A torcida pediu, a torcida ganhou. A indicação de Maurizio Sarri como novo técnico da Juventus é uma quebra de paradigma para uma equipe que ficou acostumada ao conservadorismo de Max Allegri nesta última temporada. A missão do ex-comandante do Napoli não é muito diferente daquela que lhe foi projetada no verão inglês: dar uma cara nova a um time, estabelecer um modo bastante diferente de seus antecessores e competir em alto nível na Liga dos Campeões.
A competição que falta para essa Juve que domina a Itália há oito anos é justamente a Champions League que tantas vezes escapou na final. Ao encerrar o contrato de Allegri, o bianconero projeta que esse objetivo pode ser atingido com Sarri – ou que ao menos ele seja o ponto de partida para seu sucessor.
Giuseppe Bergomi, ídolo interista que hoje é comentarista da Sky Sport, disse que encontrou Allegri dias antes do anúncio e ele revelou que a Juve estava decidida por Sarri. O jornalista Gianluca Di Marzio contou que o presidente Andrea Agnelli e o vice Pavel Nedved estavam tão convictos pelo ex-rival que apresentaram um projeto de três anos na casa do treinador apesar das conversas que surgiram envolvendo Pep Guardiola e Mauricio Pochettino.
O napolitano chega a Turim em meio às especulações naturais do mercado, mas podemos colocar alguns pontos dessa trajetória inicial:
- Dybala e Higuaín
A primeira pergunta é: Gonzalo Higuaín será reintegrado após o empréstimo? O recorde de 36 gols na Serie A com Sarri, encerrando uma marca de meio século do milanista Gunnar Nordahl, não se sobrepõe à queda de produção a partir de 2018 nem à confiança em frangalhos do ano passado, encerrado de forma medonha com as passagens por Milan e Chelsea – neste caso, sob a tutela do napolitano.
Dybala também tem sua porção de importância. É difícil acreditar que, desta vez, ele conseguirá jogar pelo lado com destreza e não será engolido pela marcação adversária. Uma possibilidade é a inversão dos lados para buscar o melhor do argentino com o de Cristiano Ronaldo: o camisa 10 como atacante interior, assim como Eden Hazard ou Lorenzo Insigne, mas pela direita; pelo outro, o português seria o finalizador bem como José Callejón fez no San Paolo – e estamos considerando Douglas Costa, Federico Bernardeschi e Juan Cuadrado como meros substitutos.
Mas e pelo meio?
- Passes e ritmo
Para Dybala emular Marek Hamsík (ou Hazard no pior momento da temporada inglesa), Sarri precisaria achar soluções para o meio-campo. Já tem um controlador em Miralem Pjanic e, por isso, nenhum boato sobre Jorginho foi estampado em capa de jornal. Quem “seria” Allan? Emre Can? Aaron Ramsey? Rodrigo Bentancur? Nem Sami Khedira nem Blaise Matuidi conseguem aliar bom passe, eficiência defensiva e qualidade na chegada de forma semelhante ao brasileiro.
A adaptação à inglesa levou Hazard ao limite porque, em momentos do ano, os Blues não conseguiam criar com N’Golo Kanté ou com um dos “gêmeos” escolhido como titular – afinal, havia quase uma obrigatoriedade de substituir Mateo Kovacic por Ross Barkley ou vice-versa. Pesa a favor de Sarri esse revival napolitano de opções diferentes para o setor. Há dois anos, conseguiu um vice-Allan em Amadou Diawara, um mezz’ala inteligente em Piotr Zielinski e um meia-atacante promissor arisco em Marko Rog. Em Turim, não há um temporizador como Pjanic, mas os atletas aliam qualidades mais distintas em relação ao Chelsea para permitir novas possibilidades ao treinador.
Por outro lado, antecipando o problema, a dúvida fica por conta da gestão do elenco. Sarri não é flor que se cheire. Lorenzo Insigne saiu em defesa de Carlo Ancelotti assim que ele substituiu o antigo treinador e o chilique monumental de Kepa Arrizabalaga na semifinal da Copa da Liga mostram que esse é um dos pontos fracos dele.
As especulações de Sergej Milinkovic-Savic e Paul Pogba fazem sentido apenas porque sim. O neologismo do sarrismo diz que a equipe domina a posse de bola, é incansável na pressão alta e procura o passe rápido, de um toque, na maioria das vezes. Um “todocampista” como estes especulados é algo que falta na Senhora. Para o ritmo ofensivo e a recomposição de Alex Sandro (cujo futebol deve ser recuperado) e João Cancelo, caso seja descartado pelo City – o sarrismo não está completo sem laterais espetados.
Desta forma, a situação de Dybala e Higuaín são muito relevantes na perspectiva futura dessa Juventus 2019-20 porque eles têm dois dos três maiores salários do elenco. A renovação do time passa por uma eventual negociação de um ou ambos.
- O perigo pelo alto
O treinador ainda não treinou uma dupla de zaga brilhante – ou que, pelo menos, vivia uma fase excelente ao mesmo tempo. Até os melhores defensores sucumbiram em jogadas aéreas defensivas. Foi assim com Kalidou Koulibaly e David Luiz, superando seus companheiros (Raúl Albiol, Vlad Chiriches, Antonio Rüdiger, Andreas Christensen) ao longo dos meses de campeonato. Agora terá de comandar Leonardo Bonucci, alvo fácil em 2019 – inautêntico zagueiro quando não via Giorgio Chiellini ao lado.
