Dez anos e alguns meses atrás, Milan e Juventus faziam a final da Liga dos Campeões. Hoje, este contexto é inimaginável: nota-se facilmente como o futebol italiano decaiu e se descaracterizou. Minha teoria absolutamente científica propõe que tamanha derrocada não ocorreu graças à falta de estrutura, estádios vazios, desorganização, violência urbana, escândalos, Berlusconização, displicência técnico-tática, comodismo e o design geral da Rai, mas sim pela safra ruim de novos italianos comedores, incapaz de substituir a geração imponente das duas últimas décadas. Por isso, apenas por isso, a Serie A, hoje, é um produto inferior à Premier League; menos lucrativo que as 38 rodadas de Superliga Real Madrid-Barcelona; mais sem graça que a Liga Bauhaus, Francesão e até Eredivisie, onde é comum notar placares semelhantes a jogos de tênis.
Situemo-nos, pois: o Italiano Comedor (doravante I.C) é o atleta cabeludo e marrento que joga de gel (opcional) e tiara ou elástico capilar (essencial), provavelmente mangas longas e outros utensílios. Desenvolveu-se após o marcante período do Milan holandês, Inter alemão e Napoli maradonista, no início do futebol moderno, notabilizando-se na ascensão de Parma, Lazio e Roma no fim do século XX. Aperfeiçoou-se ao longo da década passada, principalmente em Milan e Juventus, para performar o que parece ser seu canto do cisne na Copa do Mundo de 2006, mórula do futebol pós-moderno. Hoje, o I.C corre perigo – ele se aposentou, engordou, casou-se ou foi preso.
Fora dos gramados, o Italiano Comedor nunca é visto sem óculos escuros, roupas de grife e namoradas famosas. Não disfarça o trejeito de quem corteja as esposas de todo o mundo. Afirma compromisso com três mulheres ao mesmo tempo, mas ao invés de levar a culpa, elas brigam entre si. Arranja pretextos para aparecer de cueca. Não tem mera cara de mau, mas a cara do mal. Seu nome no Google encontra mulheres que ele já scudettou. A história da Serie A desde a década de noventa manteve nos I.Cs seu pilar gradiloquente, tanto nos mais brilhantes em campo, como Buffon e Nesta, quanto nos irrelevantes porém importantíssimos à função sócio-mercadológica, como Stefano Mauri e Paolo Castellini.
Vejamos na imagem a seguir, por exemplo, Luigi Sartor, ex-lateral meramente inexpressivo, sendo preso por, óbvio, apostas irregulares. A jaqueta parece inacessível ao seu salário anual? O cabelo é mais bonito que o seu? Você consegue sentir, pela foto, que ele havia passado um perfume com cheiro de nuvens, prostitutas e ouro? Quem parece mais preocupado, Luigi Sartor ou os dois guardas? Pode segurar os raciocínios consigo, eles serão usados daqui em diante para uma melhor ilustração da teoria.
Mártires
Pouco após o fim da carreira, Francesco Coco, um Heidegger da ideologia Futebol e Cocaína, foi flagrado em fotos comprometedoras num barco, acompanhado de outros homens, todos despidos como a careca de Adriano Galliani. Ao contrário das acusações sexuais impulsivas a que foi submetido, o fato apenas comprova sua audácia enquanto I.C: quando um ser humano come todas as maçãs de um cesto, ele parte para outras frutas.
Trata-se de um ex-atleta com mais modelos milionárias no currículo do que gols, e isso não é hipérbole alguma, pois segundo a Wikipedia ele coleta apenas três gols em ligas nacionais. Numa possível confusão espiritual com Francisco Cuoco, Coco tentou carreira de ator logo aos trinta anos. Ele, que aparentemente nunca gostou de jogar bola, conseguiu ser dispensado do Manchester City pré-dinheiro infinito antes mesmo de assinar, por ter fumado na concentração. Herói.
Certa vez, o programa de pegadinhas Scherzi a Parte testou Francesco Totti ao levá-lo a um restaurante e deixá-lo a sós com uma notável donna. Sem devaneios, ele estava prestes a FAZER AMOR com ela em plena mesa de refeições, até a brincadeira ser revelada. Você imagina a mesma atitude partindo do Giovinco, do Giaccherini, ou mesmo do Aquilani? Eis a única razão pela qual o futebol italiano perdeu sua famosa mentalità vincente. Você acha que o Montolivo, um jogador ateu, passa pelo ritual corriqueiro ao I.C de jurar à mulher em nome de Deus que tudo que ela andou lendo na imprensa sobre supostos affairs são apenas invenções?
