Diversos fatores culminam no rebaixamento de uma equipe. Má gestão, problemas nos bastidores, escolhas equivocadas, mudanças de técnicos, elenco fraco: nunca existe apenas um motivo que condene determinado clube à segunda divisão de um campeonato. No caso da Fiorentina da temporada 1992-93, seria possível uma camisa ter tido participação na derrocada do time? Há quem defenda esta teoria, digamos… sobrenatural.
Seja uma das “culpadas” seja apenas o retrato do caos em Florença naquela temporada, a camisa reserva da Viola entrou para os livros de história do futebol mundial. E por um motivo terrível. Entre alguns desenhos geométricos colocados pela Lotto, sua fabricante, na parte cima do uniforme, traços desordenados revelavam um sinal grotesco: suásticas, símbolos presentes em várias culturas, mas constantemente associados ao regime nazista, de Adolf Hitler, que perdurou na Alemanha entre 1933 e 1945. As suásticas, formadas discretamente (mas nem tanto), demoraram um pouco até serem percebidas por torcedores e jornalistas de Florença. A gente conta como toda essa história terminou.
A temporada de 1992-93
Em setembro de 1992, a Fiorentina deu início a sua caminhada na Serie A com um empate, por 1 a 1, em casa, contra o Genoa. Aquela era a terceira temporada da família Cecchi Gori na presidência do clube. Mario Cecchi Gori e seu filho, Vittorio, comandavam a organização desde 1990, após o escândalo envolvendo Roberto Baggio e a família Pontello. Em 1991, Gabriel Batistuta aterrissou em Florença e teve um início de jornada bem consistente. Imaginava-se que, em seu segundo ano, o atacante argentino fosse despontar ainda mais no futebol italiano.
Além de Batigol, novos reforços chegaram por intermédio de Vittorio, que àquela altura já tentava estabelecer certa independência do pai, Mario, o “poderoso chefão” da Fiorentina. Brian Laudrup, campeão europeu com a Dinamarca, e Stefan Effenberg, presente nas convocações da Alemanha, foram dois reforços de peso. Além da dupla, Francesco Baiano, destaque do Foggia, os defensores Daniele Carnasciali e Gianluca Luppi e o meio-campista Fabrizio Di Mauro foram outros nomes importantes que se juntaram ao time do então treinador Luigi Radice.
Após um modesto 12º lugar na Serie A da temporada anterior, a Fiorentina tinha motivos de sobra para almejar um desempenho melhor entre 1992 e 1993. E para vestir essa equipe que enchia sua torcida de otimismo, a Lotto, fornecedora de material esportivo italiana, apostou novamente em um design ousado, seguindo a tendência mundial com relação aos uniformes naquela época. A década de 1990 representou um marco na indústria do futebol, com a chegada de novos patrocinadores e, consequentemente, um impulso nas vendas dos mantos. Mudanças nas camisas, de uma temporada para outra, estavam se tornando cada vez mais frequentes entre clubes do mundo todo.
Aquela temporada de 1992-93 era a segunda da Lotto a cargo do fornecimento de uniformes para o clube de Florença. Com relação à primeira camisa, a ideia central foi mantida. Era possível observar vários desenhos do símbolo da Lotto espalhados pelo manto, que tinha um tom de roxo um pouco diferente do ano anterior. De novidade, o logo da Seven Up estampava o centro da camisa. A marca estadunidense de refrigerante chegava ao Campeonato Italiano naquele ano, justamente para patrocinar a Fiorentina. Já o uniforme reserva tinha algumas alterações relevantes.
A camisa polêmica
Sumiram as listras finas, presentes na versão anterior, e o desenho em roxo passou da parte de baixo da camisa para a região da gola, além de tampar completamente as mangas. A cor branca, naturalmente, foi mantida como predominante. A princípio, os traços em roxo formavam figuras de difícil compreensão. Eram nítidas as linhas em tom de roxo mais escuro (quase preto) e o preenchimento mais claro. Fora a extravagância do design, nada de mais importante chamava a atenção.
