Até a segunda década do século XXI, uma equipe da Juventus era soberana diante das demais. O time montado pela Velha Senhora entre 1930 e 1935 era um dos três únicos times italianos que foram capazes de ser pentacampeões de forma consecutiva, até que os bianconeri comandados por Antonio Conte e Massimiliano Allegri esmagassem a concorrência. Na legião de craques que formou o elenco do chamado Quinquennio d’Oro havia uma peça singular: seu nome era Giovanni Ferrari.
Piemontês, Ferrari nasceu em Alessandria, cidade localizada a cerca de 100 quilômetros de Turim. No início de sua adolescência, Giovanni já era famoso na comuna – e não por ser um exímio aprendiz de vendedor de tecidos. Naqueles tempos, o futuro meia já dava tostões de sua habilidade, reconhecida sobretudo pelo domínio de bola, nos campinhos improvisados pelas vielas do bairro de Canarola, batizado com o nome de um canal de esgoto que o atravessava.
A dura realidade num dos locais mais pobres da cidade começaria a mudar por causa do futebol. Os amigos Giuseppe Rapetti, Edoardo Avalle e Cinzio Scagliotti – que também se tornariam jogadores e atuariam pelo Alessandria – indicaram Ferrari a Carlo Carcano, principal atleta da equipe local, que já tinha convocações para a seleção italiana. O volante assistiu o menino jogar e gostou do que viu: o indicou à diretoria, que permitiu que ingressasse nas divisões de base, com 13 anos. A relação entre Giovanni e Carlo estava apenas começando.
Ferrari estreou profissionalmente com 15 anos e 10 meses, num jogo da primeira divisão contra a Sampierdarenese, antecessora da Sampdoria. Em duas temporadas, recebeu poucas chances, já que ainda estava em tenra idade, e em 1925 acabou cedido ao Internaples, time treinado por Carcano. Em tempos em que o Campeonato Italiano ainda não era disputado em pontos corridos, mas sim regionalizado entre norte e sul, o time de Nápoles surpreendeu e foi finalista da divisão meridional, perdendo para a romana Alba Audace a decisão que dava acesso à finalíssima nacional. Na campanha, o meia que jogava pelo lado esquerdo e tinha ótima presença ofensiva se destacou: em 15 jogos, o habilidoso Ferrari marcou 16 gols.
As atuações foram suficientes para que a diretoria do Alessandria decidisse repatriar Ferrari, pagando mais do que o dobro do valor pelo qual o vendeu à Internaples – recebera míseras 5 mil liras e devolveu 12 mil aos campanos. Ao lado do meia de 18 anos, chegaria também Carcano, o seu mentor. O sucesso da dupla se manteve no Piemonte e os grigi emendaram campanhas positivas. Logo de cara, a equipe cinzenta faturou a Copa CONI, organizada pelo Comitê Olímpico italiano. Ferrari anotou 10 gols na competição e passou a ser considerado como herdeiro de Adolfo Baloncieri, craque formado pelo clube e vendido ao Torino.
Nos quatro anos seguintes, tudo correu de vento em popa para Ferrari e o Alessandria. O meia mantinha sua verve goleadora e chegou a anotar 22 em 1927-28, temporada em que os mandrogni chegaram a brigar pelo scudetto – ficaram com a terceira posição, com três pontos a menos que o Torino. Em 1929-30, a Serie A tal qual a conhecemos teve a sua primeira edição e os cinzentos tiveram sua melhor participação até hoje, garantindo o sexto lugar. Fundamental à equipe, Ferrari foi convocado por Vittorio Pozzo e estreou pela Nazionale em fevereiro de 1930, aos 22 anos, num amistoso contra a Suíça.
O fato é que, naquele momento, o Alessandria já estava pequeno para Ferrari. Em 1929, o meia já havia sido sondado por times mais competitivos do país, mas havia permanecido no time de sua cidade com a promessa de que seria cedido gratuitamente na janela seguinte, o que acabou acontecendo. Dessa forma, o meia ofensivo deixou os grigi depois de 117 jogos e 76 gols – até hoje é o terceiro maior artilheiro do clube.
