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Como a modesta Atalanta superou os limites de Bérgamo e chegou às oitavas da UCL

Nos últimos anos, poucos times deram tantas alegrias e orgulho a seus torcedores quanto a Atalanta, seja em nível nacional ou internacional. Com um projeto já de longa data, seria injusto chamá-la de “Leicester italiano”, pois os nerazzurri já somam décadas de investimentos pontuais e ações de gestão bastante diferentes das tomadas pelo resto dos times da Serie A.

Poderíamos tentar situar o sucesso do time nerazzurro dentro de uma narrativa fantasiosa, citando elementos como sorte e atuações fora de série de seus jogadores, para vender a história de uma maneira hollywoodiana. A realidade é que o momento atual da Dea é fruto de um longo e árduo trabalho, que tinha dificuldades já conhecidas pela diretoria. Os cartolas também tinham a noção de que as realizações seriam colhidas apenas dentro de alguns anos e que paciência seria essencial.

Nos anos 1980, a Atalanta conseguiu voltar ao primeiro escalão italiano depois de anos de perambulação pelas divisões inferiores – jogou até a Serie C1, em 1981-82. Com exceção de um “bate e volta” na segundona, em 1987-88, os nerazzurri tiveram ótimas colocações na Serie A, na Coppa Italia e na Recopa Europeia. Contudo, uma triste fatalidade colocou o time em um outro caminho, em 1990: foi quando seu jovem e promissor presidente, Cesare Bortolotti, faleceu num acidente de carro, aos 39 anos.

Logo após o trágico incidente, Antonio Percassi, que fora zagueiro da Dea na década de 1970, assumiu a presidência da Atalanta e deu início a um ciclo que vemos dar frutos até os dias de hoje. Naquele momento, o ex-jogador já era um importante empresário varejista e do setor imobiliário, o que lhe permitia ter uma visão ampliada de gestão. Percassi, então, modificou alguns procedimentos realizados no clube. Por exemplo, direcionou um pesado investimento ao setor de marketing da equipe principal, medida relativamente inovadora para 1990. Além disso, trouxe Mino Favini, que descobrira diversos talentos no Como, para ser o diretor das divisões de base. A formação de jogadores foi outro aspecto que recebeu grande atenção do novo presidente – ele próprio, ex-juvenil bergamasco.

Antonio Percassi, presidente da Atalanta, conseguiu levar o time às competições europeias (Getty)

Depois de algumas escolhas esportivas precipitadas, o time foi rebaixado em 1994 e Percassi se demitiu. Em seu lugar entrou Ivan Ruggeri, presidente responsável e que sabia da realidade do clube. Ivan, por 18 anos, e seu filho Alessandro, por mais três, não levaram o time a grandes glórias, mas o mantiveram competitivo e, em boa parte da gestão, na Serie A. A Atalanta teve rápidas passagens pela Serie B, mas conseguiu promoções pouco tempo após a queda.

Quando Percassi retornou à presidência, em 2010, o desafio era diferente, no curto e médio prazo. O primeiro deles era retornar à Serie A, já que a Atalanta acabara de cair, e depois não mais lutar apenas para manter a equipe na primeira divisão. A pedra fundamental do plano de investimentos foi o foco em melhorias no centro de treinamento e no estádio Atleti Azzurri d’Italia, construído em 1927. Durante este período, Favini teve não só seu trabalho mantido, mas também carta branca para agir. Este foi o outro pilar do segundo mandato do presidente, que queria fazer com que os pratas da casa tivessem sua identidade forjada no clube e viessem a ser utilizados no time principal, ao invés de serem vendidos.

Entre 1991 e 2015, Favini conquistou incríveis 17 torneios de base em nível nacional, incluindo três títulos do Campeonato Primavera (sub-19), o mais importante no futebol italiano. Com uma filosofia já implementada no infantil e no juvenil, seria pouco inteligente focar em vender estes jogadores tão preciosos. Ao mesmo tempo, porém, é preciso ter paciência, calma e perspicácia para poder incorporar estes jogadores à equipe principal, e os primeiros técnicos contratados por Percassi em sua segunda gestão – Stefano Colantuono e Edy Reja – não conseguiram potencializar este trunfo.

Depois de alguns anos de procura pelo técnico “perfeito”, Gian Piero Gasperini foi anunciado em 2016. Hoje, parece que o técnico e a Atalanta foram feitos um para o outro. Entrando em sincronia, o clube deu tudo o que o comandante pedia: um núcleo de jovens muito bem treinados, polivalentes e que abraçavam a causa. Gasp devolveu na mesma medida: uma perspectiva de melhora constante e sustentável, que poderia fazer o time retornar às competições internacionais e disputá-las recorrentemente.

