Serie A

O adeus de De Rossi, a morte da Roma: uma instituição perdida despreza o próprio cânone

1.

O que é a essência?

Estendamos esta pergunta por meio de outra: como se esculpe um David de Michelangelo?

Para tanto – sigamos os passos lógicos –, um bloco de mármore é necessário.

Depois disso, só resta quebrar. Visão e técnica – nesta ordem e, ao mesmo tempo, alternando-se – separarão um Michelangelo de um amador. A visão de retratar David antes de enfrentar Golias. A técnica de expressar com clareza esta mesma visão. A cortesia do gênio, afinal, é a clareza.

Em algum ponto, David será David, isto é, idêntico a ele mesmo. Não haverá outro David, mesmo que o repliquemos. Como não houve nem haverá outro Michelangelo. A é A.

Isso nos permite enxergar o processo como uma subtração. Parte-se do bloco e chega-se em David. Em uma representação apócrifa: “o papa perguntou a Michelangelo qual era o segredo de sua destreza, especialmente como ele havia esculpido a estátua de David, considerada por muitos a obra-prima de todas as obras-primas. Sua resposta foi: ‘É simples. Eu só removo tudo o que não é David’.” (Nassim Taleb, Antifrágil)

De maneira bem mais prática, pode-se sintetizar esta ideia cantando com Kanye West: “everything I’m not made me everything I am”.

2.

No que tange à manutenção de lendas, tenho critérios bastante claros. Resgato o que escrevi na penúltima temporada de Totti, quando a Roma considerava não oferecer um último contrato ao maior ídolo de sua história:

“Se Totti afundasse o time; se chegasse ao estádio embriagado, com os botões da camisa soltos, olhos vermelhos e colares brilhantes de festa de formatura; se Totti chutasse do meio-campo apenas por diversão e chamasse o presidente do clube de “ow, véi” — ainda assim, a Roma deveria renovar seu contrato. Ele não é um jogador; é uma entidade; significante e significado convergindo numa equipe desprovida de grandes conquistas. Esse, porém, é um ponto de vista naturalmente refutável – e completamente hipotético, pois não chega perto de ser o caso do atacante.”

E adivinha só: se De Rossi afundasse o time etc. etc. “ow, véi” etc. entidade etc. e, principalmente, este não chega perto de ser o caso do volante.

Não me estenderei a respeito das qualidades técnicas e morais do Capitan Passato, muito menos sobre a gestão diarreica da instituição que o projetou: se alguém quiser um panorama bastante completo sobre ambos, basta ler este ótimo texto de Gian Oddi.

O Olímpico faz parte de De Rossi; De Rossi faz parte do Olímpico (Getty)

3.

Não é lógico – nem justo – afirmar que Totti e De Rossi são maiores do que a Roma. “Totti” e “De Rossi” são cada qual um subconjunto de “Roma”, instituição que, por questões (antes de mais nada) cronológicas, existiu, existiria e continuará existindo sem estes dois ídolos.

Mas o que faz da Roma a Roma?

Não me refiro à instituição enquanto pessoa jurídica, meramente. E sim ao que compõe o seu ethos, ao que a distingue. Aquilo que faz uma criança de outro continente concluir “já sei, é isso; ao te encontrar, eu me encontrei” – não nessas palavras. Provavelmente sem palavras, inclusive.

Trarei como hipótese de resposta um cenário bastante dramático: no final deste século, quando eu estiver velho e demente, trocando os nomes das pessoas que me auxiliam na tarefa de sobreviver, incrustadas em minha memória estarão as lembranças de Totti e De Rossi. Intactas. Tenho a mais plena convicção: podemos apostar dinheiro agora (e, devido à demência, talvez eu não lembre de recebê-lo).

Porque essas entidades são, além de, transcendentais, inerentes ao romanismo.

E no pedregulho vagabundo de que sou composto, “Totti” e “De Rossi” são elementos insubstituíveis (incrustados, intactos).

