Extracampo Serie A

Os italianos têm razão ao depreciarem a Serie A?

Um dia antes do início da última rodada da Serie A 2020-21, o maior portal de esportes do Brasil, ge.globo, publicou uma matéria interativa sobre o renascimento do futebol italiano. O conteúdo mostra como a liga italiana voltou a ser atrativa após alguns anos no ostracismo. Motivos não faltam para corroborar a matéria.

O campeonato terminou com a maior média de gols (3,06 tentos/jogo) entre as cinco maiores ligas da Europa, superando Bundesliga (3,03), Ligue 1 (2,76), Premier League (2,69) e La Liga (2,51). A Inter destronou a Juventus e faturou o scudetto. O Milan findou o certame na segunda colocação e retornou à Liga dos Campeões após sete anos. A Atalanta continuou praticando um futebol ofensivo e atrativo, sendo coroada com a terceira classificação seguida à Champions. A Juve correu o risco de ficar de fora da UCL, mas conseguiu a qualificação graças ao tropeço do Napoli na rodada derradeira.

Os craques Cristiano Ronaldo, Romelu Lukaku e Zlatan Ibrahimovic deram continuidade em 2020-21 ao ótimo desempenho da temporada anterior. Eles e outros astros subiram o sarrafo da Serie A. A variedade tática, sobretudo entre os times de cima da tabela, saltou aos olhos. Equipe como Sassuolo e Spezia encantaram muitos aficionados por futebol italiano, praticando um jogo ofensivo, dentro de suas limitações.

“E foi a melhor liga nacional da Europa pelo segundo ano seguido”, escreveu Rafael Oliveira, renomado comentarista de futebol europeu, em sua conta no Twitter. “Não pela comparação do número de gols, é bom ressaltar – não considero um critério (embora válido pra rebater rótulos). Pela qualidade dos enfrentamentos a cada rodada, no sentido de diversidade estratégica e nível de jogo.”

No entanto, apesar de todos esses fatores positivos, muitos italianos acreditam que a Serie A ainda deixa a desejar, com uma visão contrária à que repercute no Brasil atualmente. A Calciopédia, então, foi atrás de jornalistas que cobrem a liga italiana em outros países para tentar entender se o campeonato está em destaque apenas em terras tupiniquins.

O Allianz Stadium, de Turim, é um dos estádios mais modernos da Itália (Sportimage)

Ligação afetiva e novos estádios

Na visão do jornalista Filippo Ricci, correspondente da Gazzetta dello Sport na Espanha, é natural que a Serie A ganhe destaque no Brasil. “Fico feliz que, no Brasil, o Campeonato Italiano continue a ser visto como interessante, mas acredito que seja porque o Brasil é muito ligado à Itália. Há muitos italianos, há um ligação afetiva importante e, portanto, para um italiano será sempre importante acompanhar a Serie A ao invés de Bundesliga, La Liga, Ligue 1 e, talvez, Premier League”, afirma.

Por sua vez, o jornalista italiano baseado em Paris, Guillaume Maillard-Pacini, percebeu uma queda de acompanhantes da Serie A em solo francês. Segundo ele, o “ressurgimento” da liga italiana no Brasil não se aplica à maneira como os franceses veem a competição.

“Na França, o Campeonato Italiano perdeu um pouco de brilho com o passar dos anos”, explica o jornalista, que cobre o futebol italiano para o Eurosport desde 2017. “Há 20 anos, havia muitos jogadores, como [Francesco] Totti, [Paolo] Maldini, [Alessandro] Del Piero – jogadores com status internacional. Eu diria que, na França, a Serie A é menos seguida do que antes, embora ainda haja muitos torcedores de muitos times que acompanham o Campeonato Italiano na França, porque no país há muitos, muitos italianos.”

A Atalanta é uma das agremiações italianas que estão investindo em melhorias em seus estádios (Sportimage)

Novos estádios

Para Filippo Ricci, o futebol italiano enfrenta um momento de dificuldade, embora apresente evolução em relação aos últimos anos. Na conversa que a reportagem teve com ele em abril, o jornalista chamou a atenção a um problema que está travando o crescimento de muitos clubes da Serie A: a burocracia para inaugurar novas arenas. “Nós não temos praticamente estádios próprios”, lamenta.