Giovanni Ferrari acabou se transferindo para a Juventus, sob influência de Carcano. O técnico havia sido contratado pela Velha Senhora e, ciente do acordo entre Alessandria e seu bruxinho – afinal, o pacto fora costurado quando ele ainda era o comandante grigio –, sabia que poderia contar com um jogador fenomenal por um custo irrisório.
Ferrari não sentiu o peso da camisa bianconera e chegou assumindo a titularidade daquela que seria uma das equipes mais fortes da história da Serie A: a Juventus do chamado de Quinquennio d’Oro; a primeira pentacampeã do torneio, feito que só seria repetido pelo Grande Torino dos anos 1940 e pela Inter dos anos 2000. Uma marca superada apenas pela atual Juventus heptacampeã consecutiva.
Sob as ordens de Carcano, Ferrari viveu a melhor fase de sua carreira em Turim. Dono do meio-campo juventino, foi um dos grandes nomes daquele esquadrão, que contava ainda com outros grandes craques como Gianpiero Combi, Virginio Rosetta, Umberto Caligaris, Felice Borel e os oriundi Luis Monti, Renato Cesarini e Raimundo Orsi – dentre eles, só Cesarini não esteve no elenco italiano na Copa de 1934.
Na Juventus, Ferrari continuou marcando uma boa quantidade de gols, mas como a equipe contava com Orsi e Borel como principais atacantes, suas responsabilidades ficaram mais voltadas para a criação de jogo. Melhor para ele – e para a Juve: Ferrari tinha visão de jogo e uma inteligência à frente de seu tempo, o que fez com que ele se tornasse uma lenda do meio-campo.
Habilidoso, forte e versátil, Giovanni chegou a atuar como ponta-esquerda algumas vezes, mas foi como mezz’ala canhoto que acabou considerado como um dos principais jogadores de seu tempo por jornalistas importantes, como Gianni Brera e Ettore Berra. O segundo deles, para a famosa e finada revista Il Calcio Illustrato, escreveu o seguinte: “Ele não é apenas o melhor jogador de sua geração, mas o homem que ensina todos a jogarem para o time. Pode-se dizer que essa função é, tecnicamente, uma criação sua. Antes de Ferrari, os meias pela esquerda eram apenas jogadores comuns”.
No papel de dono do meio-campo juventino, Ferrari atuou em 160 dos 166 jogos de Serie A possíveis entre 1930 e 1935 – perdeu apenas um em 1931-32 e 1932-33 e quatro em 1934-35. Onipresente, o metrônomo bianconero não só colaborava com assistências para Orsi e Borel (contrabalanceando o individualismo de Cesarini) como também chegava forte ao ataque. Acabou sendo vice-artilheiro em todas as campanhas do pentacampeonato, alcançando dois dígitos em quatro delas e ultrapassando os 15 tentos em três ocasiões.
Todos os grandes rivais da época sofreram com os pés de Ferrari: Bologna, Inter, Milan, Napoli foram castigados pelo meia. A Fiorentina, que ainda não tinha desenvolvido tanta rivalidade com os bianconeri, também. Em 1935, aliás, Giovanni marcou o seu gol mais importante pelo clube. Já sob o comando de Carlo Bigatto – Carcano foi covardemente pressionado pelo regime fascista a deixar o cargo, sob a alegação de que seria homossexual –, Ferrari anotou o gol da vitória da Juve sobre a viola, aos 81 minutos de jogo. Com o triunfo por 1 a 0, somado à derrota da Inter para a Lazio, seu time foi pentacampeão nacional.
Aquela seria a última aparição de Ferrari pela Juve. A agremiação sofreu um grande baque em julho de 1935, com o acidente aéreo que matou o presidente Edoardo Agnelli, e a nova diretoria bianconera optou por um caminho de austeridade nos anos seguintes. Giovanni, então, teve um leve aumento salarial negado pela diretoria e, já insatisfeito pela saída de Carcano, optou por mudar de ares. O meia recusou uma oferta da Lazio e acertou com a Inter, clube no qual formaria a fantástica dupla com Giuseppe Meazza. A parceria já era sinônimo de sucesso na seleção italiana.