Na linha do tempo da vida, ninguém lembrará de Pallotta, Baldini ou do charlatão de Sevilha – este tampouco é o trabalho deles, evidentemente. Ao contrário de mim, eles devem, é claro, se importar com a possibilidade de um atleta chegar ao estádio embriagado e chutar do meio-campo por diversão.

Também devem tomar decisões brilhantes, como garantir o maior tempo possível de contrato a Pastore, remontar o elenco inteiro sob os caprichos de um diretor esportivo egomaníaco e despejar o maior ponto de referência – interno e externo – do clube.

(Afinal, quem precisa de faróis quando se navega com Nzonzi? Um atleta que, não obstante os 197 centímetros, dispõe da imposição de um hamster. Não ocupa espaço, não sai do chão, não constrói. Três atributos que o distanciam de De Rossi por um oceano, visto que, muito além da bravura, DDR dispõe de inteligência, técnica e liderança ímpares, as quais lhe garantiriam um lugar na equipe – qualquer equipe – mesmo que para uso esporádico. Perdão, Nzonzi, você é campeão mundial e não tem culpa nenhuma por essa bagunça.)

De todo modo, Roma precisa recomeçar. Assim se decidiu em Constantinopla; assim se decide em Boston.

Mais uma vez, a instituição mudará tudo para continuar igual. Como o tem feito ao longo de uma década tragicamente perdida. E o recomeço não é mais esperançoso – é apenas cansativo; melancólico. Um pai de família que larga o emprego para se dedicar ao que ele jura não ser esquema de pirâmide, mas marketing multinível.

4.

Falávamos de essência. O que, afinal, caracteriza a Roma?

Totti e De Rossi não são maiores que o clube. Ok.

Mas a partir do momento em que Totti e De Rossi ascenderam para as entidades “Totti” e “De Rossi”, tornou-se impossível separá-los da imagem mental de Roma enquanto clube de futebol, daí sua inerência. “Roma” é, há muito tempo, “o time do Totti e do De Rossi”. E não muito mais que isso. Assim como já não é mais possível entender “telefone” como uma caixa fixa com fios, e sim como um computador portátil, aqueles que viveram períodos anteriores à consolidação de Totti e De Rossi nem por isso conseguirão dissociá-los do conceito “Roma”.

Lendas da Roma, Totti e De Rossi foram descartados pela diretoria do clube (AFP/Getty)

5.

Daniele De Rossi não está atrasando absolutamente nada. Neste aspecto, sua permanência é até muito menos arriscada do que a de Totti. Porque De Rossi é um líder nato, personalidade respeitada por companheiros e adversários não só pelo comportamento dentro de campo, mas pela personalidade fora dele.

De novo: é evidente que gestores não podem comandar o clube como qualquer torcedor faria. Mas não é possível que tamanha amálgama de empáfia e estupidez tome conta de uma companhia milionária, a começar pelo esforço em vestir a couraça fria que a caracterize como nada além de uma companhia milionária. Não existem argumentos sólidos para despejar Daniele De Rossi, que sequer demandaria qualquer minutagem.

Não existem desculpas para que a facada tenha ocorrido em meio a tamanha várzea – falta de visão; falta de comunicação; falta de planejamento. Para ficar com apenas um corolário imediato, por que diabos Zaniolo sonharia em se consagrar na Roma, se a Roma cospe no que lhe é sacro?

Certos estão Salah, Alisson, Pjanic, Benatia, Lamela, Marquinhos. Sorte tiveram Nainggolan e Strootman, chutados pelo barbeiro que queria um elenco à sua imagem e semelhança.

Uma pena para De Rossi, romano de mentalidade vencedora e grande curiosidade multicultural, não ter aproveitado seu ápice alhures.

6.

Ao longo do Império Romano, nobreza tinha um custo: lutar por Roma. Mais poder, mais responsabilidade. A posição de imperador, por exemplo, não só não protegia o indivíduo como o submetia a diversos riscos – de curta ou longa distância. É muito, muito mais provável que eu e você padeçamos de causas naturais do que um imperador romano.

