Serie A

O ‘fascismo’ de Buffon e o status do herói

“Soa inacreditável que estejamos discutindo em 2017 um possível fascismo de um goleiro que escolheu uma camisa de número 88 em 2000. Falta passar a Navalha de Hanlon, isto é, não atribuir à maldade aquilo que pode ser adequadamente explicado pela estupidez. Do contrário, Buffon é um maquiavélico tão discreto, mas tão discreto que expôs suas ideologias nefastas com uma camiseta e uma escolha de número”, disse Mateus Ribeirete, professor e mestre em estudos de linguagens.

No período de um ano, na virada do século 20, Gianluigi Buffon se tornou alvo de comentários na península por suas ideologias. Primeiro, vestiu uma camisa na qual se lia um slogan fascista; depois, deixou a comunidade judaica consternada por escolher uma referência neonazista como número para a temporada.

Em 1999, o goleiro colocou um uniforme do Parma no qual lia-se a expressão “boia chi molla” (“morte aos covardes”, em tradução literal). Na temporada seguinte, ouviu do grupo de judeus italianos que o número 88, impresso nas costas da blusa crociata, era uma referência clara ao nazismo: a oitava letra do alfabeto é H, e, portanto, a escolha significava Heil Hitler.

Buffon chamou uma coletiva para explicar o episódio do número, sobretudo depois que a mãe dele declarou que as pessoas “tinham de se envergonhar por pensar algo assim”. Ele afirmou que escolheu o 88 porque lhe vinha à cabeça “quatro bolas, e na Itália todos sabem o que significa ter bolas: determinação e força”. A escolha primária nem era essa, também disse. O goleiro queria jogar com a 00, mas a liga não permitiu. A 01, que lhe remetia ao carro de General Lee na série “Os Gatões”, tampouco.

No atendimento à imprensa, tentou, também, explicar o slogan. A TV italiana mostrou Buffon com a inscrição depois de uma partida contra a Lazio, em setembro. De acordo com o goleiro, a ideia era chamar os torcedores do Parma num momento conturbado da equipe no campeonato. A natureza política – “boia chi molla” era usado pelos neo-fascistas de Reggio Calabria na década de 1970 – não se fazia presente. “Quando vesti aquela camisa, eu fui estúpido porque não sabia que era uma frase usada pelo regime fascista”, afirmou. Na ocasião, a comissão de futebol multou o jogador em 5 milhões de liras porque escrever nas roupas de jogo infringia as regras. Na coletiva, confirmou que trocaria a numeração para 77.

A verdade do autor e o patriotismo

O cientista político Tamir Bar-On não deixa dúvidas sobre o que ele pensa de Buffon no livro The World Through Soccer: The Cultural Impact of a Global Sport. Na publicação, escreve que “alguns políticos como Jean-Marie Le Pen e jogadores neofascistas como Paolo Di Canio, Gianluigi Buffon e Christian Abbiati são perspicazes em usar o futebol como veículo de ponto de vista militar, étnico e exclusivista de uma identidade nacional”, além de que o goleiro “personifica o ethos do ultranacionalista e neofascista”.

As definições de nacionalismo e patriotismo não são complicadas, e são bem diferentes entre si. O professor do Departamento de Filosofia da Universidade de Brasília, Nelson Gomes, explicou: “Patriotismo é apenas a atitude de adesão aos valores de um país, enquanto o nacionalismo é essa mesma adesão, mas acompanhada de recusa dos valores de outro”. Resumidamente, o patriota ama o próprio país, enquanto o nacionalista compartilha do mesmo sentimento adicionando a exclusão do vizinho.

A camisa 88, rapidamente trocada (Getty Images)

As discussões em torno da temática dos oriundi na seleção italiana têm um pouco de cada um. Durante o governo de Benito Mussolini, ele permitiu que estrangeiros que tinham laços com a Itália jogassem pela Azzurra na Copa do Mundo de 1934. Mesmo que a decisão fosse contrária ao dogma do italianismo puro, a “presença indicava um fluxo de migração positivo e poderoso, capaz de atrair talentos de outras nações”, escreveu Greg Lea no Guardian.

A partir da década de 1960 – depois de fracassos em edições seguidas do Mundial –, a opinião pública foi alterada. O discurso começou a inclinar na falta de comprometido dos oriundi, bodes expiatórios, já que eles não tinham conexão emocional, eram preguiçosos ou vibravam menos com a vitória da pátria. Essa linha de raciocínio não faz parte somente do futebol italiano; esses argumentos, no limiar da xenofobia, acompanham selecionados diversos ao redor do planeta.