Entre o início dos anos 1990 e 2015, Favini descobriu talentos para a Atalanta (Liverani)

Gasperini já era famoso por ter descoberto a posição precisa de vários jogadores, como Domenico Criscito, Diego Milito e Stefano Sturaro, que não eram bem aproveitados até serem treinados por ele. Desde que Gasp assumiu o cargo, o time de Bérgamo conseguiu um vice-campeonato na Coppa Italia, além de três classificações a torneios continentais – obtidas devido a, respectivamente, um 4º, um 7º e um inédito 3º lugar na Serie A. Além de uma honesta participação na Liga Europa 2017-18, quando ficou com a primeira posição num “grupo da morte” e foi eliminada pelo Borussia Dortmund, a Atalanta também conseguiu uma inédita vaga na Liga dos Campeões. E, no mínimo, atingiu as oitavas de final da UCL.

O ceticismo quanto aos limites da Atalanta é compreensível, já que a Dea não é uma gigante italiana, com grande torcida e um técnico conservador. Gasperini gosta de ousar em sua formação tática, embora no papel ela pareça a mesma todo jogo. Em seu 3-4-2-1, porém, o treinador faz seus jogadores executarem diversas funções. Alejandro “Papu” Gómez e Josip Ilicic são os rostos desta imponente Atalanta, e já atuaram nas condições de ponta, trequartista, centroavante e algumas vezes até mais recuados, no meio de campo.

Pouco tempo atrás, temia-se um fracasso retumbante que poderia colocar o time em marcha a ré e levá-lo a gastar muito e de forma errônea, para poder disputar os campeonatos internacionais. Também havia a descrença de que um núcleo pouco experiente conseguiria aguentar tamanha pressão. Só que, dia após dia, a Atalanta vem calando seus pessimistas críticos italianos e obtendo resultados melhores do que Milan e Inter nos últimos anos. E, pelas premissas do projeto, continuará sendo uma forte concorrente de seus rivais da Lombardia.

Uma das grandes façanhas do clube em sua trajetória ascendente foi a aquisição de seu estádio junto à prefeitura de Bérgamo, em 2017. Com isso, a Atalanta é um dos poucos clubes italianos que são proprietários de sua própria casa. O antigo Atleti Azzurri d’Italia, rebatizado como Gewiss Stadium em virtude de naming rights, só terá suas obras finalizadas daqui a dois anos, mas já está apto a receber partidas.

Gasperini é o comandante da Atalanta em seu momento mais glorioso na história (Getty)

Por sua vez, o centro de treinamento nerazzurro é referência na Europa. Com uma das melhores estruturas do continente, é reconhecido por ser muito bem equipado, inclusive do ponto de vista tecnológico. Aproveitando esse alicerce, as divisões de base da Atalanta já ganharam o reconhecimento do Centro Internacional de Estudos de Esporte (CIES), que a considera como uma das melhores do mundo, dada a quantidade de jogadores saídos de lá que jogam nas cinco principais ligas europeias.

Gasperini já disse que trabalha incessantemente em trazer jogadores de Zingonia, onde historicamente ficam os juvenis nerazzurri, primeiramente fazendo-os treinar com o time principal, não só para se acostumarem com a velocidade, mas também com a força física e o funcionamento geral do que poderá vir a ser o próximo local de treinamento deles. Nesse momento, o elenco principal conta com cinco jogadores formados em casa: os goleiros Francesco Rossi e Marco Sportiello e os atacantes Musa Barrow, Ebrima Colley e Amad Traoré. Outro que começou por lá, mas está emprestado – e já foi adquirido pela Juventus – é Dejan Kulusevski.

Financeiramente, mesmo que o principal objetivo do presidente não seja gerar lucros na venda de jogadores, a Atalanta tem superávits consecutivos no mercado de transferências e o valor de sua equipe mais que dobrou nos últimos cinco anos, com um investimento praticamente constante. O trabalho de mais de duas décadas de Favini foi recompensado com uma atuação impecável da diretoria, que continua na busca de realizar o sonho de seu já falecido diretor – Mino morreu em abril de 2019, aos 83 anos. Percassi visa criar um setor juvenil forte o suficiente para gerar uma receita que consiga colocar o seu time em um patamar acima, como um investimento a longo prazo.

Hoje estamos vendo a história enquanto ela é escrita. Em alguns anos, todos irão falar daquele esquadrão. Não só pelas suas glórias, mas pelo caminho e pelo modo como obtiveram suas glórias, com um orçamento comedido e uma ambição imensurável. O processo pode ser longo, doloroso e repleto de obstáculos, mas – se feito da maneira certa, com as pessoas competentes – também pode resultar numa das mais belas histórias do futebol.

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1 Comentário

  • Que as categorias de base são de qualidade, ninguém nega. Mas o aproveitamento de talentos no time principal é ridículo. Apenas cinco jogadores da base compõe o elenco, sendo que um tem 27 anos (Sportiello), Colley tem apenas 1 jogo, Traoré 3 jogos e Barrow 8 jogos. É muito pouco.
    Sem contar que, tirando o goleiro, muitas vezes o time não alinha nenhum jogador italiano no onze inicial.

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