Cestino e Daniele. Com ela, chegavam Karel, seu cunhado, e os sobrinhos Jarmila e Zdenek. Sim, falamos de Zdenek Zeman, que receberia valiosos ensinamentos do tio e construiria uma relevante carreira como técnico de futebol a partir da década de 1980.

Vycpálek era admirado pelo grupo de jogadores da Juve (Arquivo/Juventus)

Em 1970, outro evento importante mudou a vida de Cesto: sua dispensa do Mazara, da quinta divisão. Sem emprego, o checoslovaco ainda contava com uma boa rede de relacionamentos e o apreço dos amigos. Dessa forma, Giampiero Boniperti, então presidente da Juventus, o convidou para ser treinador do time juvenil bianconero para a temporada 1970-71. O cartola queria que os jovens aprendessem os fundamentos técnicos mais básicos com um ex-jogador que tinha muita qualidade nos pés e propunha um futebol ofensivo. E como seria possível, para Cestmír, recusar o seu primeiro amor italiano?

Poucos meses depois de retornar a Turim, o destino agiu e Vycpálek se viu treinando o time principal. Em fevereiro de 1971, Armando Picchi teve que deixar o cargo para tratar um câncer (que levaria à sua morte, em maio do mesmo ano) e Boniperti confiou em Cestmír como substituto. Na primeira temporada, o checoslovaco levou a Juventus ao lugar da Serie A e ao vice-campeonato da Copa das Feiras – antecessora da Copa Uefa e da Liga Europa –, ocasião em que o time piemontês foi derrotado na final pelo Leeds.

Seu estilo amável, tranquilo, atencioso e acessível conquistou rapidamente o jovem elenco da Juventus, que tinha muitos talentos a serem potencializados – casos dos garotos Luciano Spinosi, Franco Causio, Gianpietro Marchetti, Antonello Cuccureddu, Pietro Anastasi e Roberto Bettega. A temporada 1971-72, porém, não foi simples. Até começou de vento em popa, com Sandro Salvadore sendo o xerife da zaga e Bettega marcando 10 gols nas primeiras 14 rodadas, com direito a um maravilhoso tento de letra num 4 a 1 sobre o Milan, em San Siro. Porém, em janeiro, o artilheiro precisou se afastar dos gramados pelo restante da campanha para tratar uma tuberculose.

Pela Juventus, Vycpálek foi bicampeão nacional (Archivio Farabola)

Para manter o alto nível e o futebol vistoso, Vycpálek precisou convencer o veterano meia Helmut Haller a atuar mais avançado, dando suporte a Anastasi. A estratégia deu certo: a Juventus se manteve na liderança do campeonato e viria a ser campeã com um ponto de vantagem sobre Milan e Torino. Três semanas antes do fim da campanha, contudo, Cesto foi atingido por mais uma tragédia pessoal: em 5 de maio de 1972, o voo 112 da Alitalia se chocou com o Monte Longa, quando estava se aproximando do aeroporto Punta Raisi, em Palermo. Cestino, seu filho mais velho, foi um dos 115 mortos no acidente aéreo – o segundo pior da história da Itália até os dias de hoje.

Era noite na Itália e a Juventus estava concentrada para o duelo da antepenúltima rodada contra o Cagliari, quarto colocado, que aconteceria dois dias depois. O presidente Boniperti acabou sendo o encarregado de dar a triste notícia para o amigo – que, obviamente, rumou a Palermo e não comandou a equipe bianconera naquele domingo.

A Velha Senhora venceu os sardos por 2 a 1 e, após o jogo, em entrevista à Rai, o capitão Salvadore fez questão de deixar claro o afeto que o elenco tinha pelo técnico. “Não é certo dizer que jogamos principalmente por Vycpálek nesta partida. Jogamos por nosso treinador desde o início do campeonato. Jogamos porque, acima de todos, foi ele que sempre acreditou neste grupo”, disse, antes de agradecer o empenho do checoslovaco e desejar-lhe forças para superar aquele momento de enorme tristeza.

