Você já viu um técnico ter o seu trabalho influenciado pela filosofia e pela literatura? Pois foi nos livros que Giovanni Galeone teve as suas grandes inspirações, que tentou transpor para os gramados. Leitor assíduo, devorava os livros de Albert Camus, Jean-Paul Sartre e Franz Kafka. Um existencialista, que lidou com o peso das consequências de cada uma de suas escolhas na construção de sua trajetóri. Brilhante treinador, se notabilizou pelo futebol ofensivo de suas equipes e pelos acessos conquistados. Autêntico e inquieto, escreveu os capítulos mais belos de sua intensa carreira no Pescara.
Primeiros passos
O napolitano Giovanni Galeone nasceu no dia 25 de janeiro de 1941. Filho de mãe monarquista e pai liberal, veio de uma família burguesa e teve uma formação intelectual quase aristocrática. No entanto, optou por se aventurar num ofício que pouco teria relação com livros, salas de aulas na universidade ou escritórios.
Aos 16 anos, Galeone se tornou jogador da pequena Ponziana. No fim da adolescência, em 1957, saiu de casa, trocando o sul da Itália (Nápoles) pelo nordeste do país (Trieste). Na sequência, Giovanni passou por diversos clubes de menor porte sem nunca permanecer mais do que dois anos em um mesmo lugar. Depois de algumas andanças, o meio-campista se transferiu para a Udinese e ficou por lá durante oito temporadas até se aposentar, no ano de 1974, aos 33 anos, e receber um convite para ser auxiliar técnico dos bianconeri.
Um ano mais tarde, iniciou a carreira como treinador. Pordenone e Adriese foram seus primeiros trabalhos; em seguida, passou pela Cremonese, na Serie C1, e Sangiovannese, que disputava a C2. Demitido do cargo, fechou com o Grosseto e, na sequência, assumiu como técnico das categorias de base da Udinese, de 1981 a 1983. Durante os três anos seguintes, retornou para a beira do campo, comandando a Spal.
Em seu primeiro ano em Ferrara, somou dois pontos em seis partidas, o que lhe rendeu a demissão. Um mês e meio depois, os jogadores pediram por sua volta, algo que foi prontamente atendido pela diretoria. Durante o período em que guiou os estensi na Serie C1, Galeone conseguiu campanhas de razoáveis a boas e deixou em evidência o tridente ofensivo formado por Elio Gustinetti, Maurizio Trombetta e Carlo Bresciani.
O destino seguinte de Galeone representaria a sua experiência mais transformadora e prazerosa: o Pescara. Quando chegou à bela região dos Abruzos para substituir Enrico Catuzzi, não demorou para que ele se apaixonasse pela localidade e, especialmente, pelo mar que banhava a sua costa, o Adriático.
Originalmente, Galeone foi contratado para dirigir um time rebaixado à terceira divisão. O Pescara amargou a 17ª colocação na Serie B de forma cruel e teve o descenso sacramentado no minuto final da última partida, contra a Triestina. Só que aquele foi um verão especialmente quente na Itália, que viu explodir o Totonero-bis, o segundo escândalo de manipulação de resultados da década. O clube abruzês acabou sendo salvo de forma inusitada e teve a manutenção na segundona confirmada ao herdar a vaga do Palermo, envolvido no esquema e falido logo depois – os rosanero tinham ficado uma posição acima dos biancazzurri.
Galeone encontrou um time em frangalhos, praticamente sem recursos financeiros. Para se ter uma ideia, o clube não conseguia arcar com as despesas de uma viagem de ônibus com o elenco. Todos precisavam ir por conta própria, fosse de carro ou pagando passagem do próprio bolso. Outro grande problema era o fato de o planejamento ter sido todo feito visando a C1; o elenco era considerado modesto para a Serie B. Giovanni chegava com a dura missão de fazer uma campanha digna. E quanta dignidade estava por vir.
