“Uma vida dedicada à Fiorentina”: foi assim que o jornal Corriere della Sera descreveu a trajetória de Giuseppe Chiappella em 2009, quando o icônico jogador e treinador da Viola faleceu. Por também ter treinado outras equipes, a frase carregada de eufemismo pode não ser uma representação literal do que Beppone viveu em sua carreira, mas é inegável que ao destrinchar a expressão usada pelo Corriere, é possível identificar os motivos.
Aliás, “dedicado” é um ótimo adjetivo para se referir a Beppe. E não só pela posição em campo, que obrigava aquele volante a correr pelo terço mais brigado do gramado para recuperar a bola, mas também por como ele chegou ao esporte no qual escreveu sua história.
Chiappella nasceu nos arredores de Milão, em 1924. Quando estava na adolescência, não só a Itália, mas o planeta passava por um momento, no mínimo, conturbado. Por causa da Segunda Guerra Mundial, o início da carreira de Giuseppe foi postergado e ele só estreou como profissional aos 22 anos, em 1946. Antes disso, representou as amadoras Radaelli e Stradellina.
Jogando pela equipe do Pisa, na Serie B, ele demonstrou estar à frente de seu tempo. Mesmo sendo considerado um defensor, sua resiliência em roubar a bola e entregá-la para os meias mais avançados o fazia ser deslocado com frequência para a cabeça de área. Naquele momento pós-guerra, eram poucos os jogadores italianos que faziam essa função com tanta maestria como Chiappella. Se destacando e demonstrando esse diferencial pelo Pisa, Beppe foi adquirido pela Fiorentina para a temporada 1949-50.
Na Fiorentina, ele se tornou um xodó. Suas características de marcação, raça e habilidade em recuperar a bola por trás dos atacantes fez com que a torcida se identificasse com seu perfil. Além disso, Chiappella chegou para fazer parte de um dos elencos mais brilhantes da história do clube.
Com a entrada de Enrico Befani na presidência e o lendário Artemio Franchi como diretor, um pacote de reforços se juntou à Chiappella entre 1951 e 1956. Porém, o mais importante deles para a trajetória de Beppe chegou em 1953 e nem entrou em campo. O técnico Fulvio Bernardini colocou o defensor para flutuar e se movimentar ainda mais entre as linhas e, para além de roubar a bola, também distribuir o jogo – o que fazia parecer que ele estava em todos os lugares do campo ao mesmo tempo. Na época, essa função recebia o nome de centromediano metodista.
Foi nesse período que Beppone recebeu a sua primeira convocação para a Squadra Azzurra. Mas, apesar de seu destaque na Fiorentina, fez parte apenas do grupo da Itália que disputou as eliminatórias para a Copa de 1954, ficando fora da lista final. A grande glória da carreira de Chiappella como jogador estava reservada para acontecer um pouco mais tarde.
A Fiorentina fazia boas campanhas na metade inicial da década de 1950, se situando sempre entre os sete primeiros lugares – em 1954, chegou a ser terceira colocada. Porém, o desempenho em 1955-56 culminou numa trajetória histórica.
A escalação habitual da equipe violeta tinha Giuliano Sarti no gol; a trinca de zaga experiente era formada por Ardico Magnini, Sergio Cervato e Francesco Rosetta; à frente deles ficavam Chiappella, Armando Segato e Guido Gratton; por fim, a fantasia e as jogadas ofensivas ficavam por conta de Miguel Montuori, Claudio Bizzarri e do genial Julinho Botelho, que criavam para o goleador Giuseppe Virgili balançar as redes. Com as ideias de jogo de Fuffo assimiladas depois de duas temporadas, a equipe da Toscana foi avassaladora e faturou o seu primeiro scudetto. A Viola desfrutava dos gols de Virgili, mas principalmente de uma defesa sólida, fruto de um sistema do qual Beppone era um dos protagonistas.
Aquele time foi coroado com cinco rodadas de antecedência e tomou apenas 20 gols ao longo dos 34 jogos do campeonato. Mesmo perdendo o último jogo da Serie A por 3 a 1 para o Genoa, os torcedores invadiram o campo para comemorar o título e ergueram o volante nos ombros até o vestiário, assim como ele mesmo contou, já bem velhinho, neste vídeo feito em homenagem à conquista do scudetto, disponível no canal da Viola no YouTube.
Campeão italiano, Chiappela também fez parte do valente grupo da Fiorentina que chegou à final da Copa dos Campeões de 1957, contra o Real Madrid de Alfredo Di Stéfano, Francisco Gento e Raymond Kopa – embora, já na fase final da carreira, tenha perdido a posição para Aldo Scaramucci. A decisão, que estava sendo disputada minuto a minuto, foi desequilibrada depois de o juiz apitar um pênalti para o Real Madrid. O lance causou polêmica, já que o bandeirinha assinalara posição de impedimento do atacante merengue, e foi fundamental para que a Viola amargasse o vice-campeonato europeu.