Vale lembrar que, nesta época, não haviam apresentações dos uniformes dos clubes. Torcedores e imprensa só conheciam os modelos das camisas, de fato, quando seus times iam a campo. E foi dessa forma que a Fiorentina atuou quatro vezes com este uniforme reserva antes que um atento leitor do jornal L’Unità, periódico do Partido Comunista Italiano, chamasse a atenção da redação para o detalhe perturbador.
Após a descoberta das suásticas, no fim de novembro de 1992, uma matéria no jornal destacava o símbolo inserido na camisa da Fiorentina. Não somente uma. Nem duas. Mas várias suásticas lamentavelmente se formavam a partir dos traços desenhados pela Lotto. As mais fáceis de serem percebidas estão bem ao lado dos símbolos da própria fornecedora e da Fiorentina. Claras como cristal. Para piorar, o ângulo em que estão desenhadas suscita ainda mais a comparação com a suástica nazista, que também era representada ligeiramente inclinada – ao contrário de outras culturas, onde o símbolo retratado de maneira “reta” não possui significados execráveis.
O jornal Corriere della Sera também se dedicou a escrever sobre a infelicidade na camiseta Viola: “Essas decorações têm algo sinistro: lembram suásticas. Na verdade são suásticas reais. Pequeno detalhe, talvez imperceptível ao olhar distraído, certamente imperceptível aos olhos distantes dos torcedores sentados nas arquibancadas”. E a publicação ainda traz uma hipótese: “Culpa de quem, então? Do computador, que montava os desenhos segundo um procedimento casual?”
De fato, a tecnologia foi considerada responsável pelo equívoco. Muitos acreditaram que o fato do design ter sido desenvolvido a partir de um programa informatizado impediu a constatação imediata da “gafe”. Num primeiro momento, a Fiorentina não deu muita atenção aos alertas vindos dos jornais e torcedores. Na verdade, o clube chegou a vestir o uniforme pela quinta e última vez em sua história, já sabendo da existência de toda a polêmica. Diante do Napoli, em 29 de novembro de 1992, a Viola sofreu uma derrota acachapante por 4 a 1. Não tinha como a história dessa camisa ser encerrada de outra maneira…
Após o jogo, o diretor esportivo Maurizio Casasco foi questionado a respeito da escolha do uniforme para o duelo, mas fez pouco caso: “Certas provocações não valem a pena comentar, não temos nada a dizer”. Jogando com a malha “nazista”, a Fiorentina jamais venceu. Empatou com Inter e Brescia, e perdeu para Roma, Cagliari e Napoli.
As respostas de Lotto e Fiorentina
Apesar da fala do diretor Casasco logo após a derrota para o Napoli, não demorou para que Fiorentina e Lotto viessem a público se manifestar. Em 1º de dezembro, ambas declararam, conjuntamente, que as suásticas na camisa foram uma infeliz coincidência, fruto de um “efeito ótico causado pela sobreposição de algumas linhas do complexo desenho geométrico”. De qualquer maneira, o bom senso – ainda que tardio – venceu, e a Viola decidiu não utilizar mais o uniforme em questão. Ele foi rapidamente substituído pela Lotto por um modelo bem mais simples. A nova camisa era toda branca, com detalhes discretos em roxo, situados tanto na gola quanto nas mangas.
Após sair de circulação das lojas, a camisa ainda foi publicamente achincalhada: alguns torcedores em Florença ainda fizeram questão de queimar os exemplares restantes do uniforme maldito. Seu rastro foi praticamente extinto e, em menos de uma semana, a polêmica já parecia ter sido esquecida na cidade. No entanto, toda a confusão certamente influenciou no rompimento da relação entre Fiorentina e Lotto ao final daquela temporada de 1992-93. Curiosamente, a fornecedora italiana também patrocinava o Maccabi Haifa, de Israel, e, em 1993-94, confeccionou para o clube hebreu um modelo similar ao da Viola – obviamente, já sem os grafismos que causaram todo o rebuliço na Itália.