O galeonismo
O futebol inventivo e contagiante praticado pela equipe de Galeone em uma competição tão longa quanto a Serie B causou euforia entre os torcedores. O triunfo sobre o Parma, na última rodada, confirmou o título conjunto dos delfini e do Pisa, que teve os mesmos 44 pontos somados e campanha idêntica – 10 vitórias, 12 empates e 10 derrotas. O equilíbrio era tanto que o Cesena, terceiro colocado com 43 pontos, ficou à frente de Lecce (quarto) e Cremonese (quinta) pelos critérios de desempate.
Por conta do apoio irrestrito ao longo da temporada, os torcedores biancazzurri foram um diferencial na campanha. Um episódio simbólico ocorreu quando mais de cinco mil pessoas viajaram a San Benedetto del Tronto para presenciar a vitória do time de coração contra a Sambenedettese. Outro teve lugar na penúltima rodada, quando oito mil foram a Arezzo em 80 ônibus fretados – o jogo terminou empatado em 1 a 1. E, por fim, na rodada final, que contou com um Adriatico tomado por mais de 40 mil pessoas, no jogo contra o Parma. O árbitro era Paolo Casarin, o mesmo que apitou a partida do rebaixamento no ano anterior, contra a Triestina.
Dentre os nomes lançados por Galeone ao longo da temporada, a história de Giuseppe Gatta é especial e está ligada diretamente ao treinador. O goleiro de 19 anos que era reserva da Primavera queria mais chances e pediu para ser transferido para a Pennese, da quarta divisão. A troca no comando técnico provocada pela chegada de Giovanni mudou radicalmente as perspectivas do jovem, que passou a ganhar chances na seleção italiana sub-21, treinada por Cesare Maldini.
O capitão Gian Piero Gasperini se consolidou como uma liderança dentro das quatro linhas. Já Stefano Rebonato brilhou na frente e foi o artilheiro do campeonato, com 21 gols marcados. Galeone instruiu o atacante, que nunca tinha anotado mais do que oito tentos num mesmo ano, a jogar verticalmente. O esquema utilizado era o 4-3-3, o predileto do treinador, que adotava a marcação por zona e dava liberdade ao trio de frente. O estilo ofensivo dos golfinhos ganhou o apelido de “calcio champagne”, pela vivacidade e a movimentação dos jogadores em campo, que lembravam as bolhas da bebida. Ainda assim, o comandante foi cauteloso e dizia que para sobreviver à Serie A era preciso de mais, muito mais.
O desafio na Serie A
Os holofotes apontavam para Pescara, que vivia dias felizes. Quando estava na Itália para competir no Grande Prêmio de San Marino, em Imola, o piloto brasileiro Ayrton Senna costumava frequentar a maior cidade dos Abruzos, distante cerca de 330 quilômetros do autódromo. A lenda do automobilismo tinha amizade com Gino Pilota, empresário natural da região, e não tardou para que os delfini chamassem sua atenção. Senna, inclusive, passou a manter a forma física correndo nas instalações do clube e ocasionalmente apostava corridas com Edoardo Reja, então treinador do time Primavera.
A vida noturna da cidade girava em torno de lugares peculiares, como o restaurante à beira-mar de Eriberto Mastromattei, famosa figura local. Dono de um balneário e responsável direto por alavancar o turismo local na época, ele foi uma das primeiras pessoas que Galeone encontrou quando chegou em Pescara: os dois tornaram-se parceiros de pesca e de grandes passeios de barcos, sendo alguns internacionais. O técnico costumava ir até a Croácia nessas viagens, que duravam cerca de quatro horas e faziam até com que ele alterasse o horário de alguns treinamentos.
No clube, mudanças. E não só no elenco, mas na presidência também, com a entrada de Pietro Scibilia, dono de empreendimentos como a Olearia Scibilia e a fabricante de sorvetes Gis, além de fundador da equipe de ciclismo homônima à gelateria. O mandatário tinha experiência prévia no futebol, uma vez que, de 1979 a 1982, presidiu a Giulianova. Ambicionado a tornar o Pescara competitivo, não hesitou em abrir os cofres para que o plantel fosse aprimorado.
