“Não chores porque já terminou, sorria porque aconteceu”: a frase do escritor colombiano Gabriel García Márquez serve para muitas situações, inclusive para a trajetória europeia da Atalanta, que foi encerrada após uma derrota cruel para o Paris Saint-Germain, nos acréscimos, por 2 a 1. O sonho, porém, já tem data para recomeçar, uma vez que a equipe – estreante da competição – garantiu vaga na fase de grupos da próxima edição, que começa na terceira semana de outubro.
Quando entraram em campo na noite de quarta, 12 de agosto de 2020, os jogadores da Atalanta não jogavam apenas por eles, por seu treinador e pela sua torcida. Jogavam por quatro temporadas de muito planejamento, boas ideias, boa execução e uma mudança de patamar tão surpreendente quanto esperada. Pelo caminho, entre uma vitória e a vaga entre os quatro melhores times do continente, estava o PSG, com toda sua fortuna e seus craques, como Neymar.
Sem poder contar com Gollini, lesionado, e com Ilicic, que está lidando com problemas pessoais, Gasperini escalou sua formação mais próxima ao time ideal utilizado em toda a temporada. Sportiello assumiu a vaga no gol e Pasalic, o 12º jogador da equipe, ficou responsável por encostar em Zapata no comando do ataque. Por sua vez, o Paris não tinha Verratti, Di María, Meunier e Kurzawa – além de Cavani, que já deixou o clube em fim de contrato. Mbappé começava no banco, por conta da lesão que sofrera na final da Copa da França, ante o Saint-Étienne.
O jogo começou dentro do esperado, com o PSG tendo mais a bola e a Atalanta pressionando alto, com muita agressividade e intensidade. Logo aos 2 minutos, a Dea teve sua primeira oportunidade, com Freuler ativando Zapata no bico da grande área pelo lado esquerdo. O colombiano arrastou Thiago Silva com ele e Papu Gómez atacou as costas de Marquinhos, para receber a bola e finalizar para boa defesa de Navas. Logo na sequência do lance, o Paris conseguiu superar os encaixes da Atalanta: Icardi recebeu de costas para Caldara na zona central e passou para Neymar, que saiu cara a cara com Sportiello, mas desperdiçou chance clara ao finalizar para fora.
O jogo continuou num ritmo muito alto, com a Atalanta mantendo sua ideia de marcação por encaixes e perseguições longas, o que limitou o PSG por um lado – visto que Tuchel entrou com um meio-campo de maior força física, com Marquinhos, Gueye e Herrera, tendo de abrir mão da capacidade criativa. Sob outra perspectiva, permitiu que Neymar tivesse muitos duelos em mano a mano contra Caldara, que jamais conseguiu controlar o camisa 10 brasileiro. Dentro desse ritmo frenético, aos 10 minutos Gómez recebeu na entrada da área, levantou a cabeça e colocou a bola na cabeça de Hateboer, que cabeceou para uma defesa espetacular de Navas.

Espírito coletivo da Atalanta funcionou muito bem… até o cansaço tomar conta dos jogadores (Pool/Getty)
O cenário do jogo permaneceu o mesmo por toda o restante da primeira etapa: tínhamos uma Atalanta que conseguia incomodar a saída de bola do PSG, levar vantagem na maioria dos embates individuais e ser melhor em campo nos aspectos coletivos. Mas se a equipe francesa tinha muita dificuldade para sair jogando e contava com pouco suporte criativo do seu meio-campo, Neymar foi brilhante em suas participações – o camisa 10 teve noite indecifrável para o sistema defensivo da Dea. Recebia jogo direto, acumulava muitos dribles e oferecia muita fluidez ofensiva para sua equipe. Para a sorte dos nerazzurri, se estava muito bem gerando jogo, o craque do Paris falhou nas três oportunidades de finalização que teve nos 45 minutos iniciais.
Dentro desse contexto, o lance capital da primeira etapa aconteceu aos 25 minutos, quando Zapata recebeu a bola de costas para Kimpembe e tentou girar, mas foi desarmado. Contudo, Duván venceu o pé de ferro e a bola sobrou na medida para Pasalic finalizar de chapa, no ângulo superior esquerdo, vencendo Navas e fazendo 1 a 0 para a Atalanta.
Quando as duas equipes foram para o intervalo, a Atalanta estava a 45 minutos de confirmar sua classificação para as semifinais da maior competição de clubes do mundo e continuar vivendo sua temporada dos sonhos. O panorama era positivo, já que – apesar do excelente jogo de Neymar – o duelo tático estava sendo vencido por Gasperini e o começo do segundo tempo ajudou a reforçar essa sensação de que era possível. O PSG voltou repetindo os mesmos erros e a Dea conseguia bloquear as tentativas de criação da equipe de Paris, se utilizando de faltas, intensidade e seu entrosamento.
