Jogos históricos Copa do Mundo Seleção italiana

Num dos jogos mais polêmicos de todas as Copas, a Itália caiu ante a Coreia do Sul, em 2002

Se você quiser provocar angústia ou raiva em um italiano, existem maneiras tão eficientes quanto colocar ketchup na pizza ou fazer combinações pouco ortodoxas com receitas típicas da Velha Bota. Uma dessas formas é mencionar a Coreia.

Em 1966, a Itália protagonizou o seu maior vexame em Copas do Mundo ao ser eliminada pela Coreia do Norte. Quase 36 anos depois, em 2002, foi a vez de os sul-coreanos levarem a melhor sobre os azzurri. Em tempos em que o VAR estava longe de ser realidade, os italianos sofreram bastante na mão do árbitro equatoriano Byron Moreno e, mesmo com uma de suas melhores gerações, com vários jogadores no auge de suas carreiras, acabaram perdendo para os Tigres da Ásia. Poucas derrotas machucaram tanto a Nazionale quanto o 2 a 1 para os comandados de Guus Hiddink, nas oitavas do Mundial, disputado na Coreia do Sul e no Japão.

Em Daejeon, os donos da casa entraram em campo num 3-4-3 com bastante amplitude, focado no intenso ritmo de jogo, e com um zagueiro na sobra para se proteger da primeira bola de Christian Vieri e da sagacidade de Alessandro Del Piero. Já a Itália foi escalada por Giovanni Trapattoni num pragmático 3-4-1-2 que se transformava, por vezes, num 4-3-1-2. Francesco Totti atuava atrás da dupla de ataque e o resto do time mantinha uma alta disciplina tática e defensiva. No papel.

Na prática, não foi o que aconteceu. A Itália já vinha mostrando sinais perigosos na fase de grupos, quando sofreu uma derrota para a Croácia e arrancou um penoso empate com o México. A Nazionale se classificou com apenas 4 pontos, graças a uma vitória na primeira rodada sobre o Equador – país natal do maior protagonista das oitavas de final, de quem falaremos já já.

Logo no início da partida, os anfitriões mostraram o seu grande poder: uma torcida completamente ensandecida, que não faltava com respeito nem vaiava o hino italiano, mas que cantava a plenos pulmões. Os autointitulados Diabos Vermelhos tinham uma organização tipicamente asiática, com tambores e vozes perfeitamente sincronizados. Os torcedores já haviam empurrado os Guerreiros de Taegeuk nos jogos do complicado Grupo D, que os sul-coreanos lideraram invictos, graças a vitórias sobre Polônia e Portugal e um empate contra os Estados Unidos.

Vieri começa a partida com gol e pedindo silêncio à barulhenta torcida asiática (Bongarts/Getty)

Com essa força, os mandantes pressionaram. Aos 4 minutos de jogo, o árbitro Byron Moreno mostrou cartão amarelo para Francesco Coco em uma falta dura, mas normal de jogo. No cruzamento derivado da cobrança desta falta, um pênalti verdadeiramente fantasma foi marcado para os sul-coreanos – infração que, provavelmente, nem o próprio juiz saberia dizer quem cometeu e quem sofreu. Para a sorte dos italianos, Gianluigi Buffon fez uma belíssima defesa na penalidade cobrada por Ahn Jung-hwan e manteve sua meta inviolada, jogando um balde de água fria no time da casa.

Aos 18 minutos, em um escanteio, Totti cruzou e Vieri, sendo agarrado e com a camisa quase rasgada, se desmarcou em direção ao primeiro poste e conseguiu cabecear no ângulo do goleiro Lee Woon-jae, abrindo o placar para os então vice-campeões europeus. Depois deste lance, o futebol italiano mudou completamente: já não era bem jogado, mas se tornou basicamente uma infinita repetição de recuperação da posse de bola e um rápido lançamento procurando Vieri, que dominava ou dava uma “casquinha” na pelota, em busca de seus dois companheiros de ataque.

Trapattoni sempre foi conhecido por ter uma feroz aversão ao risco. Em 2002, mostrou isso desde a convocação: não levou Roberto Baggio para a Copa mesmo que o craque tenha se recuperado em tempo recorde de uma lesão no joelho. Essa rejeição também permeava o seu estilo de jogo, no qual bolas longas, disciplina tática e contra-ataque eram as palavras-chave. “Futebol bonito é passageiro, resultados são para sempre”, dizia.