O artilheiro Rebonato e o zagueiro Roberto Bosco, autor do histórico gol contra o Parma, foram vendidos para a Fiorentina. Em contrapartida, chegaram o experiente goleiro Giuseppe Zinetti (Bologna) e três meio-campistas: Stefano Ferretti (que estava no Ancona e foi comandado por Galeone na Spal), o bósnio Blaz Sliskovic (Marseille) e o brasileiro Júnior (Torino).
Júnior deixou Turim após desavenças com Luigi Radice, seu ex-técnico. O negócio ocorreu quando Vincenzo Martinelli, dirigente do Pescara, telefonou para o cartola granata Luciano Nizzola buscando informações a respeito da situação do brasileiro. O “Capacete” se interessou e perguntou sobre a cidade, o time e o treinador Giovanni Galeone, chegando a ligar para o amigo Zico, que conheceu o comandante biancazzurro em seus tempos de Udinese.
O Galinho foi só elogios e o descreveu como uma pessoa excepcional, o que ajudou a convencer Júnior. Além, é claro, de citar o mar e os dias ensolarados, em contraponto à melancólica neblina da região do Piemonte, da qual o meio-campista tanto reclamava. Com o anúncio da contratação, a cidade inteira enlouqueceu de felicidade. Era o sonhado reforço de peso para uma equipe recém-promovida e que faria apenas a sua terceira participação na Serie A. Gasperini entregou a faixa de capitão ao brasileiro, em gesto de absoluta grandeza.
Já Sliskovic, meia talentoso e de personalidade forte, era um dos maiores destaques do futebol da Iugoslávia, onde recebera o apelido de “Maradona dos Bálcãs”. Sua chegada também representou um acréscimo técnico e ele era mais um estrangeiro que aportava na Serie A em meio a tantos nomes de peso, como, por exemplo, Diego Maradona, Careca, Ruud Gullit, Marco van Basten e Enzo Scifo. Em um amistoso de pré-temporada entre Pescara e Roma, que era treinada por Nils Liedholm (uma inspiração para Galeone), o treinador giallorosso fez elogios ao jogador.
A primeira rodada da Serie A reservou logo de cara um grande duelo: a Inter de Giovanni Trapattoni, desafeto de Galeone, no San Siro. Os golfinhos chegaram à Milão de trem, na noite anterior ao jogo. O Profeta, como era conhecido o treinador do Pescara, foi jantar em um restaurante com o jornalista Gianni Mura e antecipou uma questão tática: ele disse que, quando os nerazzurri tivessem a bola, seu time tentaria reduzir ao máximo as opções de passe dos anfitriões.
Chegada a hora da partida, o que se viu em campo foi um Pescara organizado, com toques engenhosos e alternância no ritmo das jogadas. Galeone armou um esquema especial pelo lado direito, alinhando Sliskovic, Nicola Zanone, Primo Berlinghieri e Rocco Pagano no setor. A armadilha biancazzurra estava servida.
Os visitantes foram dominando as ações na intermediária e, em determinado momento, Júnior fez grande lançamento de três dedos para Romano Galvani – outro reforço, que chegou emprestado pelo Bologna –, que dominou cortando Walter Zenga e abriu o placar. No segundo tempo, Sliskovic selou o marcador cobrando pênalti com a mesma tranquilidade com a qual fumava seus cigarros. Galeone comentou sobre o resultado: “Demos à Inter espaços que, se tivessem sido explorados, teriam resultado na nossa derrota”.
Aquela vitória representou uma oposição de estilos. O futebol empolgante de Galeone triunfou sobre Trapattoni, adepto de um estilo mais pragmático. Na rodada seguinte, o Pescara recebeu o Pisa no Adriatico e venceu por 2 a 1. Os autores dos gols foram Júnior, cobrando falta, e Gasperini, de pênalti. Quem não assistiu ao jogo foi o próprio treinador, pois ao saber que sua esposa tinha sofrido um acidente de carro, foi correndo para o hospital.