Já Gigi Radice, então técnico da Fiorentina, afirmou, logo após a decisão conjunta entre Viola e Lotto, que ficou aliviado com a velocidade em que foi decidida a “aposentadoria” do uniforme controverso. Ele ainda disse que nem ele nem os jogadores haviam reparado nos detalhes da camisa, além de trazer um relato importante. Radice contou ter visto jovens fazendo a saudação fascista nas arquibancadas durante uma partida entre Fiorentina e Roma. O técnico ficou preocupado com a cena e afirmou que tais pessoas “nada sabiam do sofrimento dos italianos nesses anos terríveis e dolorosos [em que o regime fascista estava de pé]”.
De fato, durante a década de 1990, a Itália vivenciou uma crescente de movimentos neofascistas e neonazistas nas arquibancadas de futebol. Eram frequentes casos de racismo e antissemitismo, com objetos sendo arremessados em atletas negros e bandeiras de grupos minonitários sendo queimadas. Diante desse cenário, a suástica “acidental” na camisa da Fiorentina ganhou ainda mais importância, por acontecer em um momento delicado da história do país. O símbolo poderia ter passado batido, não fosse o crescimento dos movimentos totalitários. Felizmente, o equívoco foi notado, debatido e rapidamente contido, apesar dos óbvios danos causados pelo escândalo ao clube, à marca e, claro, às vítimas do holocausto.
Florença e o nazismo
Uma suástica presente no uniforme de uma equipe de futebol é, obviamente, algo abominável. Contudo, toda essa história se apresenta de maneira ainda mais negativa se levarmos em consideração o contexto histórico da cidade de Florença. Ela foi invadida pelas tropas alemãs durante a Segunda Guerra Mundial, após a queda do fascismo italiano. Em 1943, o exército de Hitler ocupou o local, saqueou suas riquezas e explorou os cidadãos. Posteriormente explodiu as pontes da cidade para evitar a chegada das tropas Aliadas. A única que resistiu aos bombardeios foi a Ponte Vecchio que, ainda assim, acabou avariada em seus arredores. Foram meses de pânico de toda a população nas mãos dos alemães.
Sem se entregar, a “resistência florentina”, representada pelos partisans, respondia os neofascistas através de atentados. O intuito era enfraquecer o poder militar do exército de Hitler, enquanto o povo aguardava a chegada dos Aliados. Algo que aconteceu somente em agosto de 1944, quando Florença, enfim, foi libertada – em parte pelo Exército Aliado, mas também pelo próprio povo, que resistiu ao inimigo durante todo o período de domínio alemão.
E essa história de resistência ao totalitarismo está eternizada no próprio Artemio Franchi, estádio da Fiorentina. Nele, há uma capela em homenagem aos Mártires do Campo de Marte. Tratam-se de cinco jovens assassinados em 22 de março de 1944, perto da Torre Maratona, que fica no estádio da Viola. Leandro Corona, Ottorino Quiti, Antonio Raddi, Adriano Santoni e Guido Targetti foram mortos pelo exército da República Social Italiana (RSI), suspeitos de pertencerem a gangues guerrilheiras. Eles têm seus nomes incluídos numa placa dentro do Artemio Franchi. Em 2008, todos receberam, postumamente, Medalhas de Ouro pelo Valor Civil, entregues por conta de seus atos de coragem durante o período totalitário na Itália.
Quando falamos em Florença, portanto, consideramos a existência de uma longa história de repulsa ao nazismo. Motivo pelo qual a torcida ficou ainda mais indignada quando se deparou com as suásticas no uniforme do próprio time. A Fiorentina é mais do que uma equipe de futebol para os cidadãos de Florença. Ela também representa a cidade; o chão em que os seus habitantes pisam. Por este fato, o deslize ou equívoco (chame como quiser) da Lotto parece ter amaldiçoado todo o restante da temporada do time. Mesmo com o uniforme já desmascarado.
