*Publicado originalmente no Gazzebra
“A Itália ainda é um país homofóbico e racista, de certa maneira. Nós estamos longe da liberdade presente atualmente em outros lugares, como Estados Unidos e Inglaterra. Nós precisávamos ensinar respeito ao próximo na escola”, disse Giovanni Licchello, único ex-jogador de futebol assumidamente gay na Itália, ao Gazzebra.
O pensamento em agosto de 2008, quando a revista GQ foi às bancas com uma entrevista com jogadores da Fiorentina, era bastante parecido com o atual: no esporte, hostilidade. Em resposta às falas dos atletas, a antiga deputada pelo Partido Democrata Paola Concia declarou que é “impossível um jogador dizer que é homossexual, e os atletas da Viola falaram claramente porque o mundo do futebol e os torcedores são ‘machos’ e homofóbicos”.
Participaram desta conversa no vestiário florentino Marco Donadel, Giampaolo Pazzini, Alessandro Gamberini e Sebástien Frey. Os dois primeiros afirmaram que, provavelmente, nunca encontraram um gay no futebol. O zagueiro tentou motivar, afirmando que a torcida acompanharia a atitude positiva e apoiaria um jogador caso se declarasse gay. Frey respondeu de forma enfática: “Sério? Em um mundo onde os torcedores já atacam as mulheres e namoradas dos jogadores, imagina como seria se alguém se assumisse. Seria um massacre. Faixas, cânticos. Um inferno”. Inferno.
Seis anos separavam a entrevista em Florença e a do ex-jogador Francesco Coco ao jornal Corriere Dello Sport. Em janeiro último, o ex-Milan e Inter declarou que existem homossexuais no futebol, mas é bem difícil falar sobre o tema porque há a necessidade de modificar a forma de pensar do esporte. Olha só como o discurso se mantém o mesmo: “se o jogador se revela gay e continua jogando, os ultras não saberão como agir. Infelizmente, é complicado para muitos ter um ídolo futebolístico homossexual”.
As frases foram ditas nos dias que sucederam a partida da Coppa Italia entre Inter e Napoli, quando o técnico Roberto Mancini afirmou que foi chamado de “frocio” e “finocchio” (o equivalente a “bicha” em italiano; alguma coincidência com o que acontece no Brasil?) pelo rival Maurizio Sarri. “Ele é um racista. Pessoas como ele não devem estar no futebol”, esbravejou Mancini contra o outro treinador. O comandante do Napoli, aos 57 anos, é um exemplo do italiano médio das gerações nascidas antes da década de 1980. O antigo diretor da Juventus Luciano Moggi, 79, é outro: ele declarou em 2008 que não contrataria um homossexual pois “não há espaço para um gay no calcio”.
Das últimas partidas que vi, cito Palmeiras x São Paulo. Pelo Campeonato Brasileiro, era um tiro de meta qualquer para o Tricolor. Denis ainda corria para a bola quando já dava para pressentir o “bicha” que ecoaria da arquibancada nos milésimos de segundo seguintes. Uma derrota do futebol brasileiro; uma derrota da civilidade. Na Itália, gritos e cantos desse cunho não existem – ainda. Só que a situação está longe de ser a ideal, mesmo que o caminho aponte para o correto a ser seguido.
Estrangeiros, provincianismo e Mussolini
A homofobia no Belpaese está diretamente ligada ao pensamento de um país que tolera o racismo e que só viu imigração a partir da década de 70. Enquanto mais de 24 milhões de italianos saíram da terra natal até 1976, apenas 1,5 milhão de estrangeiros foram registrados como residentes italianos até 2004. Se os europeus do Norte eram vistos com respeito, os peninsulares rebaixavam as regiões ao sul em relação às suas: para os milaneses, o povo de Florença era “africano”; aos de Florença, este era o romano; aos romanos, os napolitanos; por fim aos napolitanos, os sicilianos. Abrange-se mais ainda a disputa territorial ao dividir entre Norte (potência industrial) e Sul (agrário) – vale a leitura adicional de “O raio-x da discriminação contra o napolitano na Itália”, do blog Partenopeo.
O aumento de estrangeiros na Itália em um momento de crescimento econômico ajuda a explicar o preconceito racial. O que acontecia à época era o despertar financeiro que o país não via desde os últimos anos da trajetória do poder fascista de Benito Mussolini, ainda nos anos 40. Podemos, desta forma, traçar um paralelo cultural: a Itália olha torto para o diferente. Por tanto tempo, a diversidade não foi aceita – chegaremos lá.