A primeira derrota veio na terceira rodada, diante da Juventus, fora de casa (3 a 1). A Velha Senhora tinha Ian Rush no ataque, contratação que custou à Velha Senhora o equivalente a dois anos de vendas do Pescara. A defesa dos golfinhos mostrou fragilidades, mas o time conseguiu se recuperar na rodada seguinte ao bater o Cesena, dentro de casa, pelo placar mínimo. Antes do duelo, Galeone tinha profetizado: “Se vencermos, podemos dizer, com 90% de certeza, que ficamos na Serie A”.
As sete rodadas seguintes reservaram emoções longe de serem agradáveis. Foram três sonoras goleadas sofridas, para Napoli (6 a 0), Fiorentina (4 a 0) e Roma (5 a 1). Nada que abalasse as convicções de Galeone. “Vamos jogar da mesma forma, até porque não sabemos jogar diferente”, disse ele. No segundo turno, destaque para a vitória dentro de casa por 2 a 0 sobre a Juventus, com gols de Júnior e Pagano.
Este capítulo maiúsculo escrito contra a equipe do treinador Rino Marchesi foi uma obra-prima tática de Galeone. O Pescara foi capaz de neutralizar as ações ofensivas dos bianconeri e de explorar os dribles e a capacidade individual de Pagano, um tormento pelo flanco direito. Os golfinhos jogavam um futebol livre, romântico – improvável e revolucionário para o porte do time. Era um momento especial não só para o clube, mas para a cidade, que pulsava.
Uma das maiores forças do Pescara foi o lado direito, com Zanone, Berlinghieri e Pagano. Muitos contra-ataques nasciam com os três por ali. Era um time com atletas inteligentes, capazes de assimilar rápido as nuances das partidas. Gasperini, Andrea Camplone, Cristiano Bergodi, Júnior e até Sliskovic eram extensões de seu treinador em campo, com autonomia e compreensão do que deveria ser executado.
O time concluiu a Serie A na 14ª posição, com oito vitórias, oito empates e 14 derrotas, e escapou por pouco da degola, em uma disputa que foi acirrada. Empoli (20 pontos) e Avellino (23 pontos) caíram; o Pescara era o primeiro fora da zona maldita e tinha a mesma pontuação (24) que Pisa e Ascoli. Os biancazzurri se salvaram porque o Empoli iniciou o campeonato com uma punição de cinco pontos devido a um ilícito esportivo.
Do céu ao inferno
O mercado de transferências tinha uma novidade: agora era possível inscrever um terceiro atleta estrangeiro no elenco. A grande perda sofrida pelo Pescara foi a saída de Sliskovic, que voltou ao futebol francês para defender o Lens. O meio-campista tinha rompido os ligamentos do joelho esquerdo em abril, na 25ª rodada da Serie A, e o clube abruzês não quis arcar com a cirurgia e a reabilitação do atleta.
Scibilia, então, fechou com seus principais alvos, uma dupla brasileira. O meia Tita, que tinha acabado de conquistar a Copa Uefa pelo Bayer Leverkusen, e o centroavante Edmar, do Corinthians.
O início de um novo ano na primeira divisão deu o tom da dificuldade que era para uma equipe de menor porte se manter nela. O Pescara estreou em casa contra a Roma, com um empate em que a rede não balançou. Nas duas rodadas seguintes, derrotas marcantes: 3 a 1 para o Milan, no Adriatico, e incríveis 8 a 2 para o Napoli, fora de casa, com um recital de Maradona.
O primeiro sorriso veio só na quinta rodada, quando os golfinhos venceram o Ascoli fora de casa (1 a 0, gol de Berlinghieri). Apesar das dificuldades, o Pescara fechou o primeiro turno vivo na briga pela salvação, ficando na metade da tabela. No returno, entretanto, as coisas mudaram, e muito, para pior.
O começo foi empolgante, é verdade. Vitória sobre a Roma por 3 a 1 no Olímpico com uma tripletta de Tita. Dali em diante, o time entrou em colapso e não obteve mais uma vitória sequer até o final – foram oito derrotas e cinco empates, o que levou o Pescara a despencar vertiginosamente na tabela. Com 27 pontos somados, dois abaixo da pontuação necessária para evitar a queda, o clube dos Abruzos estava de volta à segunda divisão. Poucos jogadores se salvaram; Júnior, um deles, foi eleito o melhor estrangeiro do campeonato, mas optou por retornar ao Brasil para jogar novamente pelo Flamengo.