Não se trata de uma ode à cultura da época, tampouco de uma retrotopia inocente. Até porque não há analogia mais gasta do que aquela entre futebol e guerra. De todo modo, são tempos e tempos – igualmente longe de condenar, separo aqui apenas o aspecto do risco.

Porque quando Jim Pallotta optou por não oferecer uma renovação a De Rossi (e, depois, voltou atrás e a ofereceu tardiamente, sem levar em conta que lidava com De Rossi, e não com um executivo que lhe massagearia as bolas), ele tomou sua decisão em Boston.

Pallotta não fala italiano e tem diversas ocupações para além da Roma. Suas viagens à capital italiana são esporádicas – cerca de uma por trimestre –, seu contato com o ethos do clube, limitado – e provavelmente filtrado por relatórios, planilhas de Excel e gráficos de pizza. Novamente: para que ele exerça um bom trabalho, não é necessário cuspir cerveja no estádio (ou pular em fontes). Relatórios, planilhas de Excel e gráficos de pizza fazem parte de suas atribuições. Nada o impede, com as tecnologias de que dispomos hoje, de acompanhar o dia a dia de sua empresa a distância.

E Pallotta não apareceu para a despedida de De Rossi. Ele sabe exatamente por quê: porque pela primeira vez, Jim sentiu aquele frio dos desprotegidos. A adrenalina que destranca as narinas; as coxas que tremulam e o coração que se faz notar apressado.

O presidente part-time James Pallotta sentiu cagaço. Ou, no mínimo, um latejar no lobo frontal.

Ao contrário de um imperador disposto a encarar a responsabilidade de suas decisões, Pallotta permaneceu nos Estados Unidos. Quieto. Provavelmente assistindo à NBA de seu Boston Celtics.

Pallotta não é e nunca foi burro. Ao contrário, é um profissional eloquente e perspicaz, muito competente em sua trajetória. A essa altura, portanto, certamente já compreendeu a importância de ser prudente; isto é, a dimensão de ser leviano. Futebol não pode ser basquete – a começar pela dádiva de o balípodo não ter o Drake encostando em seus atletas. E Roma não pode ser Boston.

Por fim, ninguém pode ser De Rossi.

Pellegrini, Florenzi e Ranieri: romanos e romanistas, como De Rossi (Ansa)

7.

Eis por que Claudio Ranieri será sempre lembrado com carinho, enquanto Pallotta precisará de um milagre para não ser eternamente tratado como um porco pelos torcedores de sua instituição: porque Ranieri, centurião, foi corajoso. Ele não escondeu seu desprezo, impondo-se não só com o que disse, mas com o que não disse.

Porque mais do que afirmar que teria renovado com De Rossi, sua pancada ficou guardada no “se tivessem me perguntado”. Mais do que criticar a desorganização do clube, seu desdém transbordou ao apontar que “Baldini não afeta meu trabalho. (…) Eu não sei o que ele faz”.

Ranieri poderá jantar em Roma para o resto da vida. Provavelmente de graça. Não sei quais são suas prioridades, mas não é pouca coisa. Pallotta, 61 anos – 7 de Roma –, terá mais tempo para treinar italiano pelo Duolingo.

8.

A hora do camisa 16 naturalmente chegaria. Quando? No meu universo, em 2021, prestes a completar 38 anos, com 20 de time principal. Talvez em 2022, já como um auxiliar técnico informal. Enfim, tarde demais para especular.

O torcedor não é tão irracional e incompreensível em uma situação como essa. Ele o é apenas diante de uma ofensa grave, algo que lhe afete o âmago.

E sei quão irritante é proclamar isto, mas a relação do romanista com Totti e com De Rossi é, sim, única. Nenhum outro torcedor a compreenderá.

Não é o mesmo contexto de Maldini e Baresi, Giggs e Scholes, Xavi e Iniesta. Eles participaram de gerações abençoadas. O apego do torcedor a Totti e De Rossi não arrefeceu com escassez de troféus: ele se expandiu. Cada fracasso, uma idolatria maior a quem não precisava estar lá. O vento que apaga a vela, afinal, energiza o fogo.