O próprio Totti, diga-se, perdeu seus poderes em 2006, pois – observe -, ficaria de fora da Copa do Mundo por lesão, não fosse um pacto que o obrigou a cortar os longos cabelos para curá-lo até o torneio. Não por acaso, a segunda parte do acordo veio com a Chuteira de Ouro da temporada seguinte. Mesmo pacto realizou Fabio Cannavaro: para ser monstruoso na copa e melhor do mundo, o zagueiro ex-I.C abriu mão de seu corte Italiano DOC. Só não vê quem não quer.
Por que Panucci, voando em campo, não foi à Copa, e Zaccardo, que até fez gol contra, estava lá? Esqueça a conspiratória teoria de que o lateral veterano havia brigado com Marcello Lippi; é fato inegável que Zaccardo foi à Alemanha graças ao gel e tiara, enquanto Panucci, um caxias, sempre usou camisa por dentro dos calções. E Simone Barone? Alguém lembra de Simone Barone? Ele também foi campeão mundial, e diga-me, apenas diga-me, seria ou não seria um baita companheiro de Robert De Niro e Joe Pesci num filme mafioso de Martin Scorsese? Sem eles, não haveria tetracampeonato algum.
Lembremos então de Christian Vieri. Ah, o grande Vieri. Se Coco decidiu ampliar horizontes, o ex-atacante teve uma recaída e chegou a abandonar o estrelato do safadorismo. Mesmo: o bicho ficou careca e pançudo como o tio que joga bola de raider, mas logo se reabilitou. Goleador e revezador de namoradas, é uma referência. Seu herdeiro contemporâneo é o comedor Marco Borriello, entretanto, talvez pela falta de elástico no cabelo, Borriello não é tão eficiente nos gramados quanto Bobo Vieri. É esse gap entre as gerações que afeta a qualidade do futebol italiano.
Além disso, ficou evidente a relação entre o nível dos ragazzi com a permissão de acessórios em campo (brincos, aneis, colares, fitas sem qualquer razão de ser, etc.) e a liberdade de tirar a camisa após um gol. Quando a Fifa cortou tudo isso, acertou um tiro de raspão no braço forte da Itália. Se um I.C não pode mais mostrar seu corpo descamisado na televisão, por que mesmo marcar um gol? O próprio Maradona já ensinou sobre a importância dos brincos para a Serie A.
É preciso, portanto, ouvir o artilheiro Vieri e ex-atletas medianíssimos como Bernardo Corradi, Alessandro Lucarelli e Fabio Galante, pois eles têm muito a ensinar aos jovens. Se depender do cabelo à Jolteon de El Shaarawy ou da falta de swag do inocente Florenzi, a bota está em mãos piores que as de Dolce e Gabbana preenchendo impostos.
Análise
Rolando Bianchi:
1. Cabelo desfiado e, claro, tiara/elástico. O primeiro permite agilidade e técnica; o segundo traz aderência entre inteligência emocional e inteligência cinética. Alguns teóricos procuram estudar a relação entre cabelo, tiara e desempenho com os conceitos de id, ego e superego.
2. Não está frio o suficiente para usar mangas longas? O I.C jamais fardará sua camisa da maneira comum. Basta uma dobra indefensavelmente cem por cento estética.
3. É bom ter um elástico reserva, caso algum zagueiro maldoso arrebente o primeiro. O I.C é, acima de tudo, um cuidadoso.
4. Braçadeira de capitão, porque não há marra maior do que dizer que manda em todo o mundo.
5. Fitas e pulseiras. É preciso preencher os dois braços.
Índice comedorismo/talento: 10-5.
Christian Vieri:
1. Se você ainda não compreendeu o valor do elástico capilar até aqui, sugiro rever todos os seus conceitos sobre futebol italiano. Estima-se que este corte tenha custado mais que Cinema Paradiso.
2. Camisa rasgada. Pode ter sido sem querer? Pode. Vieri pode ter rasgado por conta própria, buscando customização? Pode. Se foi sem querer, Vieri ficou feliz ao ver que sua camisa era, agora, customizada? Certamente. Perguntas retóricas a si mesmo irritam? Irritam. Me desculpo? Me desculpo.
3. Pulseira, vide Bianchi.
4. Tatuagem ridícula. E quem disse que Vieri se importa? Ninguém teve coragem de questioná-lo. Aliás, se Vieri tatuou “Friends For Ever” com fonte cursiva e maiúscula no antebraço, então é perfeitamente aceitável tatuar, no antebraço, com fonte cursiva e maiúscula, “Friends For Ever” – se você for Vieri.
Índice comedorismo/talento: 10-9.
Cristiano Doni:
1. vide Bianchi e Vieri.
2. vide Bianchi e Vieri.
3. vide Bianchi.
4. Anel protegido por fita, tal qual a lei permitia. Não por acaso, Doni jogou uma Copa do Mundo assim. (Para quem não lembra, esse também foi estilosamente preso no escândalo de apostas. Sentimos falta.)