Para exemplificar o preconceito: uma nova discussão sobre racismo entrou em pauta em julho de 2013, quando a recém-eleita Ministra da Integração, Cécile Kyenge, foi atacada com bananas, chamada de orangotango pelo senador Roberto Calderoli, da Liga Norte, e ouviu que tinha de ser estuprada para “entender o que era ser uma vítima de um crime atroz” por um conselheiro do mesmo partido anti-imigração. Não é fácil ser um indivíduo fora do que o italiano médio acha comum.
O campanilismo é outro aspecto sério; a identificação à região na qual nasceu ao invés de um sentimento nacional. No século 19, a Itália ainda era uma imensidão de estados separados. Ora, existe um ditado popular em Lucca assim: “melhor ter alguém morto na sua casa que uma pessoa de Pisa na sua porta”. As cidades são separadas por uma viagem de 20 minutos pela Toscana.
Pasquale Moretti é dono de um bar nas redondezas do estádio Olímpico, em Roma. É o local de encontro dos torcedores da Lazio antes das partidas em casa. Nesse estabelecimento há um armazém com memorabilia fascistas, como camisetas, quadros e vinhos com a face do Duce estampada no rótulo da garrafa. Quando falou ao The Guardian, em 2013, Moretti estava com 78 anos. Ele disse que nasceu naquela época e que foi Mussolini quem construiu casa e colocou pão na mesa dos trabalhadores.
Um turista desinformado nos janeiros passados podia ficar assustado ao ver calendários do Duce nas bancas italianas. As vendas do catálogo impresso subiram 10 vezes na última década. Mussolini se tornou uma figura pop. O grupo neofascista CasaPound, uma minoria, não deixa desmentir sobre a influência da ideologia do antigo ditador, sendo que os jovens que chegam a ele veem o Duce como a figura paternal da Itália. Aqui, vale uma digressão: ao mesmo tempo, pensadores e escritores batem de frente com a ideia da CasaPound, frisando que muitos dos compradores dos produtos relacionados a Mussolini não votam em partidos fascistas.
Da velha guarda, podemos pegar, além do “piadista e não-racista” Calderoli, Silvio Berlusconi como figura principal. Ele, o antigo dono do Milan e atual presidente honorário, foi o forte aliado da Liga Norte – atualmente com poucas cadeiras no Senado – no arranque para chegar ao poder nacional nos anos 90. A Itália tolera o racismo porque ainda existem desacordos sobre o que é esse preconceito. Calderoli disse que chamar Cécile de orangotango foi uma “brincadeirinha” e tantos italianos consideraram normal uma charge retratar Mario Balotelli como King Kong. Teve prefeito de cidade grande da mesma região que afirmou que imigrantes tinham de se vestir de animais e serem caçados.
Mudança
Sexo entre pessoas do mesmo gênero é algo natural no Belpaese desde 1887. Nem Mussolini nem a República Social Italiana mexeram nas leis sobre relações homossexuais consensuais – apesar que o regime fascista perseguiu gays, advertindo e confinando-os como método de punição administrativa.
A Ilga, uma ONG de direitos LGBT, revelou uma pesquisa em 2015 que mostrava que a Itália era o país da Europa Ocidental mais desigual para com as diferenças na sexualidade. Até aquele momento, o movimento gay no Belpaese era dividido e a política não integrava os direitos civis. Neste levantamento, Malta subiu 20% em um ano por conta da legislação aprovada naquele mesmo ano que reconhecia os direitos da identidade de gênero e vetava a cirurgia reparadora em bebês intersex. O co-presidente da organização, Paulo Côrte-Real, afirmou que os países que mais cresceram na comparação do Mapa Arco-Íris (Finlândia, Luxemburgo, Croácia e Andorra) tiveram grande ajuda dos líderes ativistas e políticos.
Outra pesquisa muito importante foi divulgada no outono seguinte. Os dados do Instituto Nacional de Estatísticas (Istat) mostraram a fotografia de uma Itália culturalmente preconceituosa e segmentada pelo famoso “não sou contra gay, mas…”:
- 73% acham injusto contratar ou dar abrigo a alguém por conta da orientação sexual;
- 74% não consideram a homossexualidade como doença;
- 73% não consideram imoral ser homossexual;
- 74% afirmaram que gays não são uma ameaça à família;
- 65% colocaram que o amor gay é igualmente ao hétero.