Só que o time não tinha o vigor defensivo de antes. Alguns jogadores chegaram ao Mundial sem a forma ideal e, na prática, a execução dos conceitos defendidos pelo treinador apresentava várias falhas. Não existia um jogo coletivo eficiente para avançar com a bola no chão, mesmo de forma cautelosa; apenas a ligação direta entre a defesa e Vieri, ao passo que a compactação defensiva era inferior ao necessário. Dessa forma, o time de Guus Hiddink achou espaços entre as linhas praticamente por todo o jogo, embora não tenha criado quase nenhuma chance de verdadeiro perigo.

Quando a Itália conseguia finalmente chegar no campo ofensivo, a pressão alta feita pelos sul-coreanos era eficiente para tomar a bola dos italianos com certa facilidade. Os azzurri tinham uma progressão lentíssima e algumas vezes, inexistente: todo avanço que criava chances de gol, vinha, necessariamente, do talento individual de Totti e de Del Piero. Eles tinham que driblar marcadores e não encontravam nem ao menos alguém para tabelarem: eram simplesmente corridas sem apoio para que um escanteio ou algo do tipo fosse criado. Com a eficácia dos asiáticos na sobra, era raríssimo que a Nazionale obtivesse a bola depois de lançamentos para Vieri.

Totti foi o alvo preferencial dos sul-coreanos durante as oitavas de final (imago)

Aos 28 minutos, a Itália tinha apenas 42% de posse de bola e o jogo foi se tornando mais ríspido, dado o embate entre a velocidade sul-coreana e a reatividade italiana, que gerou várias infrações. Aos 12 do segundo, já eram 25 faltas na partida (foram 50 ao final do jogo) e três cartões amarelos distribuídos – tivemos oito, no total.

Aos 15 do segundo tempo, Trap decidiu sacar Del Piero, que vinha jogando muito bem, e colocar Gennaro Gattuso para oferecer maior sustentação no meio-campo e segurar os sul-coreanos. Dois minutos depois, Hiddink agradeceu o presente, ao tirar o zagueiro Kim Tae-Young e colocar o atacante Hwang Sun-Hong – e, na sequência, ainda substituiu o meia Kim Nam-il pelo ponta Cha Du-ri.

A lógica era simples: com menos um jogador ofensivo na Itália, a Coreia do Sul poderia tirar seu zagueiro de sobra e continuar em grande vantagem em seu campo. O volante Yoo Sang-chul foi improvisado como defensor e os tigres passaram a um 3-4-3 ultraofensivo, com cinco atacantes de origem. Essas modificações praticamente reviveram os anfitriões, que já não jogavam com tanta intensidade.

Mesmo não criando chances reais de gol, a Coreia do Sul continuava atacando e a Itália ficava apenas rebatendo bolas e dando chutões, buscando o já cansado Vieri – que perdeu uma chance clara de gol aos 28 do segundo tempo. O sinal era claro para colocar Filippo Inzaghi, Vincenzo Montella ou Marco Delvecchio, mas o treinador milanês era totalmente fiel em suas escolhas. Pouco antes, Hwang deu uma entrada criminosa em Gianluca Zambrotta, que teve de dar espaço a Angelo Di Livio. Byron Moreno não deu nem amarelo.

Totti, aos 33 da etapa complementar, ainda conseguiu uma ótima ação ofensiva, mas preferiu cavar um contato na entrada da área em vez de chutar e o árbitro não marcou uma falta claríssima. Aos 38, a Coreia do Sul tinha cinco atacantes em campo, enquanto a Itália tinha dois: um exausto e o outro responsável por carregar a bola e fazer literalmente tudo no ataque, sozinho.

Impossível não fazer cara feia: italianos reclamaram demais das decisões de Byron Moreno (imago/Ulmer)

Toda a emoção que faltou durante o jogo começou a acontecer nos cinco minutos finais. Aos 43, a bola puniu o jogo covarde e muito reativo da Itália e, em uma fácil bola cruzada, Christian Panucci se enrolou todo. O defensor se desequilibrou, de maneira bem ridícula, e a sobra ficou com Seol Ki-hyeon, que não desperdiçou e empatou a partida.