Medhi Benatia volta? Faltou consistência enquanto titular. Recuperar Daniele Rugani é uma opção viável? A aposta é alta. Aguardar pelo desfecho das negociações com Cristian Romero ou Merih Demiral? Buscar alguém fora da Itália – como Marquinhos? Ainda é cedo.
- Antissistema no sistema
Sarri proporcionou um choque de estilo ao Chelsea acostumado aos métodos de José Mourinho, Guus Hiddink e Antonio Conte. Agora, ele é a ruptura que a Juve não tem desde Capello em 2004, ano que a Senhora imprimiu um futebol vistoso com famoso time de videogame (Mauro Camoranesi, Patrick Vieira, Emerson, Nedved, Zlatan Ibrahimovic e Alessandro Del Piero). O resultado foi satisfatório em campo; fora, o Calciopoli aconteceu. Só que tem o outro lado: em 1990, o clube que prezava pela aparência, os ternos impecáveis e a polidez do Stile Juve não segurou o técnico Luigi Maifredi por mais uma temporada porque o futebol vistoso deu muito errado; em 2010, Luigi Delneri tentou implantar algo que malmente pode ser chamado de futebol e falhou miseravelmente.
Sarri, mais que tudo, é a contratação mais anti-Juve que a Juve poderia fazer. Dá pra falar sobre a inclinação política à esquerda (fato que impossibilitou o acerto com o Milan de Silvio Berlusconi) de um técnico, um fumante inveterado, de outro tempo no comando do clube da realeza, mas isso é só um traço de um conflito maior. É um profissional criado em Florença, do sul até as raízes, que se vendeu como antissistema, xingou a Juve e mostrou o dedo médio aos torcedores alvinegros como um bom napolitano, mas se rendeu ao norte de forma similar aos conterrâneos que buscaram Turim como casa e Juve como time na década de 1970. Era um momento próspero da economia piemontesa, puxada pela Fiat, e das contratações dos sulistas Antonello Cuccureddu, Franco Causio, Sergio Brio e Pietro Anastasi.
Qualquer fagulha pode descambar rapidamente para a narrativa xenofóbica do campanilismo em um país que vê as relações entre Norte e Sul ainda bastante estremecidas. O racismo de parte considerável da classe política não dá indício de qualquer melhora social para essa rivalidade histórica entre as comunas.
Na primeira entrevista coletiva como bianconero, o treinador tentou diminuir essa tensão – que já havia feito parte da torcida protestar por sua contratação. “Em relação ao dedo, foi uma reação exagerada da minha parte, pela qual já havia me desculpado após a partida. Mesmo assim, eram 10, 20 estúpidos, que não considero torcedores da Juventus. No estádio, com 45 mil pessoas, não tive problemas. Mas, repito, não deveria ter cometido aquele excesso”.
A declaração não foi lá muito convincente, mas faz parte de um jogo de aparências para adequar Sarri a uma nova realidade – assim como a obrigatoriedade contratual de utilizar terno em situações extracampo. Nas partidas, o técnico admitiu que preferiria não utilizar vestimentas tão formais, mas que isso ainda não foi discutido. Para descontrair, brincou: “desde que não me mandem a campo nu, tudo bem”.
A receita do napolitano para driblar o ceticismo e se provar merecedor do posto que ocupa agora, porém, é simples. “Meu profissionalismo me fará dar tudo por esta agremiação. Quero acordar todos os dias pensando em como vencer a próxima partida. A Juve tem a obrigação de ser a favorita. Para isso, não devo propor ‘meu futebol’ a todo custo, mas sim adaptar minha filosofia às características dos jogadores. Conheço apenas um modo para eliminar a desconfiança. Vencer e convencer, divertir e obter resultados”.
- A base
A Juve não olha a base. Pode vencer Viareggio, pode ser destaque nas divisões inferiores: os melhores jogadores são negociados porque o clube prefere contratar um atleta pronto. Foi o que aconteceu, por exemplo, em 2010 com Ciro Immobile, que estourou longe do Piemonte. A molecada tem motivos pra sorrir, uma vez que o novo treinador curte usar os jovens: Rugani, Zielinski, Diawara, Rog, Christensen, Diego Laxalt, Elseid Hysaj, Simone Verdi, Ruben Loftus-Cheek, Ethan Ampadu, Callum Hudson-Odoi…
Sob essa ótica, o grande beneficiado é Moise Kean – dependendo, claro, das definições de futuro de Higuaín e Mario Mandzukic, que teve contrato renovado recentemente. Ele não só é o melhor talento da Juve; ele é o único. O ponto fora da curva de uma geração irregular que forma o time sub-23, na Serie C (com nomes como Grigoris Kastanos, Stephy Mavididi, Leandro Fernandes e Matheus Pereira) e outra que ainda não está desenvolvida e disputa o Campeonato Primavera, tendo como destaques Nicolò Fagioli, Hans Nicolussi Caviglia, Pablo Moreno e Elia Petrelli.
Só espero que ele tenha se decepcionado com a atual forma (não só física) de Higuaín, que pense em Cristiano como “Insigne” e que ainda estime o futebol de Icardi a ponto de pedir sua contratação a Paratici, como fez quando tentou levá-lo pra repor Higuaín em 2016. Ah, e espero que consigam Chiesa também. Com essa (improvável) combinação de acontecimentos, duvido que Dybala ainda teria espaço.