Técnicos

Vida cigana de Béla Guttmann teve passagem pelo Milan

Era comum no início do século XX que jogadores considerados inteligentes dentro dos gramados assumissem cargos de treinador no momento seguinte ao de suas respectivas aposentadorias. Foram os casos de Silvio Piola e Árpád Weisz, por exemplo. Atletas que marcaram época dentro e fora das quatro linhas, sempre ligados ao futebol. E foi nesse mesmo sistema que Béla Guttmann se consagrou como uma das figuras mais lendários do futebol – com destaque por suas passagens na Itália, no Brasil e em Portugal.

Meio-campista mais voltado à defesa em sua época de jogador, Guttmann nasceu em 1899 no então Império Austro-Húngaro, onde desenvolveu praticamente toda sua carreira como jogador – ao longo de sua carreira o império se desfez e o atleta se naturalizou austríaco. Sua única passagem fora de sua terra natal aconteceu justamente em uma aventura, quando, entre 1926 e 1930, desbravou o então amador futebol dos Estados Unidos. Voltou para sua pátria após a passagem em terras ianques e por lá se aposentou, em 1933, vestindo a camisa do Hakoah Viena.

Retirado dos gramados, assumiu o comando do clube pelo qual se aposentou e onde era figura muito querida. Exerceu o cargo por apenas duas temporadas, obtendo o décimo lugar no campeonato austríaco em ambas as oportunidades. Seu desempenho ruim e, principalmente seu temperamento explosivo, o fizeram ser mandado embora do clube. Graças aos contatos de seu pai, porém, conseguiu a chance de treinar o holandês SC Enschede, atual Twente. A boa campanha a qual conduzia o time logo em sua primeira temporada, porém, foi motivo de desentendimento com a diretoria local – o problema girava em torno das premiações em caso de título.

Depois de mais um ano na Holanda, Guttmann voltou à Áustria para dirigir novamente o Hakoah Viena, em época que finalmente conseguiria dar uma guinada em sua carreira. Após pegar a equipe rebaixada no Austríaco, ficou por lá durante um curto período de tempo, rumando então para o futebol da Hungria. Assumiu o Újpest, uma das mais tradicionais e poderosas equipes da época, com a qual, logo de cara, foi campeão do Campeonato Húngaro e da Copa Mitropa, espécie de embrião da Liga dos Campeões, entre 1938 e 1939. O início da Segunda Guerra Mundial, porém, interrompeu seu ótimo trabalho. Por ser judeu, o treinador teve que fugir e se refugiar na Suíça até o final do conflito bélico.

Após o término da Guerra, peregrinou por times do leste europeu até voltar, em 1947, ao Újpest, onde foi novamente campeão húngaro. Além do título, se destacou nessa época por ser um dos percussores da implantação do sistema 4-2-4 nos gramados europeus – a tática viria a ser base da Hungria vice-campeã mundial em 1954. Por suas conquistas e pelo jeito agressivo e ofensivo com a qual postava seus times em campo, Guttmann recebeu a oportunidade de se transferir para um centro maior do futebol, assumindo, em 1949, o comando do Padova, onde iniciou seus trabalhos na Itália com acordos nos quais recebia alimentos ao invés de salários. Uma derrota por 4 a 0 para a Juventus na Serie A daquele ano, porém, foi o suficiente para que o treinador fosse mandado embora – novamente, já desagradava parte da diretoria com seu temperamento explosivo.

Na Itália, Guttmann treinou Padova, Triestina, Milan e Vicenza (imago/Buzzi)

O técnico permaneceu na Itália, onde ainda assumiu o comando do Triestina, por onde também ficou durante um curto período de tempo, destacando-se por ministrar aulas sobre táticas aos seus jogadores. Após ser novamente mandado embora graças, essencialmente, ao seu comportamento, assumiu ainda o comando do Quilmes, na Argentina, e do APOEL, equipe do Chipre – nesse período ainda integrou, em 1952, a comissão técnica da seleção húngara. Se estabeleceria novamente apenas em 1954, quando após o vice-campeonato mundial da Hungria, montada em cima do esquema 4-2-4, foi convidado para assumir o comando do Milan.

Ao chegar em Milão se deparou com uma das maiores linhas ofensivas que os rossoneri já tiveram em sua história, formada pelos suecos Gunnar Gren, Gunnar Nordahl e Nils Liedholm. O ímpeto ofensivo natural do Milan somado à mentalidade de ataque de Guttmann fez com que o time tivesse dentro de campo uma combinação perfeita para recuperar o scudetto que nos últimos dois anos havia sido conquistado pela Internazionale. Para quebrar a hegemonia dos rivais nerazzurri, os comandados de Béla Guttmann contaram, claro, com um desempenho ofensivo muito bom para dominar a Serie A durante todo o ano.

O que os jogadores não esperavam, porém, é que mais uma vez o temperamento forte de seu treinador causaria problemas no meio do percurso. Mesmo com seu time liderando o campeonato, Guttmann entrou em atrito com a diretoria do Milan e foi prontamente demitido. Inconformado, disparou contra os diretores, afirmando não entender porque havia sido mandado embora se não era criminoso ou homossexual. Assistiu de fora seu time ser campeão sob o comando de Ettore Puricelli. Na tentativa de se manter na Itália, assinou com o recém-promovido Vicenza, no qual ficou durante uma única temporada.