No minuto seguinte, sem fôlego algum, Vieri perdeu um gol sem goleiro, numa chance que nenhum centroavante em Copa do Mundo deveria desperdiçar. A Coreia do Sul ainda teve duas boas chances de virar o jogo, até o juiz empatar e a prorrogação começar. No tempo extra, Hiddink fez o impensável e continuou atacando a cambaleante Itália, que seguiu sem modificações e jogava da mesma maneira, mesmo tendo que lidar com os cinco atacantes dos rivais.

No tempo extra, as grandes polêmicas começaram a se formar. Até então, o juiz equatoriano Byron Moreno já se mostrava incompetente para apitar um jogo eliminatório de Mundial, uma vez que não tinha critério algum para a marcação de faltas ou a aplicação de cartões amarelos. Totti parecia perseguido pelo árbitro durante todo o jogo, já que vários choques ou entradas que sofreu não foram assinalados por Moreno – por outro lado, lances semelhantes, até mesmo em jogadores italianos, foram considerados faltosos.

Amarelado desde os 22 minutos, depois que atingiu um adversário com o cotovelo ao saltar para disputar uma bola aérea, o romano nem reclamava da arbitragem. Contudo, aos 13 do primeiro tempo da prorrogação, Totti sofreu um claro contato dentro da área sul-coreana e pediu pênalti. O lance dividiu opiniões, já que muitos comentaristas não consideraram o lance faltoso. Mas havia um consenso: o choque, indiscutivelmente, aconteceu e o jogador não poderia continuar em pé por razões óbvias. Mesmo assim, o trequartista recebeu o segundo amarelo por simulação e foi expulso da partida por Moreno.

Trapattoni, que já estava nervosíssimo e passou o jogo inteiro chutando garrafas d’água e em plena agitação na área técnica, socou o vidro do banco de reservas neste momento. O treinador se dirigia ao comissário da Fifa, completamente indignado pela expulsão de seu camisa 10.

Buffon lamenta: a Itália caiu para a Coreia do Sul no gol de ouro (AFP/Getty)

No momento da troca de campo, os narradores já falavam de disputa de pênaltis, dado o cansaço do time sul-coreano. Mas, aos 5 minutos do derradeiro tempo extra, Damiano Tommasi recebeu de Vieri, driblou o goleiro Lee e marcou o que seria o gol de ouro – que, na época, encerrava as prorrogações. Porém, o auxiliar Jorge Rattalino marcou um impedimento absolutamente inexistente.

No minuto seguinte, Gattuso perdeu um gol incrível cara a cara com o goleiro, e aos 11, veio o golpe terminal. Após cruzamento vindo da esquerda, Ahn conseguiu algo improvável – subiu mais do que o capitão Paolo Maldini – e cabeceou de forma fatal, como manda o figurino. Buffon nada pode fazer. Assim como a final da Euro 2000, o sonho do tetra acabou da mesma forma: com um gol de ouro nos minutos finais da prorrogação.

Gianni Mura, em artigo para o jornal La Repubblica, definiu a jornada italiana no oriente como “andar de carro com vidro aberto em uma zona perigosa, exibindo um Rolex no braço para fora da janela”. Byron Moreno cometeu erros crassos que, infelizmente, serviram muito bem para esconder os profundos erros e omissões da comissão técnica e da Federação.

Os desdobramentos desse jogo foram vários. Ahn, marcador do gol de ouro e reserva do Perugia, na época na Serie A, teve seu contrato de empréstimo rompido antes da hora. O excêntrico presidente Luciano Gaucci se ofendeu com a comemoração do jogador e, além de ter encerrado o vínculo de forma abrupta, deu duras declarações à imprensa. “Ele tinha de ter mostrado o talento dele enquanto estava conosco. Não vou estender o contrato dele, pois ele não merece. Quando ele chegou, parecia uma cabra, pequena e perdida, que não tinha dinheiro para comprar um sanduíche. Ele ficou rico sem fazer nada de excepcional e então, na Copa, desonrou o futebol italiano”, disparou o cartola.

Teorias conspiratórias do tipo “se as pessoas soubessem o que aconteceu, ficariam enojadas…” foram altamente difundidas, no mesmo estilo das feitas após a final da Copa de 1998. Supostos esquemas de suborno envolvendo a Fifa, principalmente depois do padrão existente – nas partidas contra Portugal e Espanha, a Coreia do Sul também se beneficiou de grandes erros da arbitragem – inundaram a internet na Itália e no mundo. Totti e Trapattoni também alegaram que existia um complô para retirar a Itália da competição.