Mbappé foi a campo aos 60 minutos, mas nem mesmo a entrada da joia francesa, com toda sua velocidade e capacidade de atacar os espaços, conseguiram deixar o jogo de sua equipe mais confortável. Esse cenário começou a mudar apenas aos 72, quando Tuchel – já sem muita alternativa – trocou Gueye e Herrera por Draxler e Paredes. O time parisiense perdia capacidade física, mas conseguia ajuda para Neymar no setor de criação. Com poucos minutos em campo, Paredes achou um passe vertical belíssimo nas costas de Caldara e o brasileiro teve mais uma chance para empatar a partida.
Nesse momento, Gasperini já tinha Muriel e Malinovskyi nos lugares de Pasalic e Gómez – este último, saiu lesionado. Diferentemente do que foi habitual em toda a temporada, os dois reservas de luxo do treinador pouco conseguiram agregar ao time. Além disso, como Zapata era bem controlado por Thiago Silva, a Dea foi perdendo mais e mais sua profundidade e capacidade de fogo, deixando os rivais confortáveis para se soltarem em busca do necessário gol do empate.
O recuo não foi uma estratégia de Gasperini. Não ocorreu como forma de armar uma retranca para segurar o placar, mas sim por conta de um cansaço esperado de uma equipe que fez 14 partidas em pleno verão europeu e que depende totalmente de concentração e intensidade para se defender com destreza. A partida tinha muita importância por si só – era o jogo mais significativo da história nerazzurra – e o estresse adicional de ter de marcar uma equipe muito qualificada tecnicamente cobrou um preço para a Dea. Para piorar, Freuler sentiu uma fisgada na parte posterior da coxa após o time bergamasco ter feito suas cinco substituições e teve de ficar em campo apenas para fazer número.
Coube a Choupo-Moting sair do banco para estar presente nos dois gols que deram a vitória e a classificação ao PSG. Aos 90, o camaronês recebeu pelo lado direito, cortou para o centro do campo e, com a perna esquerda, achou um lindo passe por elevação para Neymar. O brasileiro bateu prensado na bola, mas acabou achando o compatriota Marquinhos, que completou para o fundo da rede. Menos de 180 segundos depois, Neymar recebeu pelo lado esquerdo, levantou a cabeça e achou um passe de cinema para Mbappé, que atacou as costas de Palomino e rolou para Choupo-Moting virar a partida. Ambos os gols ocorreram na pequena área, muito mal ocupada por Icardi durante 79 minutos.
Era um castigo muito grande para uma equipe que estava com a vaga na mão até os 45 minutos do segundo tempo. Um castigo muito grande para um time que foi superior em termos coletivos em ao menos 70 minutos da partida. Mas também um alerta de que por mais que o trabalho coletivo da Atalanta seja qualquer coisa de espetacular, o seu elenco poderia ser um pouco mais longo. Também foi um lembrete: ter um extraclasse como Neymar sempre te deixa um ou dois passos à frente dos demais.
Mesmo falhando em finalizações importantes e sem receber o suporte ideal em boa parte do jogo, o brasileiro jamais deixou de tentar – de novo e de novo e de novo. O atacante terminou a partida com 16 dribles completados, cinco passes para finalização e uma assistência. E isso tudo, diz muito sobre a grandeza dessa equipe da Atalanta e sobre como Bérgamo precisa estar orgulhosa desse grupo. Nas últimas quatro temporadas, a Dea gastou aproximadamente 170 milhões de euros em contratações, enquanto o PSG, apenas com Neymar e Mbappe, desembolsou um montante de 400 milhões. O salário do craque verde e amarelo, aliás, é superior a toda a folha nerazzurra.
O início desse texto poderia ter sido inspirado num escritor italiano, mas recorremos a um clichê colombiano, vindo da prateleira dos maiores ícones da literatura mundial. Ao fim dele, repetimos: “não chores porque já terminou, sorria porque aconteceu”. O que Gasperini realizou com essa Atalanta e o que esse grupo entregou em contrapartida será algo que sua torcida e todos os fãs do futebol italiano jamais irão esquecer. Sobretudo por ter ocorrido num ano tão duro para Bérgamo e a Itália, assoladas pelo novo coronavírus. O sonho europeu da Dea se encerrou nesta quarta-feira, mas irá recomeçar em breve, com um time mais experiente e cascudo. Porque, afinal, trabalho bem feito merece ser recompensado e o futebol agradece a esse time por existir.
Sempre textos muito bem escritos e com uma lucidez de leitura fantástica. Sou fã desde a época do Quatrottratti. Parabéns por aliar um texto bem escrito com uma dose de cultura.
Valeu, Sérgio!