Os dados não são minimamente favoráveis em relação à média europeia, ainda mais se considerarmos o outro lado:
- 63% dos entrevistados admite a união gay, mas somente 43% aprovam o casamento;
- 50% dos italianos não concordam que gays possam ser professores; e menos de 20% aceitam gays na medicina e política;
- 29% dos entrevistados querem que os homossexuais sejam mais discretos;
- 40% ficariam incomodados caso o vizinho fosse gay;
- 80% são contra a adoção de crianças por casais homossexuais.
Esse cenário se opõe à exposição dos gays italianos devido à insegurança social. A esperança, corroborada pela Ilga, é que os descendentes da nova geração estão muito mais abertos para discutir e tolerar. Enquanto 60% dos idosos aceitam as diferentes sexualidades, a taxa sobe para 90% entre as pessoas com até 25 anos.
Lei Cirinnà
Ainda bem que o multiculturalismo existe. Não somente ele, como também a discussão do futuro. “Acredito que a homofobia no futebol italiano é grande. Nos últimos anos, algumas coisas têm mudado”, afirmou Francesco Viola, torcedor fanático do Catania, graduado em Farmácia e gay. Os dados do Istat vieram a público somente após o reconhecimento do casamento homossexual em território italiano após 30 anos de discussão no Parlamento. Foi em maio último que a lei Cirinnà, uma proposta da senadora Monica Cirinnà, entrou em vigor para conceder direitos iguais entre casais de mesma orientação sexual.
O microcosmo do futebol, é claro, não fica de fora. Em meio à toda turbulência, lá esteve a Rainbow Roma, única torcida organizada gay italiana. A primeira visita ao Olímpico foi realizada na 21ª rodada da Serie A 2012-13, contra a Inter. O Pochos, equipe de Nápoles, foi fundado no mês seguinte e reconhecido como o primeiro time homossexual do Sul. E não para por aí, pois existem outros times na Bota, como I Romei e Phoenix (Roma), Revolution (Florença), Gatto Nero (Turim), Arzenal (Gênova) e Bugs (Bolonha). O romano B.A.T. e o milanês I.C.O.N.S. foram desmembrados no último biênio.
Os clubes não têm qualquer filiação com a Federação Italiana de Futebol (FIGC), mesmo que a primeira seleção nacional de gays e transgêneros tenha sido formada em 2016. A associação Gaycs regula o futebol homossexual e tem três equipes sob sua tutela: a dupla de Roma e o time napolitano. É ela quem organiza o Italian Gaymes, um torneio multiesportivo realizado anualmente no mês de julho. Os campeonatos de futebol podem ter datas alteradas, porém, geralmente, seguem a mesma agenda: na primavera, Nápoles sedia a Copa Adelante; e no verão, a Copa Finocchiona é disputada em Florença, Genoa tem a Copa Superb e Milão organiza a Copa Diversity. Turim costuma ter uma competição nacional durante o outono, quando também é jogada outra Superb. Outros torneios são espalhados durante o ano em Bolonha e na capital.
Apesar da linha do tempo não contínua, o ano de 2013 foi muito importante para a comunidade gay no esporte. Um triunfo inédito do futebol italiano foi o ouro do extinto Black Angels, de Roma, na edição disputada na Antuérpia do Mundial de Jogos Abertos, festival esportivo e cultural LGBT. A conquista no OutGames foi comemorada como uma vitória olímpica pelos grupos homossexuais.
O ex-jogador
Giovanni Licchello foi atleta do Chieti, Bitonto e Brindisi, nas séries C e D, respectivamente, e atuou na primeira divisão da Suíça pelo Sion antes de encerrar a carreira em 2011, aos 24, por questões físicas (ele tinha 1,80 m). Além disso, estava cansado de tentar pertencer àquele ambiente que não lhe cabia. “O futebol italiano não está preparado para aceitar a normalidade. A reação dos fãs e os contatos com patrocinadores são os principais obstáculos para um jogador se assumir”, declarou ao Gazzebra.
Naquele mesmo ano de 2013 que Licchello concorreu por brincadeira e venceu o prêmio Mister Gay, dois jogadores se posicionaram a favor dos homossexuais no futebol italiano. O lateral Federico Balzaretti disse que “os mais inteligentes aceitarão [a revelação da sexualidade], enquanto os menos inteligentes, não”. Durante a disputa da Eurocopa de 2012, Antonio Cassano disse em entrevista coletiva que esperava não haver gays no elenco da Squadra Azzurra. Óbvio que a frase despertou a ira de ativistas. O outro atleta foi o bianconero Claudio Marchisio, refutando o pensamento retrógrado do companheiro de seleção.