O 0 a 0 fora de casa contra o Pisa pela última rodada impediu que os delfini reclamassem de “biscotto” (um jogo de compadres) entre Ascoli e Lazio: as equipes garantiram a salvação mútua através de empate. Galeone, então, deixou o cargo. Livre no mercado, chegou a ser procurado pelo Napoli, que acabou fechando com Alberto Bigon.
O Profeta acabou indo treinar o Como, mas teve apenas uma breve passagem pela Lombrdia. Durante aquele período, também conversou com Silvio Berlusconi, presidente do Milan, na vez em que se hospedou no mesmo hotel que os rossoneri, que tinham acabado de conquistar o bicampeonato europeu em Viena – 1 a 0 em cima do Benfica, gol de Frank Rijkaard. “Eram três da manhã, ele [Silvio] estava falando com [Daniele] Massaro. Quando ele me viu disse a [Arrigo] Sacchi, que estava ao meu lado: ‘Você não se importa se eu falar um pouco com o senhor Galeone, não é?’. Conversamos sobre futebol até às cinco da manhã. Então ele me disse: ‘Galeone, me liga. Tenho grandes planos para você’. Eu nunca fiz isso”, contou certa vez.
O regresso do ídolo
Em Pescara, as coisas iam mal e o time vivia um momento de grande instabilidade. Ilario Castagner e, logo depois, Edoardo Reja fracassaram no banco de reservas dos golfinhos. Carlo Mazzone, símbolo do Ascoli durante um bom tempo, durou apenas 12 rodadas, sendo a última uma derrota em casa para o Ancona, por 2 a 1. Com 10 pontos somados e o sinal de alerta vermelho ligado, os biancazzurri pediram pelo retorno de Galeone, que aceitou.
De volta, Galeone encontrou um elenco modificado em relação ao que ele teve em mãos tempos antes. Foi apresentado a Massimiliano Allegri, franzino e talentoso mezzala. Começava uma sinergia perfeita entre os dois, que dividiam a paixão pelo alto-mar e velejavam juntos. Entre as predileções (ou vícios, chame como quiser) diferenças: o técnico ficava com o cigarro e o meio-campista se dedicava aos cavalos.
A salvação foi emocionante e garantida matematicamente somente na última rodada, com um sabor para lá de especial. O adversário, a Triestina, foi quem “rebaixou” o Pescara cinco anos antes, em 1986, ao vencê-los por 2 a 1 na partida derradeira. Com a sua velha e boa leitura tática, e a forte intuição para tomar as melhores decisões, o Profeta mostrou toda a sua competência.
Uma recuperação fantástica que garantiu o vice-campeonato ao Pescara, em 1992, ano em que o Brescia foi campeão. A campanha refletiu bem a filosofia ofensiva para a época: os golfinhos tiveram o melhor ataque da competição, com 58 gols marcados, mas a segunda pior defesa, com 43 sofridos, na frente apenas do lanterna Avellino. A torcida biancazzurra, embevecida, reagiu com muita empolgação em meio a um momento conturbado no país – em fevereiro daquele ano, explodiu um dos maiores episódios de corrupção na política italiana, a operação Mãos Limpas.
A janela de transferência foi agitada. Michele Gelsi, Camplone e Pagano, importantes peças no time titular, não tiveram os contratos renovados e se transferiram para o Perugia. Chegavam o atacante Stefano Borgonovo e uma leva de jogadores estrangeiros, todos acima dos 30 anos.
Eram eles, o lateral-direito John Sivebaek, (integrante da Dinamáquina campeã da Euro de 1992), o zagueiro senegalês Roger Mendy, revelado por Arsène Wenger no Monaco, e o velho amigo de Galeone, Sliskovic, que retornava a Pescara para dar prosseguimento a uma ótima relação extracampo com o técnico: a camaradagem entre os dois envolvia intermináveis jogos de cartas, cigarros e vinho. O brasileiro Dunga chegou pouco tempo depois, após entrar em litígio com a direção da Fiorentina e deixar a Viola.