Bar-On divaga sobre a posição política de Buffon, mas as associações dele e dos protestantes na época de Parma são distintas e contraditórias. No texto Ur-Fascismo, Umberto Eco explica que o fascismo era uma colcha de retalhos. A ideologia era uma colagem de ideias filosóficas e políticas cheia de contradições, visto que era um movimento totalitário que agregava revolução e monarquia, exército e milícia pessoal, privilégios da Igreja, livre mercado e educação pública que valorizava a violência.

A doutora em Filosofia Marcia Tiburi dá alguns detalhes sobre a associação pessoal à orientação alheia. “As diferenças de classe, raça, gênero e sexualidade, além do padrão da normalidade física, são o foco do afeto odiento que não resiste sem a inveja e o medo. É preciso intensificar a diferença através de sua própria marcação para se localizar um alvo contra o qual agir por palavras e atos”, escreveu em Como conversar com um fascista. Em duas décadas de carreira, Buffon dividiu vestiário com vários craques, mas nenhum teve tanto impacto na vida dele quanto o goleiro camaronês Thomas N’Kono. Foi ele quem inspirou o italiano a decidir qual posição atuaria no futebol.

De acordo com o filósofo, o fascismo era intolerante (Antônio Gramsci, fundador do Partido Comunista italiano e opositor do governo ditatorial, foi mantido preso pelo regime até a morte) e representava um “desconjuntamento político e ideológico, mas ordenado” – pois tinha base emocional articulada, mesmo que não tivesse suporte filosófico. “Aquilo que se rotula como fascismo, em geral, é uma miríade de posições políticas muito diversas, mas todas elas consideradas como antiesquerdistas ou conservadores”, declarou Gomes. O nazismo, entretanto, só existe um, e ele é politeísta, pagão e anticristão – neste último, importante: a Itália é um país extremamente católico.

O jornalista Braitner Moreira, especialista em futebol italiano, concorda com a teoria da história cíclica. “Acredito que o fascismo (ou seu subproduto) voltará a ser um movimento aceitável daqui a algumas décadas, tomará o poder em algum lugar, e então acabará atacado e renegado até que a sensibilidade se perca outra vez e recomecemos o ciclo”.

No Belpaese, o neofascismo tenta retomar o topo da cadeia desde os anos 60, mas somente na virada do século que a ideologia passou de burburinho para uma voz um pouco mais alta, justamente com as fundações dos partidos Lega Nord, Forza Nuova e CasaPound. O jornal romano La Repubblica, por exemplo, mantém uma editoria sobre o assunto logo na página principal e equipes buscam o diálogo através da História.

Em outubro último, capitães da Serie A leram trechos do Diário de Anne Frank em resposta ao antissemitismo crescente no país; ultras retrucaram com casos de discriminação: os do Benevento chamaram o novo técnico Roberto De Zerbi de “cigano”, ofensa grave na Itália; organizada da Lazio colaram insultos e adesivos da adolescente vítima do Holocausto com a camisa da Roma no Olímpico para o Derby della Capitale.

“No presente uso linguístico-político, entretanto, com frequência, conservadores são chamados de fascistas. Infelizmente, nem sempre o emprego das palavras e dos conceitos no debate é acompanhado de alguma preocupação de rigor”, afirmou o professor Gomes. Fascismo, pela definição agregadora, consegue se adaptar a muitos grupos políticos e cenários. Mesmo eliminando um ou mais aspectos, o regime pode ser reconhecido como fascista ou familiar.

Ética x moral

O que explica aceitar um comportamento inadequado? O esporte amplifica os conflitos de paixão x razão, sobretudo porque, neste contexto, a atitude dos torcedores tem base psicológica, o que a separa totalmente do plano moral. “Seres humanos, em princípio, têm certo grau de racionalidade, na medida em que dispõem de linguagem e podem pensar. Eles, não obstante, também têm paixões. A relação entre paixões e racionalidade não é fácil de ser traçada”, explica Gomes.

O futebol é disciplina, mas é contradição. São muitas regras e narrativas simbólicas, mas que jamais pode passar deste plano fantasioso para não representar a vida de forma crua. “Nós, torcedores, esquecemos da vida em um jogo importante. Aos jogadores, nesse sentido, também ofertamos a chance de esquecer o que eles são ‘na vida’”, declarou o jornalista Leandro Iamin.