Ela não se repetirá com Florenzi ou Pellegrini pelo simples motivo de que Florenzi e Pellegrini não seriam titulares em qualquer time do mundo. Totti rejeitou ser o camisa 10 do Real Madrid de Zidane, Beckham, Raúl e Ronaldo. De Rossi rejeitou o Manchester City capaz de contratar quem quisesse (ou quase isso). Entre várias outras ofertas – que conhecemos e que não conhecemos.

Ambos disseram não a quem “não” é um conceito abstrato. Atitudes e personagens impossíveis de serem mensurados.

Para a torcida da Roma, De Rossi é o romanismo (LaPresse)

9.

E a Roma, oras, não é mais a equipe de Totti e de De Rossi. A Roma também não é David, Golias ou Michelangelo. A Roma é só mais uma equipe. Um bloco de mármore sem forma, capricho ou rosto.

Uma rocha sem essência. Que sequer pode alegar que a sacrificou para conquistar tudo – uma recompensa considerável – porque não conquistou absolutamente nada. Uma empresa capaz de agir sob os dois piores pecados humanos, isto é, ingratidão e burrice.

O torcedor compreende os empecilhos para a construção de um novo estádio. O torcedor aceita dez anos sem títulos. O torcedor tolera se subverter em um patética figura de entusiasta de plusvalenza. Mas torcedor algum aceita blasfêmia ao que lhe é mais sagrado.

A essência, afinal, é o fundamental; a natureza intrínseca de algo. Ao dispensar De Rossi, a Roma abriu mão da sua. A essência não pode ser encontrada em relatórios, gráficos de pizza e planilhas de Excel.

Um indivíduo demente não carrega culpa sobre sua demência. Uma instituição demente merece ser derrubada. Nada impede que outra Roma floresça: esta apodreceu antes do esperado.

10.

“Nada na natureza é tão sagrado que não encontre um sacrílego, mas nem por isso as criaturas divinas estão menos no alto se existem os que buscam acometer uma grandeza que está situada muito além deles, sem haver de atingi-la. Não é invulnerável algo que não recebe um golpe, mas aquilo que não sofre ferimento.”
Sêneca, séc. I d.C.

Antes, durante e depois de sua última partida, De Rossi sorria. Com a leveza e o desprendimento dos sábios, pediu para que o evento fosse uma festa, isto é, sem revoltas em sua defesa. Não houve nenhum dano a seu espírito, intacto.

No estádio que o recebeu sem lugares vazios para a derradeira volta olímpica, gotas de chuva se sobrepunham às lágrimas – dele, de Totti e de dezenas de milhares de indivíduos em catarse. Entre eles, cada qual se despedia de um fragmento de si.

Ao invés de remover tudo o que não é David, a Roma pode ter arrancado-lhe um braço. Mas o respeito máximo a Daniele De Rossi não fraquejará por um instante. Somos todos passado, afinal. Uns com honradez. Quem acompanhou essa trajetória se encontrou um pouco mais: nada pode retribuir este impacto tão inefável.

Obrigado, De Rossi, daqui até o fim.

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4 comentários

  • Que texto maravilhoso, não lembro a última vez que li algo assim que me emocionasse tanto. Sou Interrista de coração e amo futebol principalmente o Italiano desde os anos 90.
    Parabéns Mateus Ribeirete, vou tentar divulgar esse texto para o máximo de pessoa possível, faço questão que todos leiam.

  • Bom eu sou romano e romanista e moro no Rio posso só agradecer o que você escreveu e perfeito correto sem dúvida a visão certa e de alguém que nem italiano é ! Então isso e mais valioso ainda ! E admirável visto que ainda tem gente que tenta encontrar algo bom nessa diretoria atual da Roma ,tanto lá na Itália que Aki no Brasil! Mas você colocou a NU a verdaderia realidade com objetividade ! Obrigado grazie de verdade! Maurizio spina

  • Mateus , seu texto é a expressão máxima do puro romanismo, o verdadeiro mesmo…nem me atrevo a tentar elogiar mais ,pq , sinceramente, é impossível…
    Forte abraço amigo gialorrosso!

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