Como jogador, ainda foi campeão da Copa Grasshoppers, da Copa da Amizade Ítalo-Francesa e da Copa dos Alpes, além de ser vice da Coppa Italia em duas ocasiões. Chiappella também disputou as eliminatórias para o Mundial de 1958 pela Nazionale, mas deixou de vestir a camisa azzurra antes da eliminação histórica para a Irlanda do Norte, em Belfast.
Em 1960, o “dedicado” Chiappella enfim pendurou as chuteiras, mas ainda tinha muito a oferecer – e não ficou nem um pouco longe de sua amada Fiorentina. Nos últimos anos como atleta, frequentou a escola de treinadores da Federação Italiana, localizada em Coverciano, bairro da zona leste de Florença. Diplomado, começou sua carreira como treinador meses depois de se aposentar dos gramados: em janeiro de 1961, foi contratado pela Viola para acompanhar a equipe e assistir o técnico húngaro Nándor Hidegkuti. Por conta deste trabalho em dupla, ele esteve presente na comissão que conquistou a Coppa Italia e o primeiro título europeu de um clube italiano: a Recopa Uefa.
Beppe voltou a ser um assistente de luxo na temporada seguinte e permaneceu no posto no restante do trabalho de Hidegkuti e em toda a gestão de Ferruccio Valcareggi, encerrada no início de 1963-64, após uma derrota para o Vicenza. Assim, Chiappella assumiu o cargo de forma interina, mas convenceu a diretoria a lhe manter devido aos bons resultados: a Fiorentina fez uma bela campanha, terminando no quarto lugar da Serie A e sendo semifinalista da Coppa Italia.
O perfil “raçudo” do jogador deu lugar a uma figura serena e muito irreverente à frente do elenco, cujo líder técnico era o atacante Kurt Hamrin. O sueco, inclusive, fora companheiro do volante em campo, entre 1958 e 1960. Durante os anos em que treinou a Viola, Beppone fez temporadas consistentes, mantendo o clube sempre entre as primeiras colocações. Em 1964-65, mais um quarto lugar. Na temporada de 1965-66, outro – acompanhado das taças da Coppa Italia e da Copa Mitropa.
O desempenho lhe reservou uma premiação. Quando Fuffo foi campeão com a Viola, em 1956, ele foi o primeiro a receber o Seminatore d’Oro, o troféu de melhor treinador da temporada. Dez anos depois, Chiappella, um de seus comandados, repetiu o feito como técnico da Viola – não só pelos resultados, mas também por um de seus maiores legados.
O futebol apresentado pelo time de Beppe era vistoso e um dos motivos para isso era a juventude e o entrosamento dos jogadores. Uma característica marcante de sua primeira passagem pela Fiorentina como treinador foi a revelação de grandes jogadores que formaram a base do time que conquistaria o scudetto, já sem Chiappella no banco. Jogadores como Claudio Merlo, Luciano Chiarugi, Ugo Ferrante, Giuseppe Brizi, Enrico Albertosi, Mario Brugnera, Mario Bertini e Salvatore Esposito foram lançados ou potencializados pelo técnico.
Na temporada 1966-67, Chiappella obteve a quinta posição na Serie A e foi mantido no cargo para o campeonato seguinte. Contudo, uma sequência de cinco partidas sem triunfos esgotou a paciência da diretoria, que encerrou o contrato do treinador em dezembro de 1967. Dessa forma, terminava ali uma trajetória de mais de 20 anos, contando carreira como jogador e técnico na Viola. A decisão que parecia dura demais foi considerada sem sentido pela torcida, que via evolução no trabalho de Chiappella – além da forte ligação do técnico com o clube.
Mas a opção se mostrou acertada. Já na temporada seguinte, a Fiorentina conquistou seu segundo scudetto, comandada por Bruno Pesaola. O argentino era ídolo em Nápoles, justamente onde Chiappella fora morar após o divórcio com a Viola. Beppe teve vida difícil nos primeiros meses à frente do Napoli, estando presente na confusão que envolveu o argentino Omar Sívori, dono da Bola de Ouro de 1961, em uma partida contra a Juventus. Ao contestar a expulsão do jogador por conta de uma dividida no meio de campo, Beppe e membros da comissão do Napoli invadiram o gramado e também foram expulsos pelo árbitro Fulvio Pieroni. A briga rendeu a Sívori uma punição pesada, que o obrigou a encerrar a sua brilhante carreira na Itália e retornar à Argentina.