Fora que, acima disso, diz Moreira, o lema ‘importante é participar, não ganhar’ não aguenta 20 segundos no esporte de alto rendimento. O lema foi criado por um bispo e levado às Olimpíadas modernas por Pierre de Coubertin, dois não-esportistas. A aceitação tende a ficar latente ao compreender que o desporto tem relação direita com utilidade – no caso, vitórias. O resultado independe do valor moral do sujeito pelo qual o torcedor escolhe vibrar. “Acho que temos dificuldade, no Brasil, de fazermos essa separação [entre ídolo e pessoa]. Em outros lugares (Inglaterra, Argentina, França etc), vejo uma divisão mais clara. Qual é a saída que tomamos por aqui? Ignoramos a figura não-esportiva”, completou. Basta lembrar que, nas últimas semanas, um jogador condenado em primeira instância por estupro coletivo continuou atuando normalmente e criando interesse de contratação por outros clubes e que outro, preso por homicídio triplamente qualificado, conseguiu habeas corpus e fechou contrato com um time da segunda divisão brasileira.

Este gancho permite que entremos em outra discussão. “Precisamos separar discurso de ação. Pode-se especular sobre sua ideologia, mas ele não fez rigorosamente nada. Trata-se de um contexto completamente diferente de qualquer ação direta que promova dano a alguém. Equiparar ação e discurso – por mais pútrido que o discurso seja –, não é uma prática justa, e geralmente parte de um relativismo pós-moderno que não elucida nada. Um tonto defendendo Mussolini é menos nocivo do que alguém agredindo uma mulher ou abusando de uma criança”, declarou Ribeirete.

Buffon nunca foi de se posicionar politicamente de forma aberta ou direta. De certa forma, a ingenuidade estúpida de um rapaz de 20 anos que veste uma camisa com determinado slogan se contrapõe à imagem do adulto de 28 que é clicado junto à bandeira italiana com inscrição de extrema-direita, na comemoração da Copa do Mundo de 2006, e o discurso confuso do homem de 33 que, ao comentar sobre o Calcioscommesse – escândalo de manipulação de resultados de 2011 –, falou que a Piazzale Loreto é símbolo de justiça sumária: fuzilar sem julgamento e expor na praça (este foi o local no qual os corpos sem vida de Mussolini e da amante, Clareta Petacci, foram pendurados de cabeça para baixo, em 1945. A escolha da praça foi proposital: no ano anterior, 15 membros de um grupo de resistência foram mortos ali; os corpos também ficaram expostos ao público, com aprovação do ditador).

Ainda assim, atualmente, o goleiro da Juventus comenta assuntos de caráter político de maneira superficial. Na última vez que falou sobre ideologias, deu pouco espaço para entendimentos tortos e alinhou exatamente o oposto: West Ham é um dos times preferidos dele por conta dos torcedores, pois eles “seguem os Hammers com uma energia extraordinária. E também pelo brasão: dois martelos cruzados. Meio comunista, se pensar direito”.

Todavia, alguns jogadores italianos já se apresentaram admiradores do regime sem base semiótica duvidosa. Paolo Di Canio, em 2005, afirmou que era “fascista, e não racista”, e mostrou respeito a Mussolini na autobiografia (fazer apologia ao fascismo só virou crime no ano passado) – ele recuou nos discursos depois que virou técnico. (O torcedor da Juventus Arjun Pradeep comenta que “muitos esportistas tentam mostrar bons exemplos, mas sempre têm as exceções”, e assim podemos especular até como estratégia de assessoria). Enquanto jogador da Lazio, foi julgado e multado por comemorar um gol contra o Livorno com o braço direito estendido.

O ex-goleiro do Milan Christian Abbiati disse à Gazzeta dello Sport que respeitava alguns ideais do fascismo e não tinha “vergonha de manifestar a fé política”. Ele rejeitava alguns preceitos da ditadura, como as leis raciais, mas admitiu simpatia aos pensamentos de valores do Catolicismo, ordem social e pátria. Essas declarações receberam protestos das organizadas do Milan (Brigate e Guerrieri), e ofereceu uma curiosa relação amistosa entre a Commandos Tigre, que comandava a Curva Sul milanista, e a Cuore nero, extrema-direita da Norte da rival Inter. O meio-campista Alberto Aquilani, por exemplo, tem opiniões claras sobre os imigrantes no Belpaese (“eles são um problema”) e coleciona bustos do Duce.

Temos casos somente de inclinação política, também. Daniele de Rossi tende a acompanhar a Forza Nuova, enquanto o ex-goleiro da Juve Stefano Tacconi foi coordenador do movimento Nuovo MSI-destra na Lombardia. O aposentado atacante Cristiano Lucarelli, por outro lado, representa o comunismo. Ele é natural de Livorno, uma das poucas cidades do Belpaese na qual o socialismo permanece enraizado. Quando estreou pela equipe sub-21 da Itália, marcou gol e comemorou com uma camiseta com a imagem de Che Guevara. Ao assinar com o clube do coração, escolheu jogar com a camisa 99: uma homenagem ao grupo de ultras Brigada Autônoma Livornese, famoso por cantar o hino comunista durante os jogos e festejar o aniversário de Josef Stalin. Ele e Buffon, aliás, trabalharam juntos quando ambos dividiam a propriedade do Carrarese, então promovido para a terceira divisão.

