Esquadrões

Pequenos milagres: um Ascoli mau como o pica-pau

Um dos times mais antigos da Itália, o Ascoli era praticamente uma equipe amadora até a década de 1960. Fundado em 1898, o clube do centro da Bota alcançou a Serie C depois da presidência do empresário cultural e filantropo Cino Del Duca, mas foi com outro cartola que atingiu seu ápice: Costantino Rozzi, que ficou no controle dos bianconeri de 1968 até 1994, ganhando a alcunha de “Presidentissimo”. Sem exageros, a história do Ascoli se confunde com a de seu folclórico dirigente.

Rozzi era engenheiro civil e foi o responsável pela construção do estádio dos marchegiani, o Cino e Lillo Del Duca – além de ter realizado as obras dos estádios de Lecce, Avellino, Benevento e Campobasso. Em 1968, foi exatamente das mãos da família Del Duca que o empresário comprou o Ascoli, primeiramente com a intenção de apenas ficar alguns meses, saneando as contas do clube, juntamente com outros empresários. Porém, ele acabou se apaixonando por futebol e levou os bianconeri a seus anos de ouro, que duraram cerca de duas décadas.

Tão logo chegou, Rozzi precisou enfrentar trocas no comando técnico da equipe. Por três vezes, então, o zagueiro Carlo Mazzone, com nove anos de casa, assumiu o posto de treinador – sem abandonar a defesa. A partir de 1970, Sor Carletto passou a construir uma nova história: de chuteiras penduradas, assumiu o time de forma definitiva e, com seu estilo sanguíneo, levou o Ascoli da Serie C para a Serie A em apenas três temporadas.

>>> Veja outros milagres: as façanhas de Foggia e Avellino na Serie A

Foi a primeira vez que um clube da região das Marcas (ou Marche, em italiano) chegou à primeira divisão e, por isso, o Ascoli recebeu o apelido de “Rainha das Marcas”. De fato, o time ascolano é o mais identificado com a região e seu antigo escudo, utilizado durante a gestão de Rozzi, era uma alusão ao símbolo de Ascoli Piceno, o pica-pau (que também é o apelido do clube), e ao brasão das Marcas: tinha as cores branca, preta e verde e um pica-pau estilizado – veja o escudo do Ascoli aqui e a bandeira marchegiana aqui. Com o passar dos anos, o Ascoli se tornou não apenas o principal time das Marcas como também um dos principais times da região central da Itália.

O supersticioso presidente Rozzi sempre usava meias vermelhas para dar sorte (Ascoli Forever)

Quando a Rainha das Marcas se tornou tricolor e brilhou na elite

A ascensão para a elite fez com que o Presidentissimo ampliasse a capacidade do estádio Del Duca para incríveis 36 mil lugares – reduzida com o passar dos anos até chegar aos 20,5 mil atuais. Na estreia do time na Serie A, na temporada 1974-95, o Ascoli se destacou por ser um time que jogava sem ter a menor vergonha de se defender, com consciência de que era mesmo um time pequeno.

O técnico Mazzone sabia muito dar a característica lutadora para o time: foram apenas 14 gols marcados em 30 jogos, mas a defesa, com 27 gols sofridos, ficou entre as melhores do campeonato, com destaque para o trio Eugenio Perico, Mario Collautti e Francesco Scorsa. Depois de salvar a equipe do rebaixamento, o treinador romano foi contratado pela Fiorentina, e, órfão do competente comandante, o Ascoli acabou rebaixado na temporada seguinte.

Apesar da queda, àquela altura, a Itália já simpatizava com o Ascoli, e muito por causa de Costantino Rozzi. O presidente era figura carimbada em dois programas da Rai, La Domenica Sportiva e Il Processo di Lunedì, e era reconhecido por sua franqueza, bom humor e jeito popular, que o fariam um dos ícones do futebol dos anos 1980 – ao lado de outros presidentes de clubes provincianos, como Romeo Anconetani (Pisa), Angelo Massimino (Catania) e Antonio Sibilia (Avellino). Rozzi também não passava despercebido
pela sua marca registrada: usava meias vermelhas para dar sorte. Durante seus anos de presidência, a braçadeira dos capitães bianconeri também eram vermelhas – a equipe se tornou praticamente tricolor.