“Eles não são um centro de encontro – agora estão fechados, mas estou falando de condições normais. Não geram grandes faturamentos. Em outros países, você vai ao estádio para passar tempo, para consumir, é um outro ponto de agregação. Aqui, o percentual de enchimento é baixíssimo”, explica o jornalista, que é correspondente da Gazzetta na Espanha desde 2006.

De fato, possuir um estádio próprio ajuda os clubes a arrecadar mais dinheiro e atrair novos torcedores. Prova disso é a Juventus, que passou a dominar a Itália após a inauguração do Allianz Stadium, em 2011. Recentemente, a Atalanta e a Udinese estrearam estádios novos. Bologna, Cagliari, Fiorentina, Inter, Milan, Parma, Spezia, entre outros, estão com projetos para construir ou reformular estádios.

Campeã italiana, a Inter caiu na fase de grupos da Champions League (IPA)

Queda na Liga dos Campeões

A Liga dos Campeões não vai para a sala de troféus de um clube italiano desde 2010, quando a Inter de José Mourinho varreu a Europa e levou a orelhuda para Milão. Depois do triunfo nerazzurro em solo europeu, a Juventus foi quem chegou mais perto de conquistar o título, batendo na trave em 2015 (3 a 1 contra o Barça) e 2017 (4 a 1 ante o Real Madrid). Porém, na edição recém-encerrada da Champions, nem a Juventus salvou o desempenho dos italianos no torneio.

A Inter caiu na fase de grupos pelo terceiro ano consecutivo, enquanto Atalanta, Lazio e a próprio Juve sucumbiram nas oitavas de final. A última vez que a Itália ficara sem representantes nas quartas de final da Liga dos Campeões fora na temporada 2015-16. Após o vexame na Europa, o histórico ex-técnico Fabio Capello, hoje comentarista da Sky Sport Italia, não poupou críticas ao futebol italiano.

“Infelizmente o futebol italiano é lento, não tem intensidade e agressividade”, disparou o ex-treinador de Milan, Roma e Juventus. “Pensamos que podemos vencer só com a tática e a posse de bola, mas isso se torna muito difícil quando se encontra equipes que têm uma certa qualidade e intensidade. (…) Nas quatro partidas de retorno das oitavas de final que foram disputadas entre terça e quarta-feira, vimos que venceram os times que jogam com intensidade e qualidade. A qualidade do futebol italiano é baixa, não temos coragem e sofremos com as equipes que estão um passo à nossa frente”, completou.

Raspadori, convocado para representar a Itália na Euro, é uma das mais recentes revelações do futebol local (IPA)

Categorias de base

A dura análise de Capello serviu de gancho para o principal jornal esportivo da Itália publicar duas matérias em seu site, no início de abril passado, criticando o nível do futebol praticado na Bota. O primeiro conteúdo reproduzido pela Gazzetta dello Sport mostra como as equipes da Serie A passam menos a bola e os árbitros apitam mais em comparação às outras grandes ligas europeias. Também traz uma análise do coordenador das seleções italianas juvenis, Maurizio Viscidi, acerca do futebol ensinado nas categorias de base.

Segundo Viscidi, os treinadores das categorias de base na Itália focam muito em tática e deixam de lado a técnica e o crescimento dos jovens. Na visão do coordenador, esses técnicos usam a garotada como escada para fazer carreira no futebol. Filippo Ricci, o correspondente da Gazzetta na Espanha citado anteriormente, corrobora com a opinião de Viscidi.

“Na Itália, demoram a lançar os jovens, há muitos jogadores velhos, o ritmo é lento, pensam muito ao resultado, pensam muito em tática. E também a nível da própria escola de futebol, do sistema de crescimento das crianças, há pouca predisposição ao ensino da técnica, do divertimento e do puro estilo de jogo. Para nós, conta muito o resultado”, disserta o jornalista.