Um cenário que permanece no meio é o do técnico bicampeão mundial com a Itália nos anos 30. O comando e motivação que Vittorio Pozzo passava aos selecionados tinha princípios militares, e a associação dele com Mussolini levou o treinador ao ostracismo, como disse Jonathan Wilson em A Pirâmide Invertida, entre 1950 e 60 – quando atuava na função de jornalista. A antiga casa da Juve, Stadio delle Alpi, não tem o nome do turinense exatamente por uma imposição contra – o estádio do Biellese, no entanto, é uma homenagem a ele. Apesar da proximidade do treinador com Giorgio Vaccaro, coordenador-geral do esporte do regime fascista e presidente da Federação Italiana, durante a Copa de 1934, surgiram evidências na década de 90 que Pozzo levou comida a correligionários em Biella, ajudou prisioneiros de guerra aliados a escapar do regime e trabalhou com a resistência antifascista.

A esposa de Buffon, Ilaria D’Amico, chegou a confirmar a ideologia execrável do marido, mas só até a página dois. Ela comentou à Vanity Fair que achava que o amor pelo goleiro era impossível, já que o jogador “era imaturo e fascista”. Contudo, afirmou, que ele era um homem completamente diferente do estereótipo que tinha em mente. Não foi o suficiente para que o senador Maurizio Gasparri mudasse de ideia. Para ele, o goleiro foi um dos seguidores do ex-primeiro ministro Matteo Renzi, do Partido Democrático, para se afastar do passado como simpatizante da extrema-direita. O político é um dos vices do Senado pelo partido de centro-direita Forza Italia. Recentemente, declarou que é contra o casamento gay e adoção de crianças por pessoas do mesmo sexo (“A Itália ainda é um país homofóbico e racista”, contou o ex-jogador Giovanni Licchello, assumidamente gay, em entrevista publicada no site).

Transformação do herói no vilão

Napoleão Bonaparte, em linhas gerais, dizia que ninguém era herói para o camareiro. O empregado sabia de todos os segredos e tinha uma visão mais crítica sobre quem o empregava. Jogadores de futebol são o quê? E quando são o que são? “Alguém idolatrado tem uma missão que envolve mais generosidade do que apenas fazer as pessoas saberem o que ele pensa e do que gosta na vida. Alguém idolatrado deve, em tese, ser um propagador de tolerância, com algum recurso moderado nas pautas que abraça”, afirmou Iamin.

O próprio jornalista acrescenta, em outra ideia: “A quem não se posiciona, o benefício de não precisar ser questionado. A quem se posiciona, a chance de se tornar um Maradona, ainda mais idolatrado por quem comunga de suas ideias, ou um Pelé, a quem muita gente se decepcionou na esteira dos anos.” Entre as poucas ações políticas, Buffon aceitou o convite da Uefa em 2012 para abraçar o programa Respect Diversity, que combate o racismo e a intolerância no esporte. O ex-zagueiro Lilian Thuram mantém uma fundação que, desde 2008, luta contra a intolerância racial e defende os direitos humanos através do debate, leitura, exposições e workshops em colégios e universidades na Europa.

Uma minoria – para não dizer pouquíssimos – de corintianos se sentiram afetados pela inclinação elogiosa por parte do meio-campista Jadson ao deputado Jair Bolsonaro. Sentimento equivalente, apesar de se tratar de atletas com níveis de idolatria distintos, ao do palmeirense depois que Felipe Melo expressou que estaria do lado do político que pleiteia uma disputa presidencial. Por mais estúpido que o discurso seja, ele é fundamentalmente diferente da ação – um Ryan Giggs tendo um caso extraconjugal de oito anos com a cunhada, por exemplo, ou qualquer um dos fatos relembrados pelo UOL sobre agressões de jogadores às mulheres.

“Não há algoritmo para distinguir o herói do vilão”, resume Gomes. Há circunstâncias boas, em alguns casos, e prejudiciais em outros. A fórmula não existe e o comportamento não é linear. Vide o Marechal Pétain, por exemplo, herói da vitória francesa contra os alemães na Batalha de Verdun, em 1916. Muitas cidades e vilas na França foram nomeadas em homenagem ao militar. Quando se tornou chefe de estado, na década de 40, colaborou com Hitler e só não foi executado devido aos serviços prestados à pátria anteriormente.

Buscar uma extensão no campo é esbarrar no conflito.

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Publicado originalmente em dezembro de 2017 no ESPN FC.

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