Dois anos depois de serem rebaixados pela primeira vez, os ascolanos retornaram à Serie A ao faturarem o título da segundona. Mimmo Renna treinava o time e e conseguiu fazê-lo permanecer na elite com uma honrosa 10ª posição em 1978-79, mas foi convidado para comandar o Bari, o que obrigou o presidente Rozzi a ir ao mercado atrás de um novo técnico. Dessa forma, o dirigente fechou com Giovan Battista Fabbri, mais conhecido como Gibì Fabbri, que havia conseguido levar o Lanerossi Vicenza ao vice-campeonato italiano em 1977-78 e ganhado o prêmio de melhor técnico daquele ano.

Rozzi não se arrependeu: logo em sua estreia, Fabbri conseguiu levar o Ascoli a sua melhor temporada em toda a história. Por causa de um ponto, o time não se classificou para a Copa Uefa: terminou com a quinta posição em campo – quarta após o veredito do Totonero, já que o Milan, terceiro colocado, foi rebaixado por ilícito esportivo. Ao final de 1979-80, os bianconeri ainda foram disputar um torneio amistoso no Canadá, a Red Leaf Cup, e venceram Botafogo, Nancy (França) e Rangers (Escócia), faturando seu primeiro torneio internacional.

Um dos motivos para a boa campanha do Picchio (“pica-pau”, em italiano) em 1979-80 é que a equipe já tinha uma base formada. A defesa tinha Scorsa e Perico, que já jogavam juntos há tempos, e desde o ano anterior tinha o reforço de Angiolino Gasparini, ex-Verona e Inter. No meio-campo, o capitão era Adelio Moro – também ex-Hellas e Beneamata –, que estava no clube desde 1976 e fazia boa parceria com Gianfranco Bellotto e Carlo Trevisanello. No ataque, um nome de luxo: em fim de carreira, o atacante Pietro Anastasi, ex-Juventus e Inter, além de campeão europeu pela seleção italiana, era a referência, apesar de não ter feito tantos gols. Essa era a espinha dorsal de um time histórico.

Moro, que passou por Inter e Milan, foi capitão da equipe nos anos 1970 e 1980 (Ascoli Forever)

O restante dos anos de ouro
Rozzi ficou mais exigente depois da temporada brilhante do Ascoli e, na 12ª rodada do campeonato seguinte, o 1980-81, o Presidentissimo não se deixou guiar por gratidão: decidiu pela demissão de Gibì Fabbri, depois de oito derrotas da equipe, trazendo Mazzone de volta para salvar a equipe do rebaixamento. O agitado treinador conseguiu fazer a equipe se recuperar na competição e, para completar, ainda levou o Picchio a mais um título.

Devido à participação da Itália no Mundialito de seleções, a Federação Italiana de Futebol organizou o Torneio de Capodanno, disputado pelas 16 equipes da Serie A. O Ascoli superou a fase de grupos, a semifinal (contra a Fiorentina) e bateu na final a poderosa Juventus, que tinha Dino Zoff, Claudio Gentile, Gaetano Scirea, Antonio Cabrini, Marco Tardelli, Roberto Bettega e Liam Brady.

Com Mazzone no comando, o Ascoli ficou na Serie A até 1984-85, tendo maior destaque em 1981-82, ano em que teve os reforços do zagueiro Andrea Mandorlini e dos meias Giuseppe Greco e Walter De Vecchi. Juntamente com boa parte da base do time quarto colocado dois anos antes, os novos contratados ajudaram o Picchio a alcançarem a sexta posição, novamente bem perto da Copa Uefa.