Os problemas na Itália fizeram com que o treinador retornasse à Hungria, onde assumiu o controle do Honvéd, mais poderosa equipe local, que contava, entre outros, com o craque Ferenc Puskás em seu elenco. A equipe, admirada em todo o mundo, foi a porta de entrada do Brasil para Guttmann, pois foi em uma excursão do time húngaro pelo país que dirigentes do São Paulo ficaram encantados com a maneira de jogar da equipe e fizeram uma proposta para que o treinador assumisse o Tricolor paulista – aceita prontamente pelo húngaro.

No clube paulista, chegou fazendo a exigência de que o veterano Zizinho fosse contratado junto ao Bangu apesar de seus 35 anos – idade muito avançada para jogadores na época. Mesmo surpresa, a diretoria do São Paulo bancou a contratação e iniciou a temporada de 1957 com Guttmann no comando de uma equipe que contava, além do craque carioca, com o futuro milanista Dino Sani, Mauro, Amauri e Canhoteiro. Implantando seu 4-2-4 no Tricolor, conquistou o Campeonato Paulista daquele ano vencendo o grande rival Corinthians por 3 a 1 na final – esse seria, ainda, o último título do São Paulo no torneio até 1970.

Mas até mais importante do que o título conquistado foi a implantação do sistema 4-2-4, que se popularizou no Brasil após o Tricolor levar o Paulistão com destaque para sua linha de frente – superada apenas pelo Santos de um garoto de 16 anos que acabara de começar a jogar: Pelé. Foi com o jovem do time da Baixada e o esquema proposto por Guttmann que o Brasil venceria, em 1958, sua primeira Copa do Mundo, na maior colaboração – mesmo que indireta – do treinador húngaro para o futebol brasileiro.

Apesar do currículo, o húngaro não se deu bem no Milan (imago/Buzzi)

Depois de sua passagem pelo Brasil iria direto para Portugal, onde assumiu o comando do Porto e foi campeão português em 1959. Mas mantendo a lenda em torno de seu temperamento inesperado, assinou com o Benfica, maior rival dos portistas, logo após o título. Lá, foi responsável por revelar ao mundo o atacante Eusébio, nascido em Moçambique e maior jogador da história do futebol português.

No comando dos Encarnados obteve mais dois campeonatos portugueses, além de uma Copa de Portugal. Sua glória máxima, porém, aconteceria em 1961 e 1962, quando levaria o Benfica ao bicampeonato da Liga dos Campeões, vencendo, respectivamente, Barcelona e Real Madrid – esse comandado dentro de campo por Puskás, a essa altura já um desafeto de Guttmann.

Passaria, ainda, pela seleção da Áustria – a única da qual foi técnico -, pelo Peñarol, do Uruguai, voltaria ao Benfica no qual ficou mais um ano e peregrinou por Servette, da Suíça, Panathinaikos, da Grécia, e Austria Viena até que, em 1973, assumisse o Porto para se retirar do futebol.

Revolucionário em seu tempo, Guttmann foi um cigano do futebol, com lendas afirmando que nunca ficou mais de dois anos em um clube por acreditar que o número três trazia azar. De temperamento forte, ressurgiu nas pautas com a consagração de José Mourinho, igualmente polêmico e de competência semelhante – assim como Helenio Herrera, a quem é normalmente comparado. E, por onde passou, Béla Guttmann deixou ensinamentos que moldaram o futebol para que ele chegasse ao que assistimos hoje.

Béla Guttmann
Nascimento: 27 de março de 1889, em Budapeste, então Império Austro-Húngaro
Falecimento: 28 de agosto de 1981, em Viena, Áustria
Posição: meio-campista
Clubes como jogador: Törekvés (1917-1919), MTK Budapest (1919-1921), Hakoah Viena (1921-1926 e 1932-1933), New York Giants (1926-1929), Hakoah All Stars (1929-1330 e 1931-1932) e New York SC (1930-1931)
Clubes como treinador: Hakoah Viena (1933-1935 e 1937-1938), Enschede (1935-1937), Újpest (1938-1939 e 1947), Kispest (1948), Padova (1949-1950), Triestina (1950-1951), Hungria* (1952), Quilmes (1953), APOEL (1953), Milan (1953-1955), Vicenza (1955-1956), Honvéd (1956-1957), São Paulo (1957), Porto (1958-1959 e 1973), (1959-62 e 1965-1966), Peñarol (1962), Áustria (1964), Servette (1966-1967), Panathinaikos (1967) e Austria Vienna (1973)
Títulos como jogador: 2 Campeonatos Húngaros (1919/20 e 1920/21) e 1 Campeonato Austríaco (1924/25)
Títulos como treinador: 2 Campeonatos Húngaros (1938/39 e 1946/47), 1 Copa Miltropa (1938), 1 Campeonato Paulista (1957), 3 Campeonatos Portugueses (1958/59, 1959/60 e 1960/61), 1 Copa de Portugal (1961/62) e 2 Liga dos Campeões (1961 e 1962)

Compartilhe!

Deixe um comentário