Persona non grata: após arbitragem desastrosa, Moreno se tornou uma figura odiada pelos italianos (Getty)

E Byron Moreno? Bom, teve uma história bastante insólita para um ex-árbitro de Mundial. Poucos meses depois, enquanto era candidato a vereador em Quito, foi suspenso por vinte partidas, por causa de um jogo entre Barcelona de Guayaquil e LDU. Estava 3 a 2 para os toreros e Moreno deu seis minutos de acréscimo, mas acabou deixando a partida rolar por 13 minutos além dos 45. A Liga de Quito empatou aos 53 e virou o jogo aos 55.

Em março do ano seguinte, três partidas após sua suspensão, na partida entre Deportivo Cuenca e Deportivo Quito, Moreno expulsou três jogadores do time visitante, o que o levou a receber mais um gancho de uma partida. No mês seguinte, desistiu de apitar mais uma partida de futebol. Sete anos depois, foi preso com seis quilos de heroína escondidos em suas roupas íntimas no aeroporto John F. Kennedy, em Nova York. Passou dois anos detido nos Estados Unidos e retornou ao Equador.

Num momento em que vivemos a volta do Show do Esporte na Rede Bandeirantes e do Campeonato Italiano na TV aberta, é interessante pensarmos em quanto o futebol mudou nos últimos anos e como partidas como essa de 18 de junho de 2002 jamais se repetirão. Não irá existir outro Byron Moreno, pois o futebol mudou de tal forma que hoje, com o VAR e a goal-line technology, por exemplo, é possível corrigir o erro humano. E, também, reduzir as possibilidades de ilícitos envolvendo a arbitragem em grandes torneios.

Ao mesmo tempo, continuarão a existir teorias conspiratórias para serem compartilhadas de forma jocosa, lembranças amargas de derrotas injustas e todo um conjunto de sensações e palpites que são indissociáveis do esporte. Idiossincrasias à parte, o futebol se adapta e se revoluciona, mas seguirá o mesmo em sua essência: com zebras, surpresas e emoções até o último lance.

Coreia do Sul 2-1 Itália – Oitavas de final da Copa do Mundo de 2002

Coreia do Sul: Lee Woon-jae; Kim Tae-young (Hwang Sun-hong), Choi Jin-cheul, Hong Myung-bo (Cha Du-ri); Song Chong-gug, Kim Nam-il (Lee Chun-soo), Yoo Sang-chul, Lee Young-pyo; Park Ji-sung, Ahn Jung-hwan, Seol Ki-hyeon. Técnico: Guus Hiddink.
Itália: Buffon; Panucci, Iuliano, Maldini; Zambrotta (Di Livio), Zanetti, Tommasi, Coco; Totti; Del Piero (Gattuso), Vieri. Técnico: Giovanni Trapattoni.
Local e data: Daejeon World Cup Stadium, em Daejeon (Coreia do Sul), 18 de junho de 2002.
Gols: Seol (88’) e Ahn (117’); Vieri (18’).
Cartões amarelos: Kim Tae-young, Song Chong-gug, Lee Chun-soo e Choi Jin-cheul; Coco, Totti, Tommasi e Zanetti.
Cartões vermelhos: Totti (103’).
Árbitro: Byron Moreno (Equador).

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3 comentários

  • Copa de 2002 foi a Copa da péssimas arbitragens. E não foi só Coreia que se beneficiou dessas péssimas arbitragens. Alemanha, contra os EUA, contou com uma bela ajuda do apito. E ninguém se lembra, ou finge não se lembrar, mas Brasil também foi beneficiado pelo apito. Tanto na estreia contra a Turquia, com a falta fora da área que virou pênalti e com a simulação bizarra de agressão do Rivaldo que resultou na expulsão de um jogador turco, como nas oitavas, contra a Bélgica, que a seleção belga teve um gol absolutamente legal que foi anulado.

    Mas o que fizeram com Itália e Espanha nessa Copa foram dois crimes. Tudo bem que a Copa de 2002 da Itália não foi boa, mas independentemente disso, foi um crime.

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