Uma trajetória que começou de forma animadora, com uma vitória sobre a Roma fora de casa (1 a 0, gol de Salvatore Nobile), acabou se mostrando irregular. A equipe padecia de um problema que durava desde a Serie B anterior: dominava as ações de determinadas partidas, mas acabava derrotada.
O Pescara amargou derrotas por placares dilatados, sendo a mais dolorosa de todas na segunda rodada, quando recebeu o Milan de Fabio Capello, invicto havia 36 jogos, no Adriatico. O épico 5 a 4 foi uma das partidas mais emocionantes da história da Serie A. Allegri abriu o placar para os donos da casa no primeiro minuto, mas Paolo Maldini e Gianluigi Lentini, com um golaço de voleio, colocaram o Milan na frente.
Os golfinhos virariam ainda na primeira etapa de maneira inusitada. Franco Baresi marcou dois gols contra, ambos em lances de pura infelicidade ao desviar finalizações de Nobile e Allegri. Frederic Massara anotou o dele e deixou os anfitriões em situação aparentemente mais confortável. Aparentemente, porque se tratava de um dos maiores times que o Milan já teve. Van Basten marcou duas vezes e igualou o marcador. Isso tudo aconteceu em 45 minutos, na única vez na história da competição em que um jogo foi para o intervalo empatado em 4 a 4.
Se na primeira metade saíram oito gols, no segundo tempo a rede balançou somente uma vez mais. Inspirado, Van Basten aproveitou a assistência do compatriota Rijkaard para dar um leve toque que encobriu o goleiro Marco Savorani e anotar a tripletta, dando números finais ao histórico confronto. As outras goleadas que o Pescara sofreu foram para a Inter (4 a 1, dentro de casa) e, fora de seus domínios, para Genoa (4 a 3), Udinese (5 a 2), Milan novamente (4 a 0) e Cagliari (4 a 0).
O Pescara se enveredava por um caminho cada vez tortuoso. Uma derrota em casa para o Genoa por 2 a 1, pela 24ª rodada, resultou na saída de Galeone. Em março, pouco tempo antes da demissão, o treinador recebeu uma ligação da parapsicóloga genovesa Miriam Lebel, que havia se tornado uma espécie de conselheira e transmissora de “energia positiva” para o elenco. Ela disse que alguns atletas biancazzurri estariam fazendo corpo mole, e indiciou a derrota na última rodada da Serie B para o Taranto (2 a 1), quando os golfinhos já tinham garantido o acesso.
Segundo a sensitiva, antes do confronto, alguns jogadores haviam recebido um pedido de uma pessoa apelidada de “a cobra” (il serpente): queria que eles não se empenhassem, o que foi confirmado pelo treinador. A gravação da conversa entre Lebel e o técnico foi recebida pelo jornal Il Centro, que divulgou a transcrição, o que fez com que o júri desportivo desse início a um inquérito. Segundo os investigadores, o réptil seria o diretor esportivo Pierpaolo Marino. O caso resultou em uma punição de seis meses para Galeone e mais três atletas por não terem feito uma denúncia, enquanto Marino levou gancho de três anos por fraude esportiva.
O Pescara, treinado agora por Vincenzo Zucchini, não evitou o descenso em uma triste campanha: o time foi o lanterna da Serie A, com 17 pontos, 13 a menos do que a Udinese, primeira equipe fora da zona de rebaixamento. Allegri, com 12 gols anotados, se tornou o maior artilheiro dos delfini em uma edição da primeira divisão.
Uma significativa mudança nas regras do futebol entrou em vigor no princípio daquela temporada. Até então, era permitido que os jogadores de linha recuassem a bola para o goleiro e este poderia agarrá-la com as mãos. A nova regra proibiu que este tipo de movimento fosse aceito quando a bola fosse recuada com os pés. O impacto foi profundo e imediato, e a Serie A teve 160 gols a mais marcados em comparação à edição do ano anterior. Galeone teria de adaptar o seu jogo de zona à novidade.