Um fim melancólico
Ainda em dezembro, pouco depois da polêmica com o uniforme vir à tona, a Fiorentina empatou com o Parma, por 1 a 1, e alcançou a segunda colocação da Serie A. Já haviam se passado 13 rodadas do campeonato, e a impressão era de que o time teria um restante de temporada bastante estável. No entanto, no jogo seguinte, o primeiro de 1993, a Viola perdeu em casa para a Atalanta, e Vittorio Cecchi Gori decidiu surpreender a todos. Ele demitiu o técnico Gigi Radice ao vivo, em entrevista para a televisão, logo após a derrota, que classificou como “inaceitável”. Daí em diante, a Viola teria mais três técnicos até o fim da temporada. A receita do fracasso…
O time venceu apenas três dos 20 jogos restantes. Na rodada final, a goleada por 6 a 2 diante do Foggia de nada adiantou, já que Roma e Udinese empataram por 1 a 1. Com 30 pontos na tabela (mesmo número do Brescia e da própria Udinese), a Fiorentina acabou rebaixada nos critérios de desempate. Um castigo gigantesco para um elenco qualificado e que jamais estaria entre os cotados a cair no começo do torneio. Batistuta, Effenberg, Laudrup, Ciccio Baiano, Stefano Pioli, Giuseppe Iachini… todos esses amarguraram a queda em 1993. A equipe de Firenze não visitava a Serie B havia 54 anos. Justamente na temporada em que trajou o perverso uniforme nazista, acabou fadada a disputar a segunda divisão. Seria o carma da Viola?
Fato é que, depois da tragédia, a Fiorentina se reergueu. Grande parte do elenco permaneceu e ajudou o time a retornar à elite de forma imediata na temporada seguinte. Apesar das patacoadas, Vittorio Cecchi Gori permaneceu mandando e desmandando no clube – e ainda teve de lidar com a morte do pai em 1993. Já a Lotto se despediu de Florença deixando uma péssima impressão final naquele momento. A marca italiana deu lugar à alemã Uhlsport. Doze anos depois, em 2005, a Lotto retomou a parceria com a Viola para, aí sim, desenvolver um trabalho excelente (e marcante) na maioria dos designs. O casamento entre ambas durou até 2012.
No entanto, antes da calmaria, houve a tempestade…
Um verdadeiro furacão, ao final de 1992, que pôs em xeque os ideais de uma cidade num momento bastante delicado, em termos sociais, da história italiana. Foi uma piada de tanto mau gosto que, mesmo sem impactar diretamente no resultado em campo, simboliza – e remete – ao fracasso. Era impossível que uma camisa nazista sinalizasse bom agouro à equipe que lhe vestisse. Para sempre, ao pensarmos no uniforme das suásticas, automaticamente faremos a associação com o rebaixamento da Viola. Uma relação que a história julgou ser adequada. E acertou em cheio. Assim como o abominável regime de Hitler, na temporada de 1992-93, a Fiorentina não encontrou outro destino que não sucumbir.
No papel, era um bom time mas tinha perdido os brasileiros Dunga e Mazinho, nomes importantes da temporada anterior. Então trouxeram Francesco Baiano (que tinha formado um tridente avassalador com Beppe Signori e Roberto Rambaudi na Zemanlandia dos “satanelli”), Stefan Effenberg (estrela em ascensão no futebol alemão) e Brian Laudrup, o grande destaque da “Dinamáquina” campeã europeia em 1992 (seu irmão mais velho e mais famoso, ex-Juve, acabou ficando fora da competição por desavenças com o treinador). Além do remanescente e fantástico Gabriel Batistuta, o elenco contava com outras figurinhas carimbadas da época, como Stefano Pioli, Stefano Borgonovo, Alberto Malusci, Marco Branca, Massimo Orlando e Stefano Carobbi.
Não era elenco pra disputar título, já que Juventus, Inter, Milan, Sampdoria, Parma e Lazio eram mais fortes, porém também não era elenco pra ser rebaixado. Se terminasse entre a 6ª e 10ª colocações, estaria de bom tamanho. Mas o time começou a degringolar após a saída do Luigi Radice e acabou caindo.
Em uma liga de nível técnico altíssimo e bastante equilibrado entre os times, acidentes como esse são comuns.