O canal Sky Italia indagou Licchello sobre o posicionamento de Cassano. Sem citar nomes, o ex-jogador declarou que conhecia atletas bissexuais e gays da Serie A – inclusive companheiros de Totò no Parma. O modelo nunca pensou em falar sobre a sexualidade enquanto era goleiro por uma escolha pessoal, que “todos precisam ser livres para gerir a vida”. Ao blog, falou: “prefiro rir [sobre Cassano] porque mostra uma mentalidade fechada ao invés de construir exemplos positivos para os mais jovens, que desejam compartilhar valores do esporte, incluindo respeito ao próximo”.
“No futebol, não estamos preparados”
Embrenhando ao esporte, a empresa Paddy Power usou o aplicativo Forza Football para realizar uma pesquisa, com auxílio dos movimentos Arcigay e ArciLesbica, e verificar a opinião dos torcedores sobre jogadores que pudessem revelar suas orientações. A ideia da campanha “Vamos lutar contra o padrão” era estimular a discussão sobre a discriminação de gênero e sexualidade. Dos 12 mil votos coletados, 15,7% afirmaram que se incomodariam em ter um gay jogando no time preferido. A psicóloga especialista em temática LGBT Paola Biondi declarou que o percentual de incômodo ainda era “significante demais”.
Algumas pessoas envolvidas no futebol tentam minimizar as diferenças entre os lados, como os jogadores Giorgio Chiellini, Davide Moscardelli e Radja Nainggolan. Eles participaram e promoveram a campanha acima. O antigo técnico da seleção Cesare Prandelli encontrou a equipe gay de Florença, enquanto o próprio Sarri visitou o time de Nápoles neste ano.
Os homossexuais italianos ainda buscam o fim da violência contra eles mesmos enquanto tentam gerir a vida. Alguns amigos de Licchello se afastaram após a vitória no Mister Gay. Um atacante juvenil deu um beijo no companheiro de time durante uma partida entre Salernitana e Ischia, o que resultou num polêmico processo dos pais do jovem ao site que publicou a nota.
Os episódios de homofobia são recorrentes. Teve o cartaz com a frase “a perversão nunca será lei” pendurado no Gay Center de Roma na manhã seguinte ao da decisão sobre a lei Cirinnà. Ou o casal de Turim que precisou se mudar porque estavam cansados da tormenta dos vizinhos, que iam dos insultos verbais às pichações ofensivas nas paredes. Ou o professor de Perugia confrontado por pais porque ele era militante da causa.
Também teve o genovês agredido em um ônibus; o rapaz espancado porque gostava de roupas cor-de-rosa; ou os restaurantes e hotéis Itália adentro que não admitiam a entrada ou permanência de casais gays no Dia de São Valentim. Que tal o barês Paolo, de 18 anos, que se suicidou em uma linha férrea após enviar uma carta ao namorado que dizia “me desculpe, eu te amo” porque ele sofria agressões na escola e em casa? Os pais adotivos dele não admitiam a homossexualidade do garoto.
Não podemos deixar a religião às margens do cenário. Afinal, 81% da população italiana é católica. Massimo Salzano, juventino gay que trabalha em uma agência de apostas e escreve sobre esportes, comentou ao Gazzebra que o Vaticano também contribui com o preconceito – a homofobia, sobretudo. O conservadorismo e o tradicionalismo faz com que o poder permaneça dentro da Igreja Católica, declarou Pietro Pustorino, professor de direitos humanos da Universidade de Roma. Assim, a frase do torcedor da Velha Senhora no intertítulo não é um choque, apesar da promissora teoria de melhora da igualdade para os anos seguintes em diferentes camadas da sociedade italiana.
Do jeito semelhante, não podemos desvincular o preconceito desse esporte inclusivo até a página dois. Tenho de lembrá-lo que o presidente da FIGC, Carlo Tavecchio, é racista, sexista, misógino e homofóbico? Um dos homens próximos a ele é o chefão do futebol amador, Felice Belloli, que chegou a chamar de lésbicas as jogadoras. Muitas vezes não é só futebol. Desta, não mesmo.