Últimos passos
Em 1994, Galeone fechou com a Udinese, substituiu Adriano Fedele e adicionou mais uma promoção ao seu currículo, conduzindo os friulanos de volta à Serie A. No ano seguinte, mais um acesso alcançado, desta vez no Perugia – pela quarta vez, o Profeta levava um time à elite nacional. Atritos com Luciano Gaucci, mandatário do clube, resultaram na sua saída, deixando os grifoni no meio da tabela, em dezembro de 1996.
Seu trabalho seguinte foi no Napoli, ao herdar a vaga de Mazzone. A passagem durou pouco e ele deu lugar a Vincenzo Montefusco; os partenopei acabaram rebaixados para a Serie B depois de ficarem com o 18º lugar na classificação, em 1998. Entre altos e baixos, Galeone regressou ao Pescara pela última vez e reencontrou Allegri. Deixou o cargo em 2001, com uma 13ª colocação na Serie B.
Após duas temporadas sabáticas, aceitou o convite do Ancona, clube de cidade próxima a Pescara, ainda que as possibilidades de evitar a queda fossem pequenas. No elenco, o brasileiro Jardel estava em condições físicas longe do ideal e o macedônio Goran Pandev ainda dava seus primeiros passos no futebol da Velha Bota. O time teve o rebaixamento confirmado em abril e uma série de inadimplências financeiras levaram o presidente Ermanno Pieroni a renunciar ao cargo; posteriormente, ele foi preso por fraude agravada. Os dorici declararam falência e tiveram de recomeçar jogando a C2.
A última oportunidade que Galeone teve à frente de um clube da primeira divisão foi na velha conhecida Udinese, que o contratou na reta final da Serie A 2005-06. O técnico permaneceu para a temporada seguinte, mas a sua passagem pelo Friuli foi curta: durou até a 19ª rodada do campeonato seguinte, quando foi encerrada numa derrota por 2 a 0 para o Palermo. O mau relacionamento com o presidente Giampaolo Pozzo pesou na decisão.
Giovanni Galeone, que ainda voltou para Pescara e foi consultor técnico do clube, se aposentou oficialmente do futebol em agosto de 2008. Cinco anos depois, até foi convidado para ser treinador dos golfinhos mais uma vez na vida, mas optou por declinar o convite. Afinal, sua missão estava cumprida e seus alunos (Allegri, Gasperini e Marco Giampaolo) já transmitiam o seu legado na elite italiana. Intenso, polêmico e exagerado, foi muito mais do que um mero treinador. Para ele, o futebol é, e sempre será, sinônimo de sorrisos e imaginação, e um elemento capaz de atribuir sentindo à existência humana.
Giovanni Galeone
Nascimento: 25 de janeiro de 1941, em Napoli, Itália
Posição: meio-campista
Clubes como jogador: Ponziana (1957-58), Monza (1958-59), Arezzo (1959-60), Avellino (1960-61), Vis Pesaro (1962-63), Nuorese (1963-64), Virtus Entella (1964-65), Monfalcone (1965-66) e Udinese (1966-74)
Clubes como treinador: Pordenone (1975-76), Adriese (1976-77), Cremonese (1977-78), Sangiovannese (1979-80), Grosseto (1980-81), Spal (1983-84 e 1984-86), Pescara (1986-89, 1990-93, 1999-2000 e 2000-01), Como (1989-90), Udinese (1994-95 e 2006-07), Perugia (1995-96), Napoli (1997-98) e Ancona (2004)
Título como treinador: Serie B (1987)
Graças a vocês fiquei sabendo mais sobre o Pescara Calcio e essa grande figura que foi Galeone, confesso que me encantei ainda mais pelos golfinhos do Abruzzo.
P.S.: Pretendem fazer um artigo do Enrico Catuzzi? Dizem que ele também foi um treinador que encantava a torcida pelo jeito que o time jogava, ele também treinou o Pescara.