Já a segunda matéria do jornal rosa aborda o alto número de lesões no Italianão. O periódico solicitou um levantamento ao site Noisefeed para saber a quantidade de contusões da Serie A em comparação à Premier League e à Bundesliga. A pesquisa apontou que, do início da temporada 2020-21 até o dia 24 de março, a Serie A registrou 757 lesões para um total de 557 jogadores empregados, ao passo que a liga inglesa contabilizou 652 lesões (515 jogadores) e 596 ocorreram no campeonato nacional da Alemanha (523 jogadores).

Para Cassano, a Inter de Conte jogou mal em 2020-21 (LaPresse)

Nem a campeã escapa

A Inter de Antonio Conte venceu o scudetto com autoridade. Embalou no segundo turno, obteve 11 vitórias seguidas, perdeu apenas uma vez, alcançou 91 pontos. Mas isso não bastou para o ex-jogador e torcedor interista declarado Antonio Cassano. Sempre polêmico, o ex-atacante se tornou um hater severo da maneira como o time de Conte atuava.

Em abril, Cassano participou de uma transmissão na Twitch do também ex-jogador Christian Vieri, a Bobo TV, e não poupou críticas à equipe de Conte. “A Inter vai ganhar o scudetto porque a única maneira de perdê-lo é jogando-o pela janela. Mas eu tenho que dizer que, apesar disso, eles jogam um futebol ruim. Quando se trata de opções no mercado de transferências, quem entraria? Conte não quer verdadeiros vencedores. Ele joga em uma formação 5-3-2, com todos atrás da bola, implantados lá para defender o gol. Ele estaciona o ônibus e ninguém passa. Esse tipo de futebol me dá arrepios, é horrível. Se eu tivesse um treinador como esse, eu iria até o presidente e o faria demiti-lo”, disparou.

Gabriele Gravina, presidente da FIGC, e Paolo Dal Pino, chefão da Serie A: os homens que tomam as decisões no futebol italiano (Insidefoto)

Serie A como produto

Há um velho ditado que diz: a propaganda é a alta do alma do negócio. Será, então, que a Liga Serie A não consegue vender bem a imagem do seu produto para outras praças? Em uma conversa que tivemos com Siavoush Fallahi, jornalista esportivo do Eurosport apaixonado pela Serie A, ele levantou esse ponto. Fallahi vê a Serie A muito atrás de outras ligas devido à má gestão de marketing. O sueco usa La Liga como exemplo.

“La Liga internacionalmente não deveria ter muito mais sucesso que a Serie A, mas, com a estratégia de marketing e o desenvolvimento da marca, ela alcançou sucesso mesmo sem Cristiano Ronaldo no Real Madrid”, explica. “É verdade que Real Madrid e Barcelona são dois grandes [clubes], mas a Serie A tem três gigantes: Inter, Milan e Juventus. O desenvolvimento da Serie A está aqui e deve partir deles. Depois, deveria melhorar tanto o sistema de transmissão quanto os estádios”, acrescenta.

Para saber como anda o marketing da liga italiana no Brasil, a Calciopédia procurou Eduardo Esteves, diretor executivo do MKTEsportivo. Na visão dele, a Serie A precisa ir além das transmissões esportivas, de modo a buscar relacionamento e ações para impactar os fãs. “Não adianta apenas a transmissão, deve-se fazer um trabalho de marketing e comunicação junto aos grupos de mídia, torcedores e influenciadores. A transmissão pela transmissão colabora bastante, mas ela deve ser acompanhada com um trabalho de ativação para que o fã tenha uma ligação maior com o torneio”, elucida.

Esteves reconhece o popularidade do futebol italiano no mundo, mas alerta: “em mercados estratégicos, como o Brasil, até pela distância dos continentes, um trabalho local se faz necessário”. O dono do MKTEsportivo vê o trabalho de aproximação que La Liga realiza junto aos canais de esportes da Disney, ESPN e Fox Sports, no Brasil como exemplo a ser seguido.