Ao longo da primeira temporada aos pés do Vesúvio, Beppone teve ainda mais problemas. Uma sequência de apenas uma vitória em sete rodadas fez com que ele chegasse a ser demitido pelo presidente Corrado Ferlaino, em fevereiro de 1969. Contudo, o substituto Egidio Di Costanzo não foi bem e, depois de uma derrota por 3 a 1 para a Fiorentina, Chiappella retornou ao comando do Napoli e conduziu o time à sétima posição na Serie A.
Nos anos seguintes, o treinador teve estabilidade no cargo e entregou resultados mais interessantes. Não foi campeão, mas levou o Napoli ao terceiro posto da Serie A, em 1971, e à decisão de Coppa Italia do ano seguinte – também foi duas vezes semifinalista da competição nacional e vice da Copa Anglo-Italiana. Em 1973, então, mudou de ares e foi comandar o Cagliari.
O trabalho na Sardenha não foi dos mais brilhantes: ajudou os rossoblù a permanecerem na elite, com dois décimos lugares. Mesmo assim, Chiappella chegou à Inter, equipe que treinou de 1975 a 1977. Os nerazzurri viviam um período de entressafra, com os ciclos de alguns jogadores importantes se encerrando – casos de Bertini, Lido Vieri, Giacinto Facchetti, Sandro Mazzola e Roberto Boninsegna – e os de outros ainda em sua fase inicial: Ivano Bordon, Graziano Bini, Gabriele Oriali, Gianpiero Marini e Carlo Muraro se encaixavam neste segundo grupo.
Neste cenário difícil, Beppe obteve dois quartos lugares na Serie A. Em sua última temporada, também chegou à final da Coppa Italia, perdendo-a para o Milan, grande rival nerazzurro, em um Derby della Madonnina. Durante a passagem pela Inter, Chiappella sofria muita pressão por resultados, mas tinha um jeito tranquilo, quase irreverente, de lidar com a pressão da imprensa e, claro, da torcida. Esta entrevista dupla ao jornalista Adriano De Zan, da Rai, é uma boa amostra disso.
A tranquilidade não foi suficiente para lhe manter no cargo para 1977-78 ou foi a chave para iniciar a nova temporada empregado. Chiappella só conseguiu trabalho em fevereiro de 1978, quando foi chamado para uma missão a qual não podia recusar. Em crise e na briga contra o rebaixamento, a Fiorentina confiou na volta de Beppe para fugir da degola.
Lutando até o último segundo, Beppone conseguiu escrever mais um capítulo naquele que seria eternamente seu clube do coração. Presente nos momentos brilhantes, ele também compartilhou do sofrimento do torcedor toscano ao confirmar a permanência na Serie A na última rodada. Na ocasião, a Fiorentina empatou sem gols contra o Genoa e contou com a derrota do Foggia para a Inter para escapar. Como os times ficaram empatados com 25 pontos, a salvação se deu no saldo de gols: a Viola tinha um solitário tento de vantagem sobre os satanelli e suspirou de alívio.
E foi ali, no último jogo da temporada 1977-78, que ele se despediu como profissional da Fiorentina. Na campanha seguinte, tentou repetir o feito com o Verona, mas sem sucesso: acabou na segundona com o Hellas. O restante da carreira de Chiappella se passou nas divisões inferiores, em passagens medíocres por Pisa e Arezzo, e uma ainda pior pelo Pescara – em 1981-82, os golfinhos amargaram o descenso para a Serie C1. Sem dúvidas, um brilho diferente dos tempos em que figurou entre as cabeças do futebol italiano.
No pós-carreira, Beppone se fez presente em Florença e acompanhou a Fiorentina até os seus últimos dias de vida. Em 2009, ele sucumbiu a uma doença que o acompanhava havia anos. A família não divulgou a causa da morte. Sempre quando referido ou lembrado, o nome de Chiappella causa admiração nos que viram sua ascensão como o habilidoso volante e muito respeito para aqueles que conheceram o treinador sereno, mas intenso e leal – principalmente quando o dedicado Beppe servia à sua Viola.
Giuseppe Chiappella
Nascimento: 28 de setembro de 1924, em San Donato Milanese, Itália
Morte: 26 de dezembro de 2009, em Milão, Itália
Posição: volante
Clubes como jogador: Redaelli (1942-43), Stradellina (1945-46), Pisa (1946-1949) e Fiorentina (1949-1960)
Títulos como jogador: Serie A (1956), Copa Grasshoppers (1957), Copa da Amizade Ítalo-Francesa (1959 e 1960) e Copa dos Alpes (1960)
Clubes como treinador: Fiorentina (1961, 1964-67 e 1978), Napoli (1968-69 e 1969-73), Cagliari (1973-75), Inter (1975-77), Verona (1978-79), Pisa (1979-80), Pescara (1981-82) e Arezzo (1984-85)
Títulos como treinador: Coppa Italia (1961 e 1966), Recopa Uefa (1961) e Copa Mitropa (1966)
Seleção italiana: 17 jogos