A sirene de uma ambulância só é eficiente porque vem acompanhada de um estresse acústico considerável. Mas o barulho não fica limitado ao asfalto. Cada um daqueles decibéis pode chegar a mais de 1 quilômetro de distância, dependendo da característica de um bairro. Eles geram ansiedade, taquicardia e nervosismo. Talvez até um pouco de tensão muscular ou dispneia, a depender da sensibilidade do ouvinte. Tudo isso por um bem maior: fazer com que os motoristas saiam da frente e permitam que o doente seja atendido o quanto antes.
Num cenário como a Itália de março de 2020, mergulhada em sua maior emergência desde a Segunda Guerra Mundial por causa do surto da covid-19, a sirene de uma ambulância tem um papel quase lírico. O ruído que corta as ruas desertas de uma cidade do tamanho de Milão serve menos para abrir passagem entre os carros do que para lembrar cada morador, centenas de vezes ao dia, que ele vive em uma região de luto perene, incapaz de cremar tantos mortos quanto seria necessário.
(Nota rápida para o leitor: enquanto o último parágrafo era escrito, mais duas ambulâncias passaram pelo Viale Marche, uma das principais avenidas do norte de Milão.)
Diante da ruína de moral causada pelos números divulgados diariamente pelo governo italiano — uma morte a cada 2 minutos e 17 segundos, segundo o balanço mais recente — e pela certeza de que cada nova sirene se tornará mais um número nas planilhas oficiais, só há uma fuga possível: refugiar-se na perspectiva de poder sair de casa outra vez com alguma liberdade.
A primavera começou nesta sexta-feira, 20 de março, e os termômetros de Milão ultrapassaram os 20°C pela primeira vez no ano. É sensivelmente mais difícil aceitar a ideia de ficar em casa com tanto sol lá fora. Segundo o decreto em vigor na Itália, a quarentena vai até 3 de abril. Depois disso, a vida poderá voltar ao normal?
Não, não poderá.
Qualquer projeção sensata feita com base nos dados divulgados pelo governo italiano durante a semana indica que será impossível conter o vírus até 3 de abril. O ritmo de crescimento dos casos positivos no país aumentou 166% em uma semana. Os números já são gigantescos, mas especialistas acreditam que sejam ainda maiores.
(Mais uma nota rápida para o leitor: enquanto este texto era revisado, o governo italiano admitiu pela primeira vez que o pico de contágios deve ocorrer, justamente, daqui a duas semanas. Em 3 de abril.)
Porém, usar os números de forma crua, como se a Itália fosse uma só, não representa a realidade. Desde o início do surto italiano, em 21 de fevereiro, o caos está concentrado no norte do país — dois terços dos casos positivos na Itália ficam na Lombardia, no Vêneto e na Emília-Romanha. O que tornará impossível fazer o país voltar ao normal tão rapidamente é a constatação de que, nas últimas duas semanas, o vírus começou a “caminhar”, como mostra o gráfico abaixo:
Quatro semanas atrás, o Sul e as ilhas italianas registravam 13 testes positivos para o novo coronavírus. O número saltou para 2.789 após 28 dias. A Sardenha, por exemplo, não tinha nenhum caso. Nesta sexta-feira, enterra seus dois primeiros moradores.
Parte da responsabilidade do crescimento no Sul e no Centro da Itália é do governo italiano, que certamente demorou a agir. A maior culpa, porém, é da postura insensata e egoísta de milhares de cidadãos que lotaram trens, aviões e estradas em disparada para o Sul quando a quarentena foi anunciada — 15% deles já desembarcaram com febre, segundo o governo da Apúlia. E continuaram uma vida normal, como se estivessem de férias.
Ali, a batalha será ainda mais dura do que no Norte, devido à falta de leitos de terapia intensiva. O Molise, região menos populosa do Sul, até poderia comemorar ter apenas seis pacientes internados em UTI nesta sexta-feira, por causa do coronavírus. O problema é que eles já representam 20% dos leitos da região. Na Úmbria, os 24 internados ocupam 35% das UTIs. E é importante lembrar que: 1) outras doenças continuam existindo durante o surto da covid-19; 2) a curva de crescimento no Sul ainda está no início.
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O estudo confiável mais recente publicado da China mostrou que o tempo médio de incubação deste novo coronavírus é de sete dias, não de cinco, como se previa. E o isolamento necessário é de 18 a 21 dias para evitar a sua propagação. Arriscar projetar quando a Itália vai voltar ao normal não é nada além de wishful thinking. Futebol, então… Chega a abismar que alguns clubes estejam pensando em retomar os treinamentos.
Até o dia em que o país chegar ao pico dos contágios, a solução ainda será a atual. Fazer uma contagem regressiva sem saber quando se quer chegar.
Tu é muito foda. Obrigada por compartilhar.