5. Comemoração própria. “Customização” está para o I.C ordinário tal qual “E-qui-lí-brio” está para Tite, e “Cau-te-la”, para Celso Roth.
Índice comedorismo-talento: 7-7.
Moreno Torricelli:
0. Um cara de nome Moreno e sobrenome Torricelli é automaticamente legal.
1. Dono de um dos cabelos mais espetaculares da Itália, Torricelli poderia facilmente ter entrado para o The Verve. A tiara está lá, claro.
2. Caro leitor, você está diante de um dos poucos cavanhaques respeitáves já registrados.
3. Manga dobrada a 3/4. Cus-to-mi-za-ção.
4. Anel protegido, vide Doni.
Índice comedorismo-talento: 9-7.
Francesco Totti:
0. A última Roma campeã de alguma coisa relevante tinha Delvecchio, Batistuta, Montella e Totti no elenco atacante. Todos cabeludos; ao menos três com tiara, elástico ou bandana. Coincidência? Não seja ingênuo, caro leitor.
1. Estava faltando a munhequeira.
2. No auge dos ICs, elásticos gritantes eram comuns.
3. O capitano sempre usou sua tarja de cabeça para baixo: customização.
4. Dois segundos após a foto, ele já estava sem camisa.
Índice comedorismo-talento: 10-10. (Atualmente, 5-9.)
Esperanças
Andrea Pirlo passou por duas grandes transformações na carreira: a primeira, quando Carlo Ancelotti o recuou no meio-campo e fez dele regista; a segunda, tão importante quanto, no momento em que deixou a barba crescer. Pirlo, sabemos, nunca se caracterizou como um I.C, mas sua sobrevivência à mudança de gerações se deve exclusivamente à evocação voluntária de um dos maiores comedores da história: Al Pacino. Para repassar aos novos todo o conhecimento adquirido na convivência com a antiga safra de I.Cs, Pirlo virou Serpico, não por acaso um policial honesto em meio à corrupção de seu setor. Tornou-se um mestre, um guia. Por isso, também, refinou sua técnica em campo, mesmo em idade avançada.
Aliado a Gianluigi Buffon, único futebolista adepto de PRESILHAS, Pirlo orienta nomes ainda indefinidos quanto à possível vocação comedorista. Montolivo e Aquilani, por exemplo, têm vocação para o cargo, mas parecem sonolentos demais, enquanto Osvaldo exagera na tentativa de ser o filho do Batistuta com o Johnny Depp. É necessário equilibrá-los. Já Borriello precisa de definição capilar para pôr sua carreira nos trilhos, e Marchisio, por sua vez, raramente aproveita sua estética privilegiada para parecer um Corleone. Citados acima, El Shaarawy deve ser anexado a um cortador de grama, e Florenzi, a um El Shaarawy. No futebol italiano atual, o único a não demandar reajuste no índice comedorismo/talento é o hors concours Mario Balotelli.
Poucos I.Cs se arriscam enquanto treinadores. Uma exceção é Roberto Mancini, pioneiro no ramo, tão galã que conseguiu se passar por grande técnico durante quatro temporadas em Manchester – cidade das novas bandas que conseguem se passar por grandes bandas durante um disco. Um Robert Downey Jr. sem filmes redundantes, ele é a sobrevivência do comedorismo em cargos de tutela. Na Nazionale, notamos que o grupo está em boas mãos com o astuto e classudo Cesare Prandelli, famoso pela semelhança a um pote de gel engravatado. Quem sabe um eventual colpo di scena lhe ofereça novos nomes para a Copa do Mundo, e, a médio prazo, devolva a Serie A ao seu merecido lugar.
Devo me despedir, leitor, mas não antes de conclamar que este assunto ainda dará pano para mangas 3/4.
Alguns representantes
Marchetti, Buffon, Storari, Stendardo, Biava, Maldini, Sartor, Legrottaglie,
Torricelli, A. Lucarelli, Galante, Castellini, Oddo, Coco, Nesta, Cannavaro (até 2006), Montolivo, D. Conti, Bombardini, Marchisio, Mauri, C. Doni, Borriello, Totti (até 2006), Fiore, Bianchi, Baggio (pós-Budismo), Delvecchio, Del Piero (com cabelo), Ventola, Corradi, Matri.
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Chega de ciência por hoje. Se você apreciou essa baboseira fundamentada, confira também o gosto musical dos jogadores da Roma.
Faltou nada mais nada menos que ALESSANDRO MATRI, nota 10 em comedorismo.
Muito bem lembrado, Bruno. Matri foi devidamente adicionado à lista.
Sensacional o texto, só acho que ficou faltando Pippo Inzaghi e Luca Toni.
muito bom o texto, simplesmente sensacional…
Sensacional, parabéns!. Senti falta de menções a Gattuso e, talvez, Lyca Toni.