Cesto se tornou um nome histórico da Juve, como Edoardo Agnelli e Giampiero Boniperti (Mondadori/Getty)

O drama pessoal de Vycpálek acontecia em paralelo ao auge de sua carreira. Além da conquista do scudetto, Cesto também acabaria sendo escolhido como o melhor treinador em atividade na Itália na temporada 1971-72: foi agraciado com o prêmio Seminatore d’Oro, concedido pela Federação Italiana de Futebol (FIGC) entre 1955-56 e 1989-90. Cestmír e Nils Liedholm foram os únicos estrangeiros a lograr este feito.

No início da temporada seguinte, com os reforços de Dino Zoff e José Altafini, Cesto conquistaria a Serie A mais uma vez – e, novamente, com forte emoção. Os bianconeri passaram o campeonato inteiro em disputa com Milan e Lazio, mas atrás das adversárias. Até que, na última rodada, rossoneri e biancocelesti perdiam para Verona e Napoli, respectivamente. A Juventus também estava sendo derrotada pela Roma, mas Altafini, aos 61, e Cuccureddu, aos 87, garantiram o triunfo e o 15º scudetto da Velha Senhora. Naquela mesma campanha de 1972-73, a Juve seria vice-campeã da Coppa Italia e da Copa dos Campeões, sendo derrotada nas finais por Milan e Ajax, respectivamente.

Devido à recusa do Ajax de Johan Cruyff, a Juventus herdou a vaga no Mundial Interclubes de 1974, mas perdeu a decisão para o Independiente. Na Serie A, também foi vice. Estes seriam os últimos momentos da carreira de Cestmír como treinador: o checoslovaco se aposentou depois de somar 80 vitórias, 57 empates e apenas 22 derrotas – um aproveitamento de 68,2% – pela Velha Senhora. Até hoje, Vycpálek é considerado como um dos grandes técnicos da história bianconera.

Na sua penúltima temporada como técnico, Cestmír foi vice-campeão europeu (Anefo/Nationaal Archief)

Cesto foi substituído por Carlo Parola para a disputa da temporada 1974-75 e voltou a viver em Palermo. Apesar disso, continuou colaborando com a Juventus na função de olheiro. Na Sicília, ficou atento ao futebol de Salvatore Schillaci, então atacante do Messina, e patrocinou a contratação do artilheiro pela Velha Senhora – em 1990, o ano seguinte à transferência, Totò seria eleito como o melhor jogador da Copa do Mundo.

Afastado do futebol, Cesto continuou vivendo em Mondello, na cidade de Palermo, até falecer em 5 de maio de 2002 – exatamente 30 anos após perder o seu filho. Nesse mesmo dia, a Juventus conquistava o 26º scudetto de sua história, de maneira similar ao título de 1973, sob a batuta de Vycpálek: na última partida, ultrapassando rivais. Uma homenagem involuntária, mas marcante para um herói que superou terríveis agruras para realizar feitos extraordinários no futebol.

Cestmír Vycpálek
Nascimento: 15 de maio de 1921, em Praga, Checoslováquia (atual Chéquia)
Morte: 5 de maio de 2002, em Palermo, Itália
Posição: meio-campista
Clubes: Slavia Praga (1939-41, 1942-43 e 1944-46), Zidenice (1941-42), Nitra (1943-44), Juventus (1946-47), Palermo (1947-52) e Parma (1952-58)
Títulos conquistados: Campeonato Checoslovaco (1940, 1942, 1943), Serie B (1948) e Serie C (1954)
Clubes como treinador: Parma (1956-58), Palermo (1958-60), Siracusa (1960-61), Marzotto Valdagno (1962-64), Juventina Palermo (1965-67), Mazara (1969-70) e Juventus (1971-74)
Títulos como treinador: Serie A (1972 e 1973)

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