Parte dos últimos bons momentos da história do clube foram com Casagrande em campo (Ascoli Forever)

O declínio ascolano e o legado do Presidentissimo
Em 1984-85, o Ascoli foi rebaixado: Mazzone foi demitido com o campeonato em andamento e foi substituído pelo iugoslavo Vujadin Boskov. Ele não conseguiu evitar a queda, mas foi campeão da Serie B logo no ano seguinte, o que lhe valeu a contratação pela Sampdoria, com a qual conquistaria o scudetto em 1991. Já com Ilario Castagner no comando, no ano seguinte, o Ascoli faturou a Copa Mitropa – competição europeia com os vencedores das segundonas de alguns países.

Nos anos seguintes, o maior destaque do Picchio foi o brasileiro Casagrande, que foi contratado em 1987 e ficou nas Marcas por quatro temporadas – três delas na Serie A. Casão marcou 38 gols com a camisa do clube, se tornando um dos maior goleadores do clube e o artilheiro ascolano em jogos da Serie A, com 16 tentos – juntamente com Beppe Greco. Apesar do sucesso do atacante, o Ascoli alternava entre a primeira e a segunda divisões, e nunca mais chegou a brigar na parte alta da tabela.

Rozzi dirigiu o Ascoli até dezembro de 1994, quando morreu, aos 65 anos, por complicações de um câncer de estômago. Cerca de 20 mil pessoas compareceram ao funeral do Presidentissimo, um belo gesto de gratidão para o homem que elevou o Picchio a outro patamar. Nos anos da presidência do folclórico cartola, o time de Ascoli Piceno conseguiu quatro acessos à elite e participou de 14 edições da Serie A – quase todas em sua longa história.

O estádio Del Duca ficou conhecido como um campo difícil para os grandes italianos, visto que o Ascoli bateu Juventus, Inter, Milan e Roma. Nas duas décadas de sucesso dos bianconeri, Rozzi levou às Marcas jogadores do calibre de Adelio Moro, Pietro Anastasi, Juary, Dirceu, Andrea Mandorlini, Walter Novellino, Liam Brady, Andrea Pazzagli, Bruno Giordano, Casagrande, Pedro Troglio, Silvano Fontolan e Oliver Bierhoff – além de François Zahoui (primeiro jogador africano da história da Serie A, em 1981) e de Hugo Maradona, irmão ruim de bola de Diego. Também passaram por lá técnicos importantes, como os já citados Mazzone, Fabbri, Boskov e Castagner, e também Eugenio Bersellini e Nedo Sonetti.

Os anos pós-Rozzi não foram brilhantes para o Picchio. Na mesma temporada da morte do cartola a equipe foi rebaixada para a Serie C1, na qual permaneceu sete anos, e só voltou a levantar um título em 2001-02, com a conquista da Supercopa da Liga da Serie C. Três anos depois o Ascoli conseguiu voltar para a Serie A, mas não pelo campo: caiu nos play-offs de acesso, mas foi admitido por causa de irregularidades de Torino, Perugia e Genoa. A nova aventura durou pouco tempo e, ao final de 2006-07, o time foi rebaixado.

Atualmente o Ascoli luta muito para permanecer na segunda divisão, mas as lembranças dos anos de ouro continuam vivas. A equipe das Marcas homenageou Costantino Rozzi com o nome da arquibancada sul do estádio Del Duca e, todo ano, joga com meiões vermelhos na rodada mais próxima do dia 18 de dezembro – data da morte do Presidentissimo. Preto, branco e um vermelho bem forte, cores de um autêntico pica-pau.

Ficha técnica: Ascoli

Cidade: Ascoli Piceno (Marcas)
Estádio:
Cino e Lillo Del Duca
Fundação:
1898
Apelidos:
Bianconeri, Picchio
As temporadas (apenas séries A e B):
16 na Serie A e 19 na B
Os brasileiros:
Casagrande, Dirceu, Inácio Piá, Juary, Toledo e William Justino.
Time histórico:
Andrea Pazzagli; Eugenio Perico, Francesco Scorsa, Angiolino Gasparini; Giuseppe Greco, Adelio Moro (Giuseppe Iachini), Gianfranco Bellotto, Walter De Vecchi; Walter Novellino, Walter Casagrande, Oliver Bierhoff (Pietro Anastasi). Técnico: Carlo Mazzone.

Compartilhe!

Deixe um comentário