Juntos, Ferrari e Meazza já haviam feito a Itália conquistar o mundo, em 1934. Perfeito auxiliar do craque nerazzurro, Giovanni disputou cinco dos seis jogos dos azzurri na Copa e marcou contra Estados Unidos, nas oitavas, e Espanha, nas quartas de final. Em Milão, voltou a trabalhar como garçom de Pepin e fez com que o companheiro se sagrasse artilheiro da Serie A em 1936 e 1938. No último ano, inclusive, ganhou seu sexto scudetto.
Após o sucesso em solo italiano, Ferrari e Meazza foram chamados por Pozzo para a campanha da Nazionale na França. Dessa vez, o meia alessandrino não marcou gols, mas foi um dos principais artífices do segundo título mundial italiano: participou ativamente da construção das jogadas, juntamente a um Meazza mais recuado, e contribuiu para que Silvio Piola e Gino Colaussi liderassem o ataque. Com isso, a dupla interista pode comemorar o bicampeonato – como jogadores, somente eles, Guido Masetti e Eraldo Monzeglio fizeram parte das duas campanhas.
Ao fim da Copa, Ferrari chegou a receber uma proposta do Arsenal – os ingleses o tinham em alta conta por causa da exibição na famosa Batalha de Highbury, partida disputada entre Itália e Inglaterra exatamente no campo dos gunners. O meia ter sido um dos primeiros estrangeiros do clube londrino, mas não levou a proposta em consideração. Preferiu ficar na Itália, mas a decisão acabou não se mostrando acertada.
Giovanni perdeu espaço na Inter com a contratação do técnico Tony Cargnelli, que substituiu o chamado metodo, em vigor em quase toda a Itália, pelo sistema, esquema tático valorizado por Herbert Chapman e tantos outros. Pouco utilizado, Ferrari encerrou sua passagem pela seleção no fim de 1938, com 44 jogos e 14 gols realizados, e deixou a Inter em 1940, depois de colaborar com a primeira conquista do clube na Coppa Italia e com o sétimo scudetto da carreira na bagagem.
O meia piemontês acabou acertando com o Bologna, que também competia por títulos naquela época. Ferrari foi um pedido expresso do técnico alemão Hermann Felsner, que formava uma equipe de veteranos. Além do bicampeão mundial, os rossoblù tinham ainda os experientes Michele Andreolo, Raffaele Sansone e Carlo Reguzzoni no elenco – o primeiro citado foi companheiro de Giovanni na expedição francesa, em 1938.
Ferrari foi utilizado em revezamento com os meias mais velhos do elenco e, mesmo sem ter a titularidade absoluta, contribuiu bastante para o título nacional do Bologna. Até hoje, o alessandrino é um dos seis únicos a terem sido campeões nacionais por três clubes diferentes, juntamente a Filippo Cavalli, Sergio Gori, Pietro Fanna, Aldo Serena e Attilio Lombardo. Ademais, com oito scudetti, o alessandrino só teria a primazia em número de conquistas superada por Gianluigi Buffon, que liderou uma implacável Juventus mais de 70 anos depois.
A Juve, inclusive, foi o último clube da carreira de Giovanni: após um ano na Emília-Romanha, retornou ao clube em que viveu seu auge para executar as funções de jogador e treinador. Após um início ruim de campeonato, no qual não soube lidar com um elenco muito renovado, Ferrari abriu mão do comando em favor de Luis Monti, mas prosseguiu no elenco como jogador, aposentando-se em 1942.
Depois de pendurar as chuteiras, Ferrari se dedicou à carreira de treinador. Sua trajetória na função passou longe de ser tão vitoriosa quanto a que escreveu como jogador – ademais, também não foi muito longa. Depois de comandar a Juve, o alessandrino treinou a Inter por uma temporada e, durante a interrupção das atividades profissionais por conta da II Guerra Mundial, comandou o Pavia em torneios locais na Lombardia. Na retomada, passou sem sucesso por Brescia e pelo Cantonal Neuchâtel, que foi rebaixado na Suíça.