Embora dê destaque ao trabalho de marketing da Juventus em outros países, Esteves afirma que, no Brasil, a Serie A está atrás até da Ligue 1 em nível de comunicação. “A Ligue 1 faz um forte trabalho no digital no Brasil, tem Neymar constantemente na mídia e se destacando na Champions League. A Premier League é uma gigante global, também com clubes com comunicações direcionadas ao país – Manchester City, Everton e United, por exemplo”, pontua.

Fallahi, a propósito, liga o alerta para a Serie A: a Ligue 1 está no retrovisor. “A Itália é um país que tem muitas possibilidades de trazer interesses. Quem não ama a comida italiana, o vinho italiano, a cultura e a história italiana?”, indaga o jornalista sueco, que puxa coro à Inter em seu Twitter. “A Serie A deve melhorar o marketing e conectar o futebol com tudo que o mundo ama na Itália, e deve fazê-lo rápido. Caso contrário, perderá ainda mais caminho e daqui a pouco tempo será ultrapassada também pela Ligue 1, que está crescendo rapidamente”, conclui.

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1 Comentário

  • Em minha visão de leigo, a questão HOJE se resume apenas ao poderio financeiro dos clubes. E não falo da crise, digo de antes dela, porque a recuperação da liga em termos técnicos e táticos é nítida há pelo menos umas 3 ou 4 temporadas. Como gente que entende já disse, o nível do jogo praticado na Serie A hoje não deve a nenhuma outra liga do planeta. A questão é que na hora do “vamo ver”, falta a quantidade de jogadores que as ligas mais ricas (ou os clubes mais poderosos mesmo de ligas menores) têm em seus times. Inter e juventus podem ter bons times com alguns jogadores capazes de decidir jogos grandes a nível continental, a Atalanta pode ter um coletivo fenomenal, mas é difícil competir com clubes que têm 3, 4 ou 5 jogadores desse naipe como os ingleses, os gigantes espanhóis e o PSG. Evidente que não é só o dinheiro menor que influencia, até porque pra os clubes arrecadarem mais em receitas, a Serie A deveria e poderia ser muito mais atrativa do ponto de vista comercial. Mas é como um membro do Calciopédia disse no twitter recentemente: os próprios dirigentes fazem de tudo pra desvalorizar o produto deles. Nem vou entrar nessa questão dos estádios porque, como leigo, me parece o passo mais difícil de ser dado, mas há muitas outras coisas até pequenas que poderiam ser ajustadas e a liga seguir o exemplo da mais organizada e consequentemente mais rica do mundo. Tudo é padronizado, tudo é feito minuciosamente, tem um aplicativo sensacional com todas as informações dos 20 clubes (se a Serie A tem, nunca achei), aquela presepada toda de dia de jogo, fazem parecer um evento tipo Copa do Mundo, as camisas com o mínimo de propaganda possível (entendo a embaixo do número pela necessidade, mas dois na frente?)… enfim, não quero esculhambar a Serie A como os próprios “donos” dela fazem, até porque nenhuma outra liga é tão organizada e passa a impressão de até o pior jogo parecer um evento imperdível como a PL faz (talvez a Bundesliga seja a que mais se aproxima). Mas a Serie A tem que melhorar DEMAIS pra atrair interesse o suficiente a ponto de diminuir o abismo de receitas entre os maiores/mais ricos clubes do continente. Não sei se a mudança de horário (que pra mim é boa porque gosto de jogos pela manhã daqui), ou se a diminuição pra 18 clubes (o que não me agrada) vão ajudar nisso. Com certeza tem um estudo que indique que sim. Mas imagino que excluir clubes de divisões inferiores da copa nacional não ajude em nada, só faça parecerem mais estúpidos com essa decisão. Ah, e só pra finalizar, as arbitragens italianas também não ajudam em nada a atrair simpatia de fora do país. Claro que esse problema não é exclusividade da Serie A, mas o histórico já é conhecido. É sempre o mesmo clube a ser mais beneficiado que todos os outros somados. E isso porque foi uma das primeiras a adotar o VAR. Eles podem ser o clube mais popular do país em nível nacional e mundial, mas são nojentos e muita gente não suporta vê-los sendo ajudados o tempo todo, mesmo quando não precisam. Abraço!

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