Depois do insucesso, Ferrari topou se reposicionar e treinou o Prato, na Serie C. O piemontês conquistou o título da terceirona em 1949 e permaneceu na Toscana para a segunda divisão, mas não foi capaz de evitar o rebaixamento. Ainda assim, teve nova chance na elite e passou rapidamente pelo modesto Padova. Foi aí que decidiu deixar o futebol de clubes de lado e se dedicar à seleção: foi observador técnico das equipes de base e instrutor de novos treinadores no recém-inaugurado centro de Coverciano.
Em dezembro de 1958, Ferrari recebeu o convite para treinar a Squadra Azzurra de forma interina, até que Gipo Viani ficasse apto para o cargo. Viani, porém, só ficou dois meses no comando e o alessandrino retornou à função, garantindo a classificação da Nazionale para a Copa do Mundo de 1962. Seu time, entretanto, era muito criticado pela pouca fluência ofensiva e pelo grande número de “oriundi”, como Angelo Sormani, Omar Sívori, Humberto Maschio e José Altafini.
No Mundial do Chile, Ferrari dividiu o comando técnico com Paolo Mazza, presidente da Spal e vice-presidente da Lega Calcio. As divergências entre os dois, que tinham maneiras distintas de conceber o futebol, não ajudou em nada no desempenho da Nazionale. Apesar dos grandes nomes – um deles, o meia Mario Corso, ainda ficou de fora por conta de rusgas internas –, a Itália somou apenas três pontos e não passou da primeira fase. Apesar de tudo, apenas Ferrari e Cesare Maldini tiveram a honra de defender a Squadra Azzurra nas vestes de jogador e técnico.
Na malfadada expedição sul-americana, Ferrari engoliu muitos sapos, mas preferiu não criar (mais) confusão. Demitiu-se do cargo depois do torneio e falou sobre suas insatisfações numa carta à federação, mas o fato é que aquele foi o final de sua carreira como treinador. O piemontês se afastou do futebol depois do imbróglio e teve uma de suas últimas aparições públicas na cerimônia de abertura da Copa do Mundo de 1982, no Camp Nou, em Barcelona. Em dezembro do mesmo ano, Giovanni sofreu uma hemorragia no sistema digestivo e faleceu em virtude de uma parada cardiorrespiratória, causada pelo agravamento de seu estado clínico. Tinha 74 anos e faria aniversário na mesma semana.
Após seu falecimento, Giovanni Ferrari recebeu uma série de homenagens em toda a Itália. Além de fazer parte do Hall da Fama do futebol italiano, o ex-meia dá nome a um complexo esportivo em Alessandria e à aula magna do curso de treinadores de Coverciano. Justas lembranças a um dos maiores e mais vitoriosos jogadores da história da Velha Bota.
Giovanni Ferrari
Nascimento: 6 de dezembro de 1907, em Alessandria, Itália
Morte: 2 de dezembro de 1982, em Milão, Itália
Posição: meio-campista
Clubes como jogador: Alessandria (1923-25 e 1926-30), Internaples (1925-26), Juventus (1930-35 e 1941-42), Inter (1935-40) e Bologna (1940-41)
Títulos como jogador: Serie A (1930, 1931, 1932, 1933, 1934, 1937, 1939 e 1941), Coppa Italia (1939 e 1942), Copa do Mundo (1934 e 1938), Copa CONI (1927) e Copa Internacional (1935)
Clubes como treinador: Juventus (1941-42), Inter (1942-43), Pavia (1944-45), Brescia (1945), Cantonal Neuchâtel (1947-48), Prato (1948-50), Padova (1950-51) e Itália (1958-59 e 1960-62)
Títulos como treinador: Serie C (1949)
Seleção italiana